Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso desde Guy
Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o espetáculo
difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em alienação
e a transformação dos homens em simples coisas por meio das mercadorias. Desde
Debord, a imagem é sempre vista através do viés do parasitismo, isto é, como
uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria compreender as verdadeiras
necessidades humanas e espirituais.
Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira ou
manipulação.
Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional
(imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade
do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das
linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a
imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das
imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura
constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções entre
ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão reais
quanto as demandas ontológicas do mundo real.
Complicado? Pois o filme brasileiro Saneamento Básico, O Filme
apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa
evolução da sociedade do espetáculo.
Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por Jorge
Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória e
bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul.
Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de
moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que
corre a céu aberto.
Quando procuram a prefeitura para solicitar verbas, são informados
que não há dinheiro disponível para a “rubrica saneamento básico”, mas existe
uma verba disponível do governo federal para a produção de um vídeo educativo
no montante de dez mil reais.
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O grupo resolve produzir um vídeo de baixíssimo orçamento para
usar a verba restante para a construção da fossa. A partir daí temos momentos
didáticos e de engraçada metalinguagem sobre o cinema: a exigência é de que o
vídeo seja “ficcional”, conceito que o grupo não tem a menor ideia do que
represente. A palavra não tem o menor sentido, já que eles se confrontam com um
problema real (o destino do esgoto) e Marina e Joaquim tiram o sustento de uma
marcenaria cujo dono é o pai Otaviano (Paulo José). Um trabalho artesanal e
pesado. Um universo real demais onde não se encaixa o termo “ficção”.
Da definição no dicionário sobre o termo, retiram o argumento da
narrativa: se ficção é uma “quimera” e quimera é um tipo de monstro, resolvem
fazem um filme sobre “o monstro da fossa”, cuja estória narra a morte da
heroína Silene (Camila Pitanga) nas mãos de uma terrível mutação genética
surgida no esgoto.
O namorado de Silene, Fabrício (Bruno Garcia) empresta a câmera e
iniciam as filmagens sem a menor noção de roteiro, tomadas, edição e montagem.
Mais uma vez o filme explora a metalinguagem ao explorar as dificuldades
principais que os iniciantes têm ao elaborar um primeiro roteiro (problemas com
princípios técnicos como descrição visual, verossimilhança, continuidade etc.).
Resultado: o filme fica péssimo, muito semelhante ao resultado dos vídeos
feitos por leigos em festas de aniversário.
Entra em ação Zico (Lázaro Ramos), um produtor de vídeos de festas
de casamento e infantis que, maravilhado pela beleza de Silene, aceita fazer a
edição e montagem o que dá um novo enfoque para o vídeo: o vídeo educativo
transforma-se num pastiche de sensualidade, terror e mensagem ecológica, com
efeitos de edição de gosto duvidoso que lembram os primeiros videoclipes das
antigas linhas de edição lineares ou analógicas. Um mix de pornochanchada,
retro e trash!
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Hiper-real e o "não-acontecimento"
Em uma primeira leitura poderíamos dizer que “Saneamento Básico”
faz uma crítica às leis de apoio à cultura no país. Em uma cena Joaquim se
queixa que o roteiro estava cheio de “frases infilmáveis” (“uma brisa
refrescante traz do vale o aroma das corticeiras em flor” - o clássico erro na
descrição visual que confunde roteiro cinematográfico com literatura). Marina
responde que é apenas “encheção de linguiça”, porque a portaria da lei exige um
roteiro de no mínimo 10 páginas. O roteiro é um mero pretexto em busca de
dinheiro oficial.
Mas há algo de mais profundo e irônico: a relação de um vídeo que
se torna “Cult” ("O Monstro do Fosso") a partir de um problema
prosaico e concreto – a necessidade de uma fossa séptica. Um problema real que,
para ser resolvido, exige-se que seja feito um vídeo ficcional sobre o próprio
problema.
Aqui vai ser necessário incorrer em um pequeno spoiler para
discutirmos a tese que sustenta essa postagem: o primado das imagens.
Inexplicavelmente o filme pornô-terror-trash é aprovado para ser distribuído na
rede escolar pública ("É divertido e longe da chatice dos vídeos
educativos”, afirma um membro do Conselho federal de Educação), torna-se um
filme cultuado e Silene vira uma estrela. A pequena e discreta
cidadezinha da Serra Gaúcha transforma-se em ponto turístico com pousada
decorada com fotogramas do filme para onde os fãs irão para tirar fotos ao lado
de desenhos do “monstro do fosso” e visitar a fossa, o esgoto a céu aberto
promovido surpreendentemente a atração promocional ao filme.
