A
maior história AstroGnóstica de todos os tempos. De “Jesus Cristo Superstar” a “A
Última Tentação de Cristo”, Jesus já foi humanizado de todas as maneiras:
dúvidas, tentações, medos etc. Mas nada igual ao despretensioso filme “Ultimos
Dias no Deserto” (2015) de Rodrigo Garcia. Nos 40 dias que Jesus passou no
deserto orando, jejuando e pedido orientação do seu Pai, a única voz que ouviu
foi a de Satanás. Logicamente, o demônio no início vai explorar as fraquezas de
uma divindade prisioneira em um corpo humano. Mas Satanás fará (e se revelará)
muito mais do que isso. Enquanto Jesus tenta minimizar os conflitos da relação
pai e filho de uma família que lhe deu água e abrigo, Satanás mostrará que está
sempre um passo à frente. Como se antecipasse todos os pequenos detalhes de uma
história que parece já conhecer de antemão. Como se a Criação fosse uma
repetição na qual, curioso, Satanás tenta entender o propósito de tudo.
Olhando pelo ponto de vista da humanidade prisioneira em uma repetição cósmica.
Seria Satanás o último dos humanistas em “Últimos Dias no Deserto”? Filme sugerido pelo nosso leitor Matheus de Alcântara.
A Paixão de Cristo é certamente a
maior narrativa AstroGnóstica de todos os tempos - um protagonista que não
pertence a esse mundo sofre as consequências das mazelas da sociedade humana,
desejando retornar ao seu lar fora desse planeta. Inspiradora de todos filmes
derivados desse plot como O Homem Que
Caiu na Terra, ET O Extraterrestre ou Starman
– O Homem das Estrelas – sobre outras categorias de filmes gnósticos clique aqui.
O porquê de Deus ter enviado seu
Filho para esse mundo, explicado pelos quatro evangelhos canônicos da Bíblia
Sagrada, é bem fatalista: seu propósito foi, desde o início, o de ser
torturado, sofrer as dores da carne e morrer pelas mãos do homem para nos
redimir dos pecados – com Seu exemplo, ensinar o valor da compaixão, perdão e
amor ao próximo.
Clássicos como Jesus Cristo Superstar (1973) ou A Última Tentação de Cristo (1988)
procuraram humanizar a figura divina: suas dúvidas, tentações em um mundo
físico, fragilidades, contradições e o peso em assumir a missão de salvar a
humanidade.
Mas poucos filmes sobre Jesus
Cristo chegam perto da despretensiosa produção Últimos Dias no Deserto (Last
Days in The Desert, 2015), do diretor Rodrigo Garcia. Uma parábola
religiosa silenciosamente ousada numa rebelião discreta contra as epopéias
bíblicas – sem discussões teológicas ou morais, o filme narra os 40 dias que
Jesus passou no deserto orando, jejuando e pedindo orientação do seu Pai – sem
sucesso.
A única voz que ouve vem de Satanás que
regularmente se materializa ao seu lado como fosse um gêmeo espelho, exceto
pelo brinco pendurado na orelha esquerda.
De cara, o filme recebeu a
crítica de apresentar um Jesus de olhos azuis interpretado pelo escocês Ewan
McGregor. Por que não um ator descendente do Oriente Médio? Garcia preferiu
escalar um rosto familiar (cuja presença espiritual nos faz lembrar uma versão
de Obi-Wan Kenobi de Guerra nas Estrelas) para atrair tanto crentes quanto
não-crentes.
Isso porque a discussão que o
filme propõe é outra e talvez inédita, olhando em perspectiva os filmes sobre
Jesus, religiosos ou não. Satanás é muito mais do que um demônio que não sai da
cola de Jesus para tentar corrompê-lo – ele é um personagem com um grau de
sabedoria e mais conhecimento de primeira mão sobre o Pai do que o próprio Jesus.
Satanás rouba a cena
De muitas maneiras, em Últimos Dias no Deserto Satanás rouba a
cena, assim como no filme Noé (2014)
de Aronofsky, numa releitura gnóstica e cabalista - a serpente sempre teve razão, ela representa o verdadeiro divino e as
alegações do “Criador” são falsas por tentar esconder a própria divindade
humana.
Na proposta de
Rodrigo Garcia, Satanás não tenta Jesus pelo pecado, luxúria, pontos fracos de
caráter ou covardia diante de uma pesada missão. Simplesmente Satanás tenta com
o conhecimento – ele é um anjo muito mais velho e que acompanha o Pai de Jesus
desde o início dos tempos. Satanás tenta compreender o propósito da Criação,
observando tudo pelo ponto dos homens, na Terra. Por isso, ele está sempre um
passo na frente de Jesus. E talvez saiba algo a mais sobre o Pai que nem o
próprio filho conhece.
O Filme
Últimos
Dias no Deserto abre com uma espetacular fotografia e
cinematografia do deserto, filmado no deserto de Anza-Borrego na Califórnia.
Acompanhamos o Messias, cansado, fraco, sedento e solitário. Nada tão notável.
Ele está desorientado e parece ter perdido o caminho para Jerusalém.
Percebemos que ele tem uma grande
capacidade de bondade, carinho e abnegação. Com exceção de um breve momento no
filme em que vemos Jesus levitando acima do solo, de resto vemos apenas um ser
humano excepcional. Ao longo da narrativa, não ouvimos de Jesus (ou “Yeshua”,
referido no filme em hebreu) frases bíblicas de sabedoria. Mas apenas dois
conselhos: “Ame a Deus sobre todas as coisas” e “Ame a Vida”.
