terça-feira, abril 16, 2024
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A série Netflix “Ripley” (2024) é bem fiel ao clássico da literatura policial de Patricia Highsmith, de 1955. Ao contrário da linda e fotogênica adaptação de 1999 com Matt Damon interpretando o trambiqueiro Ripley, a série liberta-se da representação hollywoodiana da maldade: ao contrário do vilão passional, quente e emocional, temos em “Ripley” o mal neutro, melancólico, apático, estoico, muito longe da loucura ou obsessão. Drenado de cor e emoção humana, reforçado pela belíssima fotografia em preto e branco. A história de Ripley, que vai até a Itália roubar a vida e identidade de um jovem herdeiro bilionário norte-americano, é narrada muito mais como um jogo: quanto mais Ripley percebe como bilionários simulam aquilo que não são, mais ele é provocado a provar que é mais esperto do que todos. Ironicamente, as mentiras de Ripley são a única coisa real num mundo de simulações e aparências.
O leitor deve lembrar do filme O Talentoso Ripley (1999), com Matt Demon e Jude Law, adaptação do clássico da literatura policial e 1955 de Patricia Highsmith. Acompanhando a adaptação anterior O Sol por Testemunha (1960), o novo clássico de 1999 é um filme com uma linda fotografia colorida entre águas azuis e a paisagem idílica da costa mediterrânea italiana no final dos anos 1950. Jovens ricos e despreocupados se divertem enquanto o trambiqueiro Ripley, vindo dos subterrâneos de Nova York, planeja meticulosamente como roubar a vida e a identidade do descolado Dickie Greenleaf.
O filme Talentoso Ripley é lindo e fotogênico, enquanto o vilão Ripley é sedutor e apaixonado pela vida de Dickie, regada a bebidas, mulheres e jazz bebop.
O problema dessas adaptações é que Ripley é ao mesmo tempo figurado como um criminoso calculista e passional. São adaptações ainda muito presas aos cânones da representação hollywoodiana da maldade: vilões loucos, capazes de matar com um sorriso nos lábios como se o exercício da maldade fosse algo prazeroso em si mesmo.
Porém, como nos descreveu muito bem os libertinos na literatura de Marques de Sade, eles nunca são tomados pela paixão: são neutros, melancólicos, apáticos, estoicos, muito longe da loucura ou obsessão.
A série Netflix Ripley (2024) certamente é a adaptação mais fiel ao personagem atemporal imaginado pela escritora Patrícia Highsmith – uma versão fria e clínica de Tom Ripley como alguém que só fica feliz quando fica satisfeito da sua capacidade de se mais esperto do que as pessoas. E a linda fotografia em preto e branco reforça essa frieza necessária ao personagem. Forçando o espectador a se distanciar e observar a tudo de uma maneira igualmente fria. Bem diferente das cores vibrantes e cenas intensas da adaptação de 1999.
A série encontra a versão mais fiel do famoso trambiqueiro: Tom Ripley não é um vigarista no sentido tradicional – o lucro apenas parece para ele como uma reflexão tardia. É o jogo que importa. Ele só fica realmente confortável quando está mentindo, tecendo narrativas para investigadores policiais ou amigos suspeitos.
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Comparado com o Ripley de Matt Demon, provavelmente o personagem Ripley do diretor e roteirista Steve Zaillian pode ser considerado excessivamente lento. Porém, é o vilão sado-libertino por excelência: nada no que Ripley faça é impulsionado pelo calor da paixão ou emoção. Ele apenas está focado no prazer do jogo em si mesmo.
Também a série Netflix guarda uma atualidade irônica: a relação dos jovens bilionários com a fortuna herdada. A lista Forbes de bilionários de 2024 trouxe uma sombria novidade: pela primeira vez em quinze anos, não há bilionários self-made com menos de 30 anos.
Este ano, as 25 pessoas mais jovens da lista Forbes têm 33 ou menos. Juntos, eles valem US$ 110 bilhões. Alguns são feitos por conta própria, tendo construído empresas notáveis como Snap (Evan Spiegel, 33), Gymshark (Ben Francis, 31) e Oculus VR (Palmer Luckey, 31).
