sexta-feira, setembro 12, 2025

O horror cósmico Lovecraftiano foi o nosso futuro no filme 'Bunker'


Guerras e campos de batalhas por si só já são aterrorizantes. São poucos os filmes que acrescentam o elemento sobrenatural na conflagração militar. “Bunker” (2022) narra um contexto bem particular das terríveis guerras de trincheiras da I Guerra Mundial - péssimas condições sanitárias, lama, ratos e parasitas, que resultavam em doenças e sofrimento numa batalha estagnada. um grupo de soldados se encontra preso em um pequeno e claustrofóbico bunker. Enquanto esperam pelo resgate, eles começam a vivenciar estranhos eventos sobrenaturais. Mas de um horror bem particular: o horror cósmico Lovecraftiano que dá um significado simbólico – o início da “Era dos Extremos” do séculos XX e XXI em que a moralidade, dignidade e ética dos velhos campos de batalha são substituídos pela “guerra total”, amoral e tecnológica. Somente o horror cósmico de H.P. Lovecraft para representar esse novo mundo amoral e indiferente que estava surgindo.

Por si mesmos os acontecimentos da guerra são tão aterrorizantes que o cinema e audiovisual raramente recorrem ao sobrenatural para retratar o pavor e o horror de um campo de batalha. Principalmente filmes sobre a Primeira Guerra Mundial, conflito notabilizado pelas condições abomináveis das trincheiras - a guerra de trincheiras foi um tipo de combate em que os dois lados construíram longas linhas de trincheiras para se defender e lutar um contra o outro. 

A vida nas trincheiras era caracterizada por péssimas condições sanitárias, lama, ratos e parasitas, que resultavam em doenças e sofrimento. Um tipo de guerra estacionária marcada pelo uso de longas e complexas linhas de trincheiras, arame farpado e campos de minas, resultando num combate estagnado e de atrito com baixa mobilidade.

Foi a Guerra Mundial que abriu o século XX, revelando que aquele século seria notabilizado como “A Era dos Extremos”, como denominou o historiador Eric Hobsbawm – a brutal transição da era do colonialismo britânico e da moralidade vitoriana para a guerra total amoral que marcaria a ascensão do nazi-fascismo e a vitória aliada que iniciaria o novo império norte-americano.

O filósofo Walter Benjamin registrou essa mudança com o que ele chamou de “estado de choque” criado por esse novo tipo de guerra, tecnológica. Benjamin observou que, ao contrário das guerras napoleônicas em que os soldados retornavam cheios de histórias para narrar, agora retornavam silenciosos, pobres em experiências comunicáveis. Uma geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da História.

“Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizantes que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes”. Assim Walter Benjamin descrevia uma nova época que surgia, de fenômenos tão extremos que estariam além da capacidade cognitiva humana de absorção, processamento e verbalização. Puro impacto, estado de choque, “guerra pura” (Paul Virilio). Só nos restaria o silêncio – sobre isso, leia BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” – clique aqui.



Essas novas condições, principalmente as condições abomináveis ​​nas trincheiras, o trauma causado pelo choque de granadas e a carnificina em massa por si fornecem amplo material para provocar terror e pavor. O próprio horror da guerra, sem a necessidade do elemento sobrenatural.

Mas o filme Bunker, é uma das exceções. O roteirista Michael Huntsman e o diretor Adrian Langley ambientaram seu filme de guerra Bunker (2023) em um cenário paranormal para exacerbar os horrores sentidos pelos soldados durante o período.

A grande virtude do filme é que o elemento sobrenatural não é inserido de uma forma arbitrária, como mais uma situação de horror que os soldados terão que enfrentar. Não, o Mal é inserido de uma forma, por assim dizer, orgânica – quase como uma síntese simbólica não só pelo que estão passando, mas pelo que ainda a humanidade passará. Como se o Mal ali presente naquela trincheira representasse o futuro, após aquela época de transição que representou a Guerra de Trincheiras.

