É uma coincidência significativa o filme de David Byrne e Talking Heads, “True Stories” (1986) ter sido relançado pela Criterium Collection, em DVD e Blu-Ray, em 2018. Assim como o seu relançamento ocorreu em meio do governo de extrema-direita de Donald Trump, seu lançamento nos anos 1980 foi no meio do governo também conservador de Ronald Reagan. Naquele momento, reeleito. Byrne vai ao encontro de personagens inspirados em histórias de tabloides dos EUA: tipos da América Profunda na cidade fictícia de Virgil, Texas. Uma espécie de Vale do Silício texano, na qual o futurismo das novas tecnologias não é o suficiente para alterar a moralidade e a cultura conservadora de pessoas que não querem saber de justiça ou liberdade – tudo que querem é serem “dignas do amor”. “True Stories” ilustra o principal insight freudiano de “Psicologia de Massas e Análise do Ego”: mais do que a morte, o que mais tememos é não sermos amados.
Era o ano de 2018. David Byrne (ex-líder da banda Talking Heads) estava exultante na sala de conferências, dentro do escritório da The Criterion Collection em Nova York – distribuidora especializada em filmes clássicos e cults contemporâneos.
Tendo ao fundo pôsteres de filmes clássicos como Black Peter, de Milos Forman, e Julieta dos Espíritos, de Federico Fellini, Byrne estava muito feliz de ver True Stories (1986, filme escrito por ele com a trilha dos Talking Heads) ser relançado em DVD e Blu-Ray pela Criterion, tornando-se um clássico novo clássico na lista da distribuidora.
A edição Criterium Collection lançada em novembro de 2018 em DVD e Blu-Ray possui vídeo e áudio remasterizados, vários making-ofs, álbum da trilha sonora, cenas deletadas e reproduções de algumas histórias de tabloides que inspiraram a história e ensaios sobre a importância do filme.
É sincrônico o filme ser relançado num país que estava em meio ao governo republicano do presidente de extrema-direita Donald Trump. Também em 1986, True Stories estreou em meio a outro governo de direita republicano, o do presidente Ronald Reagan.
Ex-ator canastrão da era de ouro dos estúdios de Hollywood, foi eleito em 1980 (e depois reeleito) com a missão de resgatar o orgulho patriótico de uma país que saia derrotado e com baixa autoestima dos anos 1970. A derrota militar no Vietnã (com uma fuga vexatória de Saigon), tensões raciais e a crise dos reféns da embaixada dos EUA no Irã, durante a Revolução Islâmica. Além da crise econômico que levou à falência cidades como Detroit e Nova York.
Resgatar o patriotismo e tornar os EUA novamente numa potência militar respeitada tornou-se uma bandeira republicana de extrema-direita. No final da década de 1970 sentiam-se os sinais dessa guinada geopolítica. E David Byrne com os Talking Heads eram um daqueles que pressentia tempos de neoconservadorismo na cultura. Músicas da banda como “Life During Wartime” (“Isso não é uma festa, não é uma discoteca/eu não tenho tempo para isso agora) ou “Warning Sign” (“Sinal de aviso do que está por vir/O amor está aqui, mas eu acho que já passou, se apresse querida”) já eram advertências dos novos/velhos tempos que se aproximavam. E chagaram com o neoconservadorismo de Reagan.
E, assim como foi na Era Trump, o empoderamento da chamada “América Profunda” de red necksconfederados. Porém, um conservadorismo repaginado com uma capa high tech: Steve Jobs prometia uma revolução com os computadores pessoais e Reagan lançava o projeto Guerra nas Estrelas para os EUA garantissem a hegemonia do espaço na Guerra Fria.
É sobre isso que trata o filme True Stories. Porém, sem o peso de uma narrativa explicitamente política – o filme trabalha com um senso de humor sutil, seguindo a linha das “estratégias oblíquas” ou “meditações alienadas”, como bem ensinou o músico e produtor que é uma verdadeira eminência parda no rock: Brian Eno, uma espécie de “quinto elemento” dos Talking Heads em discos como “Fear of Music” (1979) e “Remain in the Light” (1980).
David Byrne atua e narra o filme, como um visitante que chega à cidade fictícia de Virgil, Texas. Suas falas são como meditações aleatórias sobre coisas às vezes insignificantes, como estradas, um carro, um vestido etc. Através de uma presumível alienação (Byrne chega como um estrangeiro, perdido naquela cultura da América Profunda e conservadora) consegue criar diálogos e cenas espontâneas que extrair a universalidade da banalidade do cotidiano.
Por trás de um desfile de personagens excêntricos (com suas “histórias verdadeiras”), Byrne conseguiu montar um complexo painel cultural daquilo que animava o conservadorismo da Era Reagan (e, em consequência, a Era Trump): como uma cidade que gira em torno da tecnologia que iria revolucionar o planeta (uma fábrica de mainframes, semicondutores, processadores e microchips) pode ser, paradoxalmente, cultural e psiquicamente tão conservadora? Como o progresso pode conviver tranquilamente com o conservadorismo?
Uma América que permanece a mesma, apesar de fabricar o futuro. Freud explica a América Profunda em True Stories.
