A burocracia da
administração das verbas públicas municipais coloca moradores de uma pequena
cidade em uma situação inusitada: a única solução para obter dinheiro para construir uma fossa séptica e resolver o problema do esgoto a céu aberto é a
produção de um vídeo ficcional sobre esse próprio problema real. A questão é que os moradores não têm a menor
noção sobre produção de um vídeo e nem o significado da palavra “ficcional”. “Saneamento
Básico, O Filme” (2007) de Jorge Furtado não só faz uma didática e divertida metalinguagem
sobre os princípios da linguagem audiovisual, mas nos oferece uma oportunidade
de reflexão sobre como a imagem tornou-se o centro da sociedade atual, como
fetiche, sedução e contaminação do real ao produzir “não-acontecimentos”.
Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso
desde Guy Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o
espetáculo difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em
alienação e a transformação dos homens em simples coisas por meio das
mercadorias. Desde Debord, a imagem é sempre vista através do viés do
parasitismo, isto é, como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria
compreender as verdadeiras necessidades humanas e espirituais.
Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira
ou manipulação.
Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional
(imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade
do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das
linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a
imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das
imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura
constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções
entre ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão
reais quanto as demandas ontológicas do mundo real.
Complicado? Pois o filme brasileiro “Saneamento Básico, O Filme”
apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa
evolução da sociedade do espetáculo.
Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por
Jorge Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória
e bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul.
Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de
moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que
corre a céu aberto.
Quando procuram a prefeitura para solicitar verbas, são
informados que não há dinheiro disponível para a “rubrica saneamento básico”,
mas existe uma verba disponível do governo federal para a produção de um vídeo
educativo no montante de dez mil reais.
O grupo resolve produzir um vídeo de baixíssimo orçamento
para usar a verba restante para a construção da fossa. A partir daí temos
momentos didáticos e de engraçada metalinguagem sobre o cinema: a exigência é
de que o vídeo seja “ficcional”, conceito que o grupo não tem a menor ideia do
que represente. A palavra não tem o menor sentido, já que eles se confrontam
com um problema real (o destino do esgoto) e Marina e Joaquim tiram o sustento
de uma marcenaria cujo dono é o pai Otaviano (Paulo José). Um trabalho
artesanal e pesado. Um universo real demais onde não se encaixa o termo
“ficção”.
Da definição no dicionário sobre o termo, retiram o
argumento da narrativa: se ficção é uma “quimera” e quimera é um tipo de
monstro, resolvem fazem um filme sobre “o monstro da fossa”, cuja estória narra
a morte da heroína Silene (Camila Pitanga) nas mãos de uma terrível mutação
genética surgida no esgoto.
O namorado de Silene, Fabrício (Bruno Garcia) empresta a
câmera e iniciam as filmagens sem a menor noção de roteiro, tomadas, edição e
montagem. Mais uma vez o filme explora a metalinguagem ao explorar as
dificuldades principais que os iniciantes têm ao elaborar um primeiro roteiro
(problemas com princípios técnicos como descrição visual, verossimilhança,
continuidade etc.). Resultado: o filme fica péssimo, muito semelhante ao
resultado dos vídeos feitos por leigos em festas de aniversário.
Entra em ação Zico (Lázaro Ramos), um produtor de vídeos de
festas de casamento e infantis que, maravilhado pela beleza de Silene, aceita
fazer a edição e montagem o que dá um novo enfoque para o vídeo: o vídeo
educativo transforma-se num pastiche de sensualidade, terror e mensagem
ecológica, com efeitos de edição de gosto duvidoso que lembram os primeiros videoclipes
das antigas linhas de edição lineares ou analógicas. Um mix de pornô-chanchada,
retro e trash!
Hiper-real e o "não-acontecimento"
Em uma primeira leitura poderíamos dizer que “Saneamento Básico” faz uma
crítica às leis de apoio à cultura no país. Em uma cena Joaquim se queixa que o
roteiro estava cheio de “frases infilmáveis” (“uma brisa refrescante traz do
vale o aroma das corticeiras em flor” - o clássico erro na descrição visual que
confunde roteiro cinematográfico com literatura). Marina responde que é apenas
“encheção de linguiça”, porque a portaria da lei exige um roteiro de no mínimo
10 páginas. O roteiro é um mero pretexto em busca de dinheiro oficial.
Mas há algo de mais profundo e irônico: a relação de um vídeo que se torna “Cult” ("O Monstro do Fosso") a partir de um problema prosaico e concreto – a necessidade de uma fossa séptica. Um problema real que, para ser resolvido, exige-se que seja feito um video ficcional sobre o próprio problema.
Aqui vai ser necessário incorrer em um pequeno spoiler para
discutirmos a tese que sustenta essa postagem: o primado das imagens.