A demanda real (a construção de uma fossa séptica) foi esquecida.
A “fossa” transformou-se em “fosso” e o cheiro e o aspecto fétido do esgoto a
céu aberto em “décor” para um conto de terror. O que chamamos aqui de primado
da imagem é o momento em que ela deixa de ser cópia ou manipulação do real para
tornar-se um simulacro que não apenas estiliza, mas substitui a própria
realidade.
Em postagem anterior (veja links abaixo) discutíamos a noção de
hiper-realidade em um exemplo fornecido pelo filme Fazenda do Barulho (Funny
Farm, 1988) onde uma cidade inteira torna-se um cartão postal de Natal ao
estilo das capas de Norman Rockwell para a revista “Saturday Evening Post” para
atrair compradores incautos de uma fazenda.
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Se em toda a História o homem se esforçou a captar a realidade
através da imagem artística e de dispositivos técnicos como cinema e
fotografia, agora, dentro do regime de produção de imagens eletrônico e digital
onde a imagem parece superar a realidade, a situação se inverte: é a realidade
que tenta imitar a imagem.
Quando o real se estiliza para ficar semelhante à representação
que a imagem faz do próprio real temos aquilo que o filósofo francês Jean
Baudrillard chamava de “não-acontecimento”: o real perderia o “tempo forte” da
História (acontecimentos impulsionados pela violência e emergência dos fatores
políticos e econômicos) para entrar em um estranho estado inercial: os
acontecimentos devem adquirir uma natureza icônica para gravitar em torno das
ondas concêntricas da mídia – jatos se chocam contra Word Trade Center em 2001
para criar não um acontecimento que faria parte de uma luta de conquista do
Poder em uma guerra, mas para a criação de um fato fortemente icônico para que
as mídias gravitem em torno dele, repetindo-o como simulação de História (veja
BAUDRILLARD, Jean, A Ilusão do Fim - ou a greve dos acontecimentos,
Terramar, 1992).
O pecado original das imagens
Em “Saneamento Básico” a pequena cidade da Serra Gaúcha é
arrancada de seu “tempo histórico” para gravitar em torno do inesperado sucesso
do pornô-trash-terror “O Monstro do Fosso”: ela deverá se estilizar até se
assemelhar e à cenografia do vídeo para poder atrair turistas e gerar empregos.
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No filme é simbólica a teimosia do velho Otaviano, proprietário da
marcenaria, em resistir à produção do vídeo como solução para angariar dinheiro
para a construção da fossa séptica: ele é o real, lida com madeiras, a
matéria-prima em estado bruto para ser transformada pela História. O fascínio e
o progressivo envolvimento de todos na produção do vídeo é visto com suspeitas
por Otaviano, até ser cooptado pela maioria para estrelar no filme no papel de
um cientista louco. No futuro, sua marcenaria produzirá móveis temáticos sobre
o “monstro do fosso”: a inércia dos acontecimentos através da repetição ad
infinitum dos elementos cenográficos do vídeo trash.
É como se a cidadezinha do interior gaúcho fosse vítima de um
pecado original: arrancada da sua inocência histórica pela sedução por imagens,
é condenada a fazer metalinguagem de si mesma, perpetuando-se não mais através
do real, mas pela repetição de si mesma como cópia de imagens. As distinções
entre real/ilusão ou verdade/mentira desaparecem: o problema da fossa é
esquecido porque, ironicamente, o esgoto a céu aberto atrai turistas e gera
empregos!
A virtude de Saneamento Básico, O Filme é não só fazer uma
interessante e didática metalinguagem sobre os princípios básicos da linguagem
audiovisual como apresentar de forma irônica e divertida o impacto que um
audiovisual produz em uma cidadezinha marcada pela história da imigração
italiana no Brasil: o destino de toda cidade turística de ser arrancada do seu
tempo histórico para a inércia do hiper-realismo dos cartões-postais.
Ficha Técnica |
Título: Saneamento
Básico, O Filme |
Diretor: Jorge
Furtado |
Roteiro: Jorge Furtado |
Elenco: Fernanda Tores, Wagner Moura, Paulo José,
Camila Pitanga, Bruno Garcia e Lázaro Ramos |
Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre |
Distribuição: Vitrine Filmes |
Ano: 2007 |
País: Brasil |