Yeshua se depara com uma família
composta pelo enérgico patriarca (Ciaran Hinds), sua esposa muito doente (a
atriz israelense Ayelet Zurer) e o filho adolescente (Tye Sheridan). Um garoto
cansado daquela vida no deserto, cujo sonho é morar em Jerusalém e ganhar sua
própria vida.
Yeshua é acolhido pela família, dando-lhe
água e abrigo. Logo, Ele compreenderá a tensão vivida entre o patriarca e o
filho que busca independência. E se transformará em uma espécie de conselheiro
familiar, tentando minimizar a crescente tensão entre pai e filho.
Claramente, o Rodrigo Garcia
procura fazer uma analogia entre a relação cósmica Deus/Jesus com aquela vivida
entre o patriarca e seu rebelde filho adolescente. O pai está determinado a manter seu clã naquele local isolado pelo resto
de suas vidas, enquanto a saúde de sua esposa diminui. Yeshua, que percebe
que o conflito diante dele reflete suas próprias preocupações sobre seu pai.
Faz o que pode para aliviar os encargos da família, carregando água de um
córrego e auxiliando o pai nos seus trabalhos. A presença do adolescente
permite até algum alívio cômico.
Mas quando surge
uma situação que colocará a vontade do pai contra a do filho, um resultado
trágico é quase certo.
Por que Satanás está sempre um passo à frente? – Alerta de Spoilers
No início, a
tática de Satanás é bem previsível: ele insulta, demonstra desprezo e
superioridade, e tenta plantar dúvidas na mente de Jesus quando diz que Ele não
é o único filho e que Deus ama apenas a si mesmo.
Mas, a melhor linha de diálogo
está com Satanás: “Sou um mentiroso, e isso é verdade!”. Uma frase que abre um
(desculpe o trocadilho) infernal paradoxo para Jesus: se Satanás é mentiroso, isso
também que ele afirma é uma mentira... Ora, então Satanás está dizendo a
verdade! Mas não pode dizer a verdade, se é um mentiroso... Esse é o próprio
“Paradoxo de Epimênedes” (600 a.C.) que tanta dor de cabeça deu para lógicos
como Tarski e Gödel.
A partir desse ponto de inflexão,
Satanás mostra o porquê de estar sempre um passo à frente de Jesus: isso
porque, assim como Deus, ele existe desde o início dos tempos. Como a
curiosidade é o seu ponto fraco, ele tenta entender qual o propósito divino da
Criação. Diz para Jesus que pretende esperar até o fim... para tudo recomeçar
de novo.
“Ele vai querer começar tudo de
novo... desde o princípio... já o fez antes: recriar tudo, recontar tudo. Por
um capricho!”. Então, o oponente de Jesus revela a ontologia gnóstica da
Criação de Deus, convertido agora em um caprichoso, manipulador e
autoindulgente Demiurgo. Os mundos se repetem em sucessivas criações nas quais
as mesmas histórias são revividas, com pequenas diferenças entre esses mundos
sucessivos.
Diante dos olhos de Jesus,
Satanás apresenta a história alternativa daquela família no deserto, numa outra
realidades na qual Jesus não os conheceu, e com um trágico desfecho. Ele é
capaz de vislumbrar os diferentes futuros alternativos e sabe como tudo
termina. Menos para as “pequenas coisas” que Jesus faz, como se refere Satanás.
Ao lado dos homens, Satanás
testemunhou por milhares de anos a Criação, destruição e repetição de uma mesma
narrativa, com caprichosas pequenas alterações em cada ciclo, mas que sempre levam
para o mesmo desfecho: a repetição.
Nesse sentido, as linhas de
diálogo do demônio lembram bastante o monólogo final de Al Pacino no filme O Advogado do Diabo (1997), quando
interpreta o Diabo-advogado Milton, e que descreve Deus como um Demiurgo sádico
que se deleita com os desafios, sofrimento e o inevitável fracasso humano. Mas
em Últimos Dias no Deserto é muito
pior: Deus já sabe o final, pois repete a mesma História ad nauseum, com apenas algumas pequenas e
caprichosas mudanças.
Se como falava o escritor Stephen
King “o Inferno é a repetição”, a Criação seria a versão mais perfeita do
Inferno. E Satanás, curioso, tenta compreender qual o propósito de Deus nesse
ciclo vicioso infinito. Quantas vezes será que Satanás tentou Jesus nesses em
cada ciclo cósmicos de Criação/Destruição? Será que Satanás está à espera de
que, finalmente, uma das pequenas mudanças seja a consciência de que o Pai é um
Demiurgo sádico? Isso quebraria a prisão recursiva que é a Criação, libertando
a humanidade?
Então, para o filme Últimos Dias
no Deserto, Satanás é o último dos humanistas.
Ficha Técnica
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Título: Últimos Dias no
Deserto
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Diretor: Rodrigo Garcia
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Roteiro: Rodrigo Garcia
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Elenco: Ewan McGregor, Ciarán Hinds, Tye Sheridan, Ayelet
Zurer
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Produção: Mockingbird Pictures, Division
Films
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Distribuição: GEM Entertainment
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Ano: 2015
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País: EUA
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