Inexplicavelmente o filme pornô-terror-trash é aprovado para ser distribuído na
rede escolar pública ("É divertido e longe da chatice dos vídeos educativos”,
afirma um membro do Conselho federal de Educação), torna-se um filme cultuado e Silene vira uma
estrela. A pequena e discreta
cidadezinha da Serra Gaúcha transforma-se em ponto turístico com pousada decorada
com fotogramas do filme para onde os fãs irão para tirar fotos ao lado de desenhos do
“monstro do fosso” e visitar a fossa, o esgoto a céu aberto promovido surpreendentemente
a atração promocional ao filme.
A demanda real (a construção de uma fossa séptica) foi
esquecida. A “fossa” transformou-se em “fosso” e o cheiro e o aspecto fétido do
esgoto a céu aberto em “décor” para um conto de terror. O que chamamos aqui de
primado da imagem é o momento em que ela deixa de ser cópia ou manipulação do
real para tornar-se um simulacro que não apenas estiliza, mas substitui a
própria realidade.
Em postagem anterior (veja links abaixo) discutíamos a noção
de hiper-realidade em um exemplo fornecido pelo filme “Fazenda do Barulho” (Funny Farm, 1988) onde
uma cidade inteira torna-se um cartão postal de Natal ao estilo das capas de
Norman Rockwell para a revista “Saturday Evening Post” para atrair compradores
incautos de uma fazenda.
Se em
toda a História o homem se esforçou a captar a realidade através da imagem
artística e de dispositivos técnicos como cinema e fotografia, agora, dentro do
regime de produção de imagens eletrônico e digital onde a imagem parece superar
a realidade, a situação se inverte: é a realidade que tenta imitar a imagem.
Quando
o real se estiliza para ficar semelhante à representação que a imagem faz do
próprio real temos aquilo que o filósofo francês Jean Baudrillard chamava de “não-acontecimento”:
o real perderia o “tempo forte” da História (acontecimentos impulsionados pela
violência e emergência dos fatores políticos e econômicos) para entrar em um
estranho estado inercial: os acontecimentos devem adquirir uma natureza icônica
para gravitar em torno das ondas concêntricas da mídia – jatos se chocam contra
Word Trade Center em 2001 para criar não um acontecimento que faria parte de
uma luta de conquista do Poder em uma guerra, mas para a criação de um fato fortemente
icônico para que as mídias gravitem em torno dele, repetindo-o como simulação
de História (veja BAUDRILLARD, Jean, A Ilusão do Fim - ou a greve dos acontecimentos, Terramar, 1992).
O pecado original das imagens
Em “Saneamento
Básico” a pequena cidade da Serra Gaúcha é arrancada de seu “tempo histórico”
para gravitar em torno do inesperado sucesso do pornô-trash-terror “O Monstro
do Fosso”: ela deverá se estilizar até se assemelhar e à cenografia do vídeo
para poder atrair turistas e gerar empregos.
No filme
é simbólica a teimosia do velho Otaviano, proprietário da marcenaria, em
resistir à produção do vídeo como solução para angariar dinheiro para a construção
da fossa séptica: ele é o real, lida com madeiras, a matéria-prima em estado
bruto para ser transformada pela História. O fascínio e o progressivo
envolvimento de todos na produção do vídeo é visto com suspeitas por Otaviano,
até ser cooptado pela maioria para estrelar no filme no papel de um cientista
louco. No futuro, sua marcenaria produzirá móveis temáticos sobre o “monstro do
fosso”: a inércia dos acontecimentos através da repetição ad infinitum dos
elementos cenográficos do vídeo trash.
É como
se a cidadezinha do interior gaúcho fosse vítima de um pecado original: arrancada
da sua inocência histórica pela sedução por imagens, é condenada a fazer
metalinguagem de si mesma, perpetuando-se não mais através do real, mas pela
repetição de si mesma como cópia de imagens. As distinções entre real/ilusão ou
verdade/mentira desaparecem: o problema da fossa é esquecido porque, ironicamente,
o esgoto a céu aberto atrai turistas e gera empregos!
A
virtude de “Saneamento Básico, O Filme” é não só fazer uma interessante e
didática metalinguagem sobre os princípios básicos da linguagem audiovisual
como apresentar de forma irônica e divertida o impacto que um audiovisual
produz em uma cidadezinha marcada pela história da imigração italiana no
Brasil: o destino de toda cidade turística de ser arrancada do seu tempo
histórico para a inércia do hiper-realismo dos cartões-postais.
Ficha
técnica:
- Título: Saneamento Básico, O Filme
- Diretor: Jorge Furtado
- Roteiro: Jorge Furtado
- Elenco: Fernanda Tores, Wagner Moura, Paulo José, Camila Pitanga, Bruno Garcia e Lázaro Ramos
- Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
- Distribuição: Columbia Pictures do Brasil
- Ano: 2007
- País: Brasil
Postagens Relacionadas: