Há algo no cinema que atrai as pessoas, além dos blockbusters com elencos estelares e produções milionárias: o cheiro tentador de sal, manteiga e pipoca. Pipoca no cinema se tornou um item básico. Mesmo nesse período de pandemia no qual os cinemas estão fechados, tentamos emular em casa a experiência de uma sala de cinema assistindo aos filmes nas plataformas de streaming ao lado de um balde de pipocas de micro-ondas.
Talvez o leitor nunca tenha se perguntado: por que comemos pipoca no cinema? Qual a origem dessa combinação perfeita que parece ser tão natural quanto o conhecido “romeu e julieta”, queijo com goiabada?
Uma história social dessa simbiose pipoca/cinema pode ser reveladora tanto das origens do prazer da experiência do cinema quanto da natureza dos prazeres engendrados pela própria sociedade de consumo do pós-guerra.
Apesar da óbvia conexão da pipoca com a experiência lúdica de assistir a um filme, se olharmos na História isso não foi sempre assim. Na verdade, as salas de cinema resistiram à ideia de comercialização não só de pipoca, mas também de doces, refrigerantes ou qualquer tipo de salgadinho.
Isso pode ser encontrado no livro “Popped Culture: A Social History of Popcorn” (Smithsonian Institution, 2001), de Andrew Smith. Já na segunda metade do século XIX a pipoca literalmente já havia explodido em cena nos EUA – especialmente nos locais de entretenimento como circos e feiras.
Uma das razões da popularidade crescente da pipoca foi sua mobilidade: em 1885, Charles Cretor inventa a primeira máquina móvel de pipoca a vapor para comercializar o produto nas ruas. Uma máquina de produção perfeita para qualquer evento de entretenimento ao ar livre. E mais uma vantagem: a pipoca podia ser produzida em massa sem cozinha, ao contrário da bata frita – feitas em pequenos lotes para ser vendida nas ruas, não era a ideal para lanches em massa.
Segundo Smith, a nascente indústria cinematográfica das primeiras décadas do século XX queria distância dos saquinhos de pipoca. As salas de exibição queriam imitar as distintas salas de teatro: tinham decoração suntuosa, camarotes e belos e caros tapetes – não queriam ver neles pipoca triturada a saquinhos amassados e pisoteados.
Cinema para as classes médias
Era o esforço das salas de exibição se tornarem respeitáveis para as classes médias e se afastar das imagens dos velhos “nickelodeons” do primeiro cinema – antigas salas de cinema nas quais eram servidas bebidas alcoólicas e comidas, enquanto todos acompanhavam os filmes conversando ruidosamente. Agora, tentava-se emular a experiência do cinema a algo como assistir a uma noite na ópera.
Bem diferente dos nickelodeons, as novas salas de exibição eram escuras, com filas de confortáveis poltronas e com todos em respeitável silêncio. Nada a ver com o som perturbador dos saquinhos de pipoca e o barulho de salgadinhos sendo mastigados enquanto migalhas emporcalhavam os caros tapetes vermelhos.
O novo cinema era mais elitizado: os filmes agora exigiam um público alfabetizado para ler as legendas que iam os elementos narrativos dos filmes. Mas quando os filmes acrescentaram o som em 1927, a indústria do cinema abriu-se para um público mais amplo. Sem a necessidade da leitura de legendas, em 1930 a frequência aos cinemas havia chegado a 90 milhões por semana.
A chegada do som favorecia a entrada da pipoca nas salas: os filmes sonorizados agora poderiam abafar o barulho dos saquinhos. Mas ainda os proprietários hesitavam em trazer lanches para dentro dos cinemas.
A Grande Depressão apresentou uma excelente oportunidade tanto para o cinema quanto para a pipoca: o cinema passou a ser a diversão mais barata enquanto a pipoca era um luxo que, mesmo na crise, qualquer um ainda podia pagar. Vendedores ambulantes ficavam nas portas dos cinemas com suas máquinas a vapor, enquanto muitos espectadores tentavam entrar clandestinamente com saquinhos do produto escondidos nos bolsos dos casacos.
Com a crise econômico se estendendo, logo os proprietários dos cinemas viram na venda de pipoca nos lobbies das salas uma grande oportunidade de lucros. Em 1945, pipoca e cinema já estavam inextricavelmente ligados: mais da metade da pipoca vendida nos EUA era consumida dentro dos cinemas.
Porém, com a chegada da televisão as vendas de pipocas despencaram: as pessoas simplesmente não iam mais ao cinema. Além disso, havia a dificuldade de preparar pipoca em casa. Ate chegar a EZ Pop, fabricante do produto já com todos os ingredientes (sal, manteiga etc.) que imitava o aroma imortalizado pelas salas de cinema. Bastava aproximar-se de uma fonte de calor e a pipoca estourava.
