Guerras e campos de batalhas por si só já são aterrorizantes. São poucos os filmes que acrescentam o elemento sobrenatural na conflagração militar. “Bunker” (2022) narra um contexto bem particular das terríveis guerras de trincheiras da I Guerra Mundial - péssimas condições sanitárias, lama, ratos e parasitas, que resultavam em doenças e sofrimento numa batalha estagnada. um grupo de soldados se encontra preso em um pequeno e claustrofóbico bunker. Enquanto esperam pelo resgate, eles começam a vivenciar estranhos eventos sobrenaturais. Mas de um horror bem particular: o horror cósmico Lovecraftiano que dá um significado simbólico – o início da “Era dos Extremos” do séculos XX e XXI em que a moralidade, dignidade e ética dos velhos campos de batalha são substituídos pela “guerra total”, amoral e tecnológica. Somente o horror cósmico de H.P. Lovecraft para representar esse novo mundo amoral e indiferente que estava surgindo.
Por si mesmos os acontecimentos da guerra são tão aterrorizantes
que o cinema e audiovisual raramente recorrem ao sobrenatural para retratar o
pavor e o horror de um campo de batalha. Principalmente filmes sobre a Primeira
Guerra Mundial, conflito notabilizado pelas condições abomináveis das
trincheiras - a guerra de trincheiras foi um tipo de combate em que os dois
lados construíram longas linhas de trincheiras para se defender e lutar um
contra o outro.
A vida nas trincheiras era caracterizada por péssimas condições
sanitárias, lama, ratos e parasitas, que resultavam em doenças e
sofrimento. Um tipo de guerra estacionária marcada pelo uso de longas e
complexas linhas de trincheiras, arame farpado e campos de minas, resultando
num combate estagnado e de atrito com baixa mobilidade.
Foi a Guerra Mundial que abriu o século XX, revelando que aquele
século seria notabilizado como “A Era dos Extremos”, como denominou o
historiador Eric Hobsbawm – a brutal transição da era do colonialismo britânico
e da moralidade vitoriana para a guerra total amoral que marcaria a ascensão do
nazi-fascismo e a vitória aliada que iniciaria o novo império norte-americano.
O filósofo Walter Benjamin registrou essa mudança com o que ele
chamou de “estado de choque” criado por esse novo tipo de guerra, tecnológica.
Benjamin observou que, ao contrário das guerras napoleônicas em que os soldados
retornavam cheios de histórias para narrar, agora retornavam silenciosos,
pobres em experiências comunicáveis. Uma geração que entre 1914 e 1918 viveu
uma das mais terríveis experiências da História.
“Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizantes
que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência
econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral
pelos governantes”. Assim Walter Benjamin descrevia uma nova época que surgia, de
fenômenos tão extremos que estariam além da capacidade cognitiva humana de
absorção, processamento e verbalização. Puro impacto, estado de choque, “guerra
pura” (Paul Virilio). Só nos restaria o silêncio – sobre isso, leia BENJAMIN,
Walter. “Experiência e Pobreza” – clique aqui.
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Essas novas condições, principalmente as condições abomináveis
nas trincheiras, o trauma causado pelo choque de granadas e a carnificina em
massa por si fornecem amplo material para provocar terror e pavor. O
próprio horror da guerra, sem a necessidade do elemento sobrenatural.
Mas o filme Bunker, é uma das exceções. O roteirista Michael
Huntsman e o diretor Adrian Langley ambientaram seu filme de guerra Bunker
(2023) em um cenário paranormal para exacerbar os horrores sentidos pelos
soldados durante o período.
A grande virtude do filme é que o elemento sobrenatural não é
inserido de uma forma arbitrária, como mais uma situação de horror que os
soldados terão que enfrentar. Não, o Mal é inserido de uma forma, por assim
dizer, orgânica – quase como uma síntese simbólica não só pelo que estão
passando, mas pelo que ainda a humanidade passará. Como se o Mal ali presente
naquela trincheira representasse o futuro, após aquela época de transição que
representou a Guerra de Trincheiras.