Porém, a maioria teve muita ajuda. Pela primeira vez desde 2009, todo bilionário com menos de 30 anos herdou sua fortuna - o resultado é um sinal de que a “grande transferência de riqueza” começou.
Esses jovens bilionários estão muito bem confortáveis nessa lista, sem a menor culpa ou constrangimentos: viraram bilionários celebridades, incensados nas redes sociais e mídias especializadas em fofocas de gente famosa.
Bem diferente são dos jovens bilionários e descolados de Ripley – Dickie (Johnny Flynn) e sua namorada Marge Sherwood (Dakota Fanning). Ambos se refugiaram na Europa recusando-se a assumir os negócios familiares. Marge tenta sem sucesso virar escritora. E Dickie, um pintor e, quem sabe, também um escritor. Não têm o menor talento, tentam simular talento, respirar a atmosfera de séculos da cultura europeia.
São envergonhados. E é essa vulnerabilidade psicológica (misto de culpa e vergonha) que Tom Ripley quer aproveitar.
A ironia: no passado ainda a culpa assolava os jovens bilionários. Hoje, a cultura da celebridade tornou todos os bilionários em “talentosos Ripley”.
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A Série
No primeiro episódio acompanhamos Andrew Scott interpretando Tom Ripley nas suas origens, no submundo de Nova York: ele é um pequeno escroque, um criminoso fraudulento de baixo nível com algo estéril e morto em seus olhos. Uma versão de Ripley gelada, drenada de cor ou emoção humana – o que só é aprimorado pela fotografia em preto e branco.
Uma criatura amoral, alguém que não cruza os limites do certo e errado: ele simplesmente não os considera.
Ripley é convidado por um magnata da construção naval a encontrar seu filho na Itália, um jovem chamado Dickie Greenleaf, que está desperdiçando o dinheiro da sua família com sua namorada chamada Marge Sherwood.
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Os aspectos da vida de playboy do bilionário casal atiçam ainda mais Ripley. Não porque ele inveje a fortuna dos jovens. Mas porque quer provar a si mesmo que consegue ser mais esperto do que eles., despertando a sua natureza sociopática. Ao longo dos episódios, acompanhamos as medidas drásticas para manter sua nova vida na Itália, mantendo o fluxo dos cheques do patriarca.
Num ritmo bem mais lento do que na adaptação de 1999, acompanhamos como Ripley rouba a vida e identidade de Dickie, enquanto evita Marge para que ela não descubra a verdade.
Zaillian não parece ser nada gentil com seus personagens. Especialmente com Marge. Principalmente porque, de certa forma, em 1961, Marge aponta para o futuro desses jovens bilionários sem nenhum talento, a não ser a de ter tido sorte na loteria genética – involuntariamente ela se transforma numa proto-celebridade.
O desaparecimento de Dickie Greeleaf transforma-se num escândalo midiático italiano e sua namorada, Marge, aproveita para transformar seu livro fotográfico em realidade: sem o menor talento transformar-se em celebridade, figurinha fácil em festas e na imprensa.
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No final, ironicamente parece que a única coisa real na série são os trambiques e as mentiras de Ripley. Dickie e Marge simulam ser pessoas que não são, envergonhados da sua condição ociosa, vivendo à custa da herança de seus pais.
Ao lado dos ratos, Ripley é o “sal da terra” dos subterrâneos de Nova York. Um predador que apenas luta para sobreviver numa sociedade comandada por uma elite absurdamente rica.
A série aponta para a promessa de mais temporadas por vir – a participação especial de John Malkovitch, interpretando um personagem do segundo romance da saga de Ripley de Highsmith, “Ripley Under Ground”, dá uma esperança aos espectadores que terminam os oito episódios com um gostinho de “quero mais”.
Ficha Técnica |
Título: Ripley (série) |
Diretor: Steven Zaillian |
Roteiro: Patrícia Highsmith, Steven Zaillian |
Elenco: Andrew Scott, Dakota Fanning, Johnny Flynn, Vittorio Viviani |
Produção: Dive, Endemol Shine North America |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2024 |
País: EUA |
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