O Filme
True Stories se desenrola através de uma série de vinhetas ou esquetes, todas elas centradas no observador/narrador David Byrne. Um estranho sem nome, com chapéu de cowboy e roupas western estereotipadas – uma ironia: suas roupas são o clichê urbano do modo de vida country ou western.
Byrne observa e faz pequenos comentários enquanto os moradores se preparam para um evento tradicional na pequena cidade texana de Virgil: a “Celebração do Especialismo”, uma espécie de show de talentos locais.
Os personagens excêntricos e peculiares foram inspirados em histórias lidas por David Byrne em jornais tabloides sensacionalistas nos EUA. As “histórias verdadeiras” variam do mundano (o casal feliz, mas que não se fala há quinze anos), passando pelo conspiratório (o código de barras presente em todos os produtos seria o sinal da proximidade do Anticristo) chegando ao mágico (um feiticeiro de “santeria”).
Miss Rolling (Swoosie Kurtz) é a “Lazy Woman”, uma mulher que nunca sai da cama, com uma máquina automática que lhe dá a comida, o controle remoto de TV e um mordomo negro que a serve.
Há também uma mitônoma, a “The Lying Woman” (Jo Harvey Allen) que conta aspectos fantásticos da sua vida ilusória para quem se predispor a ouvir.
John Goodman interpreta Louis Fyne, um técnico que trabalha na Varicorp Corporation, que fabrica componentes para computadores. Porém, não se interessa tanto por informática ou novas tecnologias. Sem sorte no amor, tudo que procura é alguém para amar.
Freud na América Profunda
Louis Fyne é a chave de compreensão de True Stories: assim como o protagonista da animação Os Simpsons, Homer Simpson, que trabalha numa usina nuclear, mas tudo o que quer é tomar cerveja diante da TV, Louis pouco se identifica com o que faz – como fala a música “People Like Us”, cantada por ele no show de talentos, “não queremos liberdade/não queremos Justiça/queremos apenas alguém para amar”. Ele não quer saber de progresso, grandes mudanças ou revoluções sociais – tudo o que a Varicorp promete para Virgil e o mundo com os computadores.
Louis Fyne é o homem do insight freudiano do seu texto “Psicologia de Massas e Análise do Ego”, de 1921: mais do que a morte, o que o homem mais teme é a solidão. Isto é, não ser amado ou rejeitado do convívio social. Os indivíduos nas massas permanecem unidos não pelo poder da hipnose do líder, como sugeriam antigos psicólogos como Gustave Le Bon. Mas por “amor a eles”, aos outros que formam a massa ou o grupo.
A partir dessa psicologia de massas de Freud, a esquerda freudiana como Wilhelm Reich, Wolfgang Fritz Haug ou mesmo Theodor Adorno viam uma contradição entre a dinâmica psíquica e a realidade: por exemplo, Reich via no movimento operário alemão na Alemanha nas décadas do início do século XX uma contradição entre uma consciência política avançada e os valores morais ainda fortemente conservadores.
O psiquismo humano tenderia à autopreservação, a lei do menor esforço psíquico ao mobilizar formações reativas diante das mudanças rápidas da realidade – negação, lutificação, projeção etc. Adorno afirmava que “na multidão, o indivíduo se sente mal-amado” - veja ADORNO, Theodor. “Educação após Auschwitz”, In: COHN, Gabriel (org) Theodor Adorno, São Paulo: Ática, 1988.
Esse esforço mimético de ser digno do amor e atrair a aprovação dos outros (no filme, Louis chega a pedir os serviços mágicos do feiticeiro de santerias Papa Legba, para ter o “magnetismo do amor”) pode tornar-se a matéria-prima do conservadorismo moral até chegar à dominação política – o fenômeno da servidão voluntária com o inchamento do superego e o apoio a governos extremistas e autoritários.
Louis Fyne é, portanto, o “regular guy”, o homem da multidão com o espírito gregário para se tornar digno do amor dos outros. E sem nenhum interesse em algo mais transcendente, mesmo empregado numa corporação high tech e trabalhar numa futurista sala esterilizada que monta microchips e processadores.
Portanto, foi uma coincidência significativa True Stories ser relançado no meio de uma era política extremista de direita nos EUA, assim como foi seu lançamento nos anos 1980 do conservadorismo da administração Ronald Reagan. Aquela América profunda de 1986 ainda está pulsando naquele país, e apoiando slogans como “Make America Great Again”. Um slogan que é a próprio significante político desse mecanismo psíquico reativo.
Talvez a única diferença seja que aqueles personagens conservadores de Virgil deixaram de ser personagens excêntricos e comicamente estranhos dignos dos tabloides. Eles agora se tornaram red necks furiosos e ressentidos, armados até os dentes.
Ficha Técnica |
Título: True Stories |
Diretor: David Byrne |
Roteiro: Stephen Tobolowsky, Beth Henley e David Byrne |
Elenco: David Byrne, John Goodman, Annie McEnroe, Jo Harvey Allen, Saplding Grey |
Produção: Pressman Film, True Stories Venture |
Distribuição: The Criterion Collection, Warner Home Video |
Ano: 1986 |
País: Brasil |
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