A ameaça sobrenatural é na verdade uma alegoria, uma crítica contundente à política de guerra. Uma ameaça que os próprios alemães, horrorizados, tentaram selar e bombardear. Mas os incautos soldados aliados abriram o bunker selado para deixar o Mal escapar e se espalhar pelo mundo. Para a próxima Guerra Mundial que não tardaria.

Como veremos, o Mal típico de H.P. Lovecraft. O Mal marcado pela indiferença cósmica com a humanidade, dotado de uma amoralidade e de uma forma de propagação viral – inclusive com a presença simbólica dos meios de comunicação, no filme representado por um aparelho de transmissão de rádio.

O “Anjo da Guerra”, como tentam definir os horrorizados soldados. Um “Anjo” que busca receptáculos inocentes para se aproveitar e se espalhar. Os próprios alemães tentaram acabar com o monstro explodindo-o dentro do bunker. No entanto, o “Anjo da Guerra” é liberto inadvertidamente pela perspectiva aliada de uma vitória fácil. Representando as tendências violentas da humanidade continuarem a instigar um conflito após o outro.



Um dos aspectos mais marcantes do filme é sua cinematografia e a narrativa em “queima lenta”. O uso da iluminação e do enquadramento por Langley cria enquadramentos verdadeiramente hipnotizantes, principalmente nas cenas em que os personagens navegam pelo bunker escuro como breu com apenas um isqueiro. A tensão aumenta à medida que eles lutam para encontrar energia para iluminar as coisas, e quando a energia finalmente volta, você sabe que algo terrível está prestes a acontecer.

O uso de closes por Langley para capturar o medo dos personagens lembra o estilo de Stanley Kubrick em O Iluminado – o horror psicológico não por aquilo que vemos diretamente, mas pelo horror estampado no rosto dos personagens. E as cenas através das máscaras de gás dão um toque único que contribui para a atmosfera assustadora do filme.

O Filme

Bunker começa em um posto avançado inglês liderado pelo arrogante e presunçoso Tenente Turner (Patrick Moltane) durante a Primeira Guerra Mundial. A equipe de Turner inclui o Soldado Gray (Mike Mihm), o Cabo Walker (Adriano Gatto) e um jovem soldado, Lewis (Quinn Moran).

Em meio a uma batalha em andamento, um capitão americano, Hall (Sean Cullen), traz dois de seus soldados, o Soldado Segura (Eddie Ramos) e o Soldado Baker (Julian Feder), para ajudar Turner. Segura é médico, tendo estudado medicina antes de entrar na guerra, enquanto Baker é apenas um adolescente de dezoito anos.

Enquanto Lewis vigia o posto avançado inimigo, de repente percebe que todos os soldados alemães aparentemente fugiram do próprio bunker. Turner sugere que eles se dirijam a trincheira alemã e assumam o controle – não sem antes notificar os superiores para reportar a fácil vitória.

Enquanto se arrastam em direção ao posto avançado, Baker é atacado por um soldado alemão que, aparentemente, ficou para trás. Baker não tem escolha a não ser esfaquear o homem. Ao chegarem ao posto avançado, os soldados ingleses e americanos encontram um bunker misteriosamente lacrado por fora. Criando uma situação de interpretação ambígua: os alemães se retiraram como estratégia militar ou fugiram de alguma coisa? Parece que figuram tentando prender algo no interior daquele bunker.

Uma bomba jogada mais tarde por um avião naquele bunker, dá a entender que os alemães ainda tentam destruir alguma coisa que ficou por lá.



Ao entrarem, encontram um alemão (Luke Baines) crucificado em tábuas e arame, mas ainda vivo. Turner ordena que seus soldados o tragam para interrogá-lo. Quando o grupo está prestes a deixar o bunker, um bombardeio do lado de fora derruba pedras pesadas e gás venenoso, matando Hall e Gray e ferindo Walker. Os homens restantes ficam presos dentro do bunker — e logo percebem que uma presença maligna espreita no espaço e planeja levá-los à loucura.