A ameaça sobrenatural é na verdade uma alegoria, uma crítica
contundente à política de guerra. Uma ameaça que os próprios alemães,
horrorizados, tentaram selar e bombardear. Mas os incautos soldados aliados
abriram o bunker selado para deixar o Mal escapar e se espalhar pelo mundo.
Para a próxima Guerra Mundial que não tardaria.
Como veremos, o Mal típico de H.P. Lovecraft. O Mal marcado pela
indiferença cósmica com a humanidade, dotado de uma amoralidade e de uma forma
de propagação viral – inclusive com a presença simbólica dos meios de
comunicação, no filme representado por um aparelho de transmissão de rádio.
O “Anjo da Guerra”, como tentam definir os horrorizados soldados.
Um “Anjo” que busca receptáculos inocentes para se aproveitar e se espalhar. Os
próprios alemães tentaram acabar com o monstro explodindo-o dentro do bunker.
No entanto, o “Anjo da Guerra” é liberto inadvertidamente pela perspectiva
aliada de uma vitória fácil. Representando as tendências violentas da
humanidade continuarem a instigar um conflito após o outro.
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Um dos aspectos mais marcantes do filme é sua cinematografia e a
narrativa em “queima lenta”. O uso da iluminação e do enquadramento por Langley
cria enquadramentos verdadeiramente hipnotizantes, principalmente nas cenas em
que os personagens navegam pelo bunker escuro como breu com apenas um isqueiro.
A tensão aumenta à medida que eles lutam para encontrar energia para iluminar
as coisas, e quando a energia finalmente volta, você sabe que algo terrível
está prestes a acontecer.
O uso de closes por Langley para capturar o medo dos personagens
lembra o estilo de Stanley Kubrick em O Iluminado – o horror
psicológico não por aquilo que vemos diretamente, mas pelo horror estampado no
rosto dos personagens. E as cenas através das máscaras de gás dão um toque
único que contribui para a atmosfera assustadora do filme.
O Filme
Bunker começa em um posto avançado
inglês liderado pelo arrogante e presunçoso Tenente Turner (Patrick Moltane)
durante a Primeira Guerra Mundial. A equipe de Turner inclui o Soldado Gray
(Mike Mihm), o Cabo Walker (Adriano Gatto) e um jovem soldado, Lewis (Quinn
Moran).
Em meio a uma batalha em andamento, um capitão americano, Hall
(Sean Cullen), traz dois de seus soldados, o Soldado Segura (Eddie Ramos) e o
Soldado Baker (Julian Feder), para ajudar Turner. Segura é médico, tendo
estudado medicina antes de entrar na guerra, enquanto Baker é apenas um
adolescente de dezoito anos.
Enquanto Lewis vigia o posto avançado inimigo, de repente percebe
que todos os soldados alemães aparentemente fugiram do próprio bunker. Turner
sugere que eles se dirijam a trincheira alemã e assumam o controle – não sem
antes notificar os superiores para reportar a fácil vitória.
Enquanto se arrastam em direção ao posto avançado, Baker é atacado
por um soldado alemão que, aparentemente, ficou para trás. Baker não tem
escolha a não ser esfaquear o homem. Ao chegarem ao posto avançado, os soldados
ingleses e americanos encontram um bunker misteriosamente lacrado por fora.
Criando uma situação de interpretação ambígua: os alemães se retiraram como
estratégia militar ou fugiram de alguma coisa? Parece que figuram tentando
prender algo no interior daquele bunker.
Uma bomba jogada mais tarde por um avião naquele bunker, dá a
entender que os alemães ainda tentam destruir alguma coisa que ficou por lá.
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Ao entrarem, encontram um alemão (Luke Baines) crucificado em
tábuas e arame, mas ainda vivo. Turner ordena que seus soldados o tragam para
interrogá-lo. Quando o grupo está prestes a deixar o bunker, um bombardeio do
lado de fora derruba pedras pesadas e gás venenoso, matando Hall e Gray e
ferindo Walker. Os homens restantes ficam presos dentro do bunker — e logo
percebem que uma presença maligna espreita no espaço e planeja levá-los à
loucura.
