No cinema as coisas nunca terminam bem quando temos clones, duplos, doppelgängers ou mesmo até reflexos no espelho. Certamente porque isso representa uma recorrência cultural: em todas as culturas ver o próprio duplo é uma experiência terrível. Muitas vezes, o próprio prenúncio da morte – assim como na cultura Ocidental, com as chamadas “experiências de quase morte” quando supostamente saímos do corpo e olhamos para nós mesmos.
O cinema tem um especial interesse nesse tema. Certamente porque a experiência cinematográfica análoga à alegoria da caverna de Platão nos coloca diante de uma telona na qual é projetado o nosso psiquismo.
The Man Who Haunted Yorself (1970), passando por Coração Satânico (1987), Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988), Quero Ser John Malkovich (1999), O Grande Truque (2006), Moon (2009), Cisne Negro (2010), O Homem Duplicado (Enemy, 2013), a série Counterpart (2017), entre outros, o tema do duplo foi anexado à busca da identidade onde o protagonista mergulha numa situação de esquizofrenia e caos.
Dual (2022) é mais um filme nessa longa lista. Dessa vez sobre o duplo personificado na figura de um clone que, de solução, se transforma em caos e até mesmo uma ameaça à própria vida do protagonista.
Dirigido e escrito por Riley Stearms, é uma comédia de humor negro que tem uma fascinante premissa – uma mulher rivaliza com seu próprio clone, parecendo que o argumento foi concebido depois da leitura de uma boa obra junguiana: a sombra que rivaliza com o próprio ego, ameaçando-o de morte. A morte do ego, segundo Jung, é a condição necessária para encontrar o Self – a unificação da consciência e inconsciência no processo de individuação formando o indivíduo como um todo.
Dual tem grandes ideias, sugere temas para grandes aprofundamentos e discussões. Mas disfarça tudo através da sátira, parecendo jogar uma bomba de fumaça no meio da sala, deixando o público perdido no meio da fumaça.
Riley Stearms parece mais interessado em brincar com a ideia da clonagem como um serviço cotidiano de uma empresa num mundo alternativo no qual “substitutos” são oferecidos para pessoas em estado terminal – para que morte seja denegada pelos vivos, já que um clone-substituto não deixará a lacuna da perda para os entes queridos. E arrancar situações de humor negro da aparente banalidade em uma situação surreal. E com sérias questões éticas.
Ao lado do tema do duplo, esse é outro tema sugerido pelo filme: como em nossa cultura, dominada pela tecnociência médica e farmacêutica, a morte deixou de ser algo natural para se tornar um erro. Como aponta Eric G. Wilson na sua crítica à indústria fármaco-médico-terapêutico mobilizada para extirpar o mal que atormenta milhares de alma: a depressão e a melancolia, criando um mundo motivacional no qual qualquer negatividade deve ser extirpada como um erro – leia WILSON, Eric G. Against Happiness: in praise of melancholy, Sarah Crichton Books, 2008.
Esse é mais um tema sugerido e não aprofundado em Dual. Mas em todo o seu humor negro e sátira à nossa sociedade terapêutica e motivacional, há uma premissa junguiana transpassa toda a narrativa: se na psicologia analítica junguiana é o ego que tenta neutralizar ou denegar a sua Sombra (tudo aquilo que somos e negamos, preferindo projetar nos outros), em Dual a Sombra quer realizar na literalidade a psicologia analítica: matar o ego.
O Filme
"Dual" acontece aparentemente num universo alternativo com um grande avanço tecnológico: clonar a si mesmo não é apenas uma possibilidade, mas uma realidade. Há anúncios brilhantes divulgando o chamado “processo de substituição" - proclamam como a coisa amorosa e altruísta que alguém pode fazer: se você vai morrer, ainda haverá um "você" por perto, pronto para tomar o seu lugar. Seus entes queridos não precisarão se lamentar. As "substituições", como são chamadas, são geradas a partir de apenas uma gota de saliva.
Depois de gerados, passam tempo com o "original" durante o período de transição, familiarizando-se com a vida do original, todos os gostos e desgostos, em preparação para a eventual substituição. A transição do original para a substituição deve ser perfeita.
Mas as coisas não acontecem assim com Sarah (Karen Gillan), sofrendo de uma misteriosa doença terminal. Sarah tem um namorado chamado Peter (Beulah Koale) e uma mãe perpetuamente desaprovadora (Maija Paunio), as duas únicas pessoas que realmente "contam" em sua vida.
Sarah mantém sua doença em segredo de ambos e toma a decisão de criar uma "substituição". As preocupações financeiras são ignoradas pelo representante de vendas: após a morte de Sarah, a "substituição" ficará presa à conta. Quando o substituto entra na sala, apresenta-se como um clone perfeito, exceto por uma coisa. O substituto tem olhos azuis, enquanto os olhos de Sarah são castanhos. Sem problemas, o substituto pode usar lentes de contato coloridas!
Mas a anomalia é um sinal das coisas que estão por vir. Muito rapidamente, a substituição de Sarah mostra sinais de que é ambiciosa – ela não quer apenas “substituir” - não está apenas tentando replicar Sarah. Ela está se preparando ser a sua melhor versão, em todos os sentidos. Por exemplo, olha para uma fotografia emoldurada de Sarah e Peter e a vira com a face para baixo. Ela faz comentários sobre as roupas de Sarah que não se encaixam nela. Ela é melhor na cama, mais aventureira. A mãe de Sarah prefere a Sarah substituta à verdadeira Sarah. Peter também. Sarah se vê cada vez mais expulsa da sua própria vida.
A coisa só piora quando Sarah descobre que não vai mais morrer: houve uma remissão completa do câncer. Agora Sarah terá de “desativar” o clone.
O problema é que "desativar" uma substituição é um processo longo e complicado, com implicações legais, terminando em um duelo público entre o original e seu substituto – transmitido pela TV.
Sarah decide seguir esse caminho e contrata um treinador de combate (Aaron Paul) para levá-la em forma para a luta e duelar seu próprio duplo em um campo aberto.
A cada passo da narrativa, quando há um potencial para se aprofundar em questões sobre identidade e ansiedade, sempre o filme dá um passo para o lado e não segue em frente nos temas sugeridos. Em vez disso, Dual está interessado no enredo das cenas engraçadas do treinamento de Sarah para lutar contra seu próprio duplo.
O que torna interessante Dual é que parece fazer uma exploração transversal do tema junguiano da luta do ego com sua Sombra: o substituto é tudo aquilo que Sarah não se aventura em arriscar na sua vida - por exemplo, enquanto seu namorado Peter das vídeo ligações para ela com um ar de tédio, Sarah está se masturbando enquanto assiste vídeos pornôs na Internet.
E a principal ironia do filme: tudo terá que terminar com um duelo no qual, seja qual for o resultado, o principal vitorioso será o psicanalista Carl G. Jung: no final, o ego deve morrer.
Ficha Técnica |
Título: Dual |
Diretor: Riley Stearms |
Roteiro: Riley Stearms |
Elenco: Karen Gillan, Beaulah Koale, Aaron Paul, Maija Paunio |
Produção: XYZ Films, Film Service Finland Oy |
Distribuição: RLJE Films |
Ano: 2022 |
País: EUA/Finlândia |