Da pior maneira possível saberão que os alemães não abandonaram o Bunker por motivos estratégico-militares. Mas fugiram de alguma presença que descobriram nos túneis daquele bunker.

O Mal Lovecraftiano – Alerta de Spoilers à frente

Tudo começa pelo simbolismo do rádio. Com o aparelho, comunicavam-se supostamente com outras trincheiras aliadas próximas. percebe que ele nunca esteve conectado — sua única fonte de conexão eram as videiras malignas que estão crescendo no bunker. Na verdade, extensões sensíveis de alguma entidade maligna orgânica oculta.

Portanto, o tempo todo estavam falando com a entidade maligna, e não com as autoridades militares. Ou seja, o tempo todo estavam sendo manipulados com algum tipo de inteligência do Mal.

Segura força Kurt, sob a mira de uma arma, a revelar o mal no bunker. Kurt finalmente menciona que o mal no bunker é o "Anjo da Guerra" — um mal ancestral que precisa de conflito e horror para se espalhar. Como a guerra fornece uma via para o conflito, esse mal se torna poderoso e continua a consumir tudo o que encontra por esse caminho.

Kurt revela ainda que este Anjo maligno o escolheu como seu veículo de propagação. Nos flashbacks do filme, também vemos um jovem Kurt viajando pela floresta e se deparando com o Mal — o que provavelmente ocorreu quando o Anjo o escolheu como hospedeiro. Assim, a voz maligna usou o rádio para alertar os soldados a protegerem Kurt — já que era o principal veículo do mal para se espalhar.


Fica claro em Bunker, o “período de transição” em que estão vivendo: os diálogos entre oficiais e soldados é regido ainda por uma moralidade, dignidade e etiqueta vitorianas – épocas em que ainda as guerras eram regidas por códigos de honra e a ética dos campos de batalha.

A nova era que se descortina é da guerra total, da tecnologia e da amoralidade – uma guerra não mais decidida pela infantaria, no corpo a corpo e nas estratégias enxadrísticas de campo de batalha. Não, o século XX que se inicia é a da “Era dos Extremos”: soldados largados estagnados em trincheiras, unicamente para funcionarem como bucha de canhão. Enquanto a aviação e os gases venenosos largados pelas bombas fazem o serviço decisivo.

O “Anjo da Guerra”, a qual nomeiam a entidade, é o Mal Lovecraftiano, presença recorrente nos filmes de horror desse século. De 204 produções audiovisuais (entre longas, curtas e minisséries), 74% dos títulos estão nesse século. O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982) de John Carpenter (na verdade, um filme inspirado num conjunto de contos de Lovecraft), Re-Animator (1985) e From Beyond (1986), ambos de Stuart Gordon) são as melhores adaptações do século passado.

The Seed (2021), The Outwaters (2022), Color Out of Space (2019), Intersect (2020), The Beach House (2020) são alguns exemplos da recorrência do horror cósmico de Lovecraft nesse século. 

Representa o Mal como a indiferença cósmica – a História e o Cosmos são indiferentes à civilização humana e a sua moralidade.

Em Bunker temos o horror biológico: uma entidade orgânica misteriosa que se propaga através de assustadoras videira e raízes que se propagam pelo Bunker. O Mal que apenas sobreviver, alimentando-se do medo e do ódio produzido pelas guerras.


 

Ficha Técnica 


Título: Bunker 

Diretor: Adrian Langley

Roteiro: Michael Huntsman

Elenco: Patrick Moltane, Eddie Ramos, Luke Baines, Julian Feder, Quinn Moran

Produção: Buffalo Filmworks, Crossroads Production

Distribuição:  Elite Filmes

Ano: 2022

País: EUA



Postagens Relacionadas

 

Filme "Color Out of Space": por que o cinema do século XXI ama HP Lovecraft?

 

 

Sangue, areia e Lovecraft no filme 'The Outwaters'

 

 


'O Grande Hotel Budapeste': lapsos de civilização no matadouro que conhecemos como humanidade

 


Jacques Lacan e H.P. Lovecraft se encontram no filme 'Significant Other'

 

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review