Da pior maneira possível saberão que os alemães não abandonaram o
Bunker por motivos estratégico-militares. Mas fugiram de alguma presença que
descobriram nos túneis daquele bunker.
O Mal Lovecraftiano – Alerta de Spoilers à frente
Tudo começa pelo simbolismo do rádio. Com o aparelho,
comunicavam-se supostamente com outras trincheiras aliadas próximas. percebe
que ele nunca esteve conectado — sua única fonte de conexão eram as videiras
malignas que estão crescendo no bunker. Na verdade, extensões sensíveis de
alguma entidade maligna orgânica oculta.
Portanto, o tempo todo estavam falando com a entidade maligna, e
não com as autoridades militares. Ou seja, o tempo todo estavam sendo
manipulados com algum tipo de inteligência do Mal.
Segura força Kurt, sob a mira de uma arma, a revelar o mal no
bunker. Kurt finalmente menciona que o mal no bunker é o "Anjo da
Guerra" — um mal ancestral que precisa de conflito e horror para se
espalhar. Como a guerra fornece uma via para o conflito, esse mal se torna
poderoso e continua a consumir tudo o que encontra por esse caminho.
Kurt revela ainda que este Anjo maligno o escolheu como seu
veículo de propagação. Nos flashbacks do filme, também vemos um jovem Kurt
viajando pela floresta e se deparando com o Mal — o que provavelmente ocorreu
quando o Anjo o escolheu como hospedeiro. Assim, a voz maligna usou o rádio
para alertar os soldados a protegerem Kurt — já que era o principal veículo do
mal para se espalhar.
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Fica claro em Bunker, o “período de transição” em que estão
vivendo: os diálogos entre oficiais e soldados é regido ainda por uma
moralidade, dignidade e etiqueta vitorianas – épocas em que ainda as guerras
eram regidas por códigos de honra e a ética dos campos de batalha.
A nova era que se descortina é da guerra total, da tecnologia e da
amoralidade – uma guerra não mais decidida pela infantaria, no corpo a corpo e nas
estratégias enxadrísticas de campo de batalha. Não, o século XX que se inicia é
a da “Era dos Extremos”: soldados largados estagnados em trincheiras,
unicamente para funcionarem como bucha de canhão. Enquanto a aviação e os gases
venenosos largados pelas bombas fazem o serviço decisivo.
O “Anjo da Guerra”, a qual nomeiam a entidade, é o Mal
Lovecraftiano, presença recorrente nos filmes de horror desse século. De 204
produções audiovisuais (entre longas, curtas e minisséries), 74% dos títulos
estão nesse século. O Enigma de Outro Mundo (The Thing,
1982) de John Carpenter (na verdade, um filme inspirado num conjunto de contos
de Lovecraft), Re-Animator (1985) e From Beyond (1986),
ambos de Stuart Gordon) são as melhores adaptações do século passado.
The Seed (2021), The Outwaters
(2022), Color Out of Space (2019), Intersect (2020), The Beach
House (2020) são alguns exemplos da recorrência do horror cósmico de
Lovecraft nesse século.
Representa o Mal como a indiferença cósmica – a História e o
Cosmos são indiferentes à civilização humana e a sua moralidade.
Em Bunker temos o horror biológico: uma entidade orgânica misteriosa
que se propaga através de assustadoras videira e raízes que se propagam pelo
Bunker. O Mal que apenas sobreviver, alimentando-se do medo e do ódio produzido
pelas guerras.
Ficha
Técnica |
Título: Bunker |
Diretor: Adrian Langley |
Roteiro: Michael Huntsman |
Elenco: Patrick Moltane, Eddie
Ramos, Luke Baines, Julian Feder, Quinn Moran |
Produção: Buffalo Filmworks,
Crossroads Production |
Distribuição: Elite Filmes |
Ano: 2022 |
País: EUA |