E com a chegada do micro-ondas, ficou ainda mais fácil emular em casa a experiência de uma sala de cinema, diante do tubo de imagem iluminando a sala de estar.
A psicanálise da pipoca no cinema
Até aqui, essa história social nos fornece apenas os motivos socioeconômicos da ligação da pipoca com o cinema. Como vimos, clandestinamente espectadores tentavam entrar com sacos de pipocas nas salas de exibição. Muito tempo antes, o ato de comer pipoca acompanhando eventos esportivos ou circenses já existiam, até encontrar na sala escura do cinema o local mais fértil para a sua disseminação.
Estão nos circos e feiras do século XIX as raízes daquilo que no século XX se chamaria de sociedade do espetáculo e sociedade de consumo – a lógica do show e do espetáculo como chamarizes para a venda de produtos e serviços. A própria sociedade como uma gigantesca feira universal onde tudo está à venda e o espetáculo é a isca para atrair o desejo.
O bom espetáculo é aquele que nos deixa de boca aberta, em estado de suspensão. Essa é a lógica, desde a exposição das aberrações em feiras de variedade e domadores arriscando a vida metendo a cabeça na boca de leões. Até chegarmos ao cinema e audiovisual, a forma mais tecnologicamente aprimorada do espetáculo.
Podemos afirmar que os fundamentos psíquicos da sociedade do espetáculo estão numa espécie de voyeurismo, de um prazer escópico em olhar – algo é pensado, planejado e construído para surpreender dentro de uma ambiguidade fundamental entre o ver e o ser: eu olho para o espetáculo, mas não ele para mim. O espetáculo é exibicionista, mas ao mesmo tempo nega sê-lo: finge que não sabe que eu estou olhando, mas o tempo inteiro está consciente disso. Essa denegação fundamental é a base psíquica para o prazer voyeurista. O prazer do voyeur é saber o que o objeto não sabe que está sendo observado. Mas no caso do espetáculo, o exibicionismo é denegado para que a suspensão da incredulidade gere o prazer escópico.
Esse é o princípio daquilo que se chama psicanálise do cinema, cujos principais precursores são os franceses Christian Metz e Jean-Louis Baudry. Ambos autores encontram uma similaridade entre a fase do Espelho de Lacan (a constituição do ego através da unificação imaginária do próprio corpo na imagem do seu semelhante ou na própria imagem especular no espelho) com o dispositivo do cinema – a “tela-espelho” como fala Baudry – leia METZ, Christian, O Significante Imaginário: Psicanálise e Cinema, Lisboa: Livros Horizonte, 1980 e XAVIER, Ismail (org), A Experiência do Cinema, R. de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
Porém, ambos concordam que o cinema é um estranho espelho: não nos reconhecemos nele, mas nos identificamos principalmente com a câmera, com a ilusão do realismo cinematográfico de continuidade das imagens. Nos identificamos com o nosso próprio olhar como um espectador “omnipercepcionante”, ubíquo. Um espelho que junta não os nossos fragmentos está formarmos uma imagem unificada de nós mesmos (como na fase do Espelho), mas juntamos os planos de câmera e a narrativa. Denegando a edição e a montagem.
A questão é que a experiência de assistir a um filme reforça as condições infantis anteriores à fase do Espelho: como uma criança, estamos em estado de submotricidade, sentados e parados em uma poltrona, em uma sala totalmente escura e isolada de qualquer interferência externa da realidade, presos ao imaginário e ao prazer parcial – o de olhar.
O nosso olhar confundindo-se com a da própria câmera e as condições de submotricidade e imersão na sala escura criam condições para uma identificação regressiva, primária, marcada por um processo de incorporação. Como se repetisse a primeira relação com a mãe marcada pela indiferenciação entre ego e alter ego no estágio oral de prazer parcial.
E a boca aberta quando assistimos ao filme em estado de suspensão da incredulidade seria o principal sintoma dessa condição psíquica. Tal como o bebê à espera do alimento, impotente e dependente, numa relação imaginária parcial: a boca, a fase oral.
Mas tudo isso somente é possível com aquela denegação do exibicionismo que finge não saber que está sendo olhado. É o que permite a incorporação, imersão e situação de dependência infantil oral ao espetáculo.
Da próxima vez que o leitor for ao cinema, observe por alguns segundos quantas pessoas olham para a tela com suas bocas abertas. E a pipoca, o principal produto que preenche essa lacuna: o desejo de ser incorporado pela “tela-mãe-espelho”, simbolicamente representado pela pipoca que incorporamos em nosso organismo pela boca.
Por decorrência, a própria sociedade de consumo partilha dessa mesma lógica – o apelo à oralidade no consumismo. O impulso do prazer oral (gratificação imediata, irresponsabilidade feliz, excesso de conveniência etc.) é tão forte no nosso psiquismo que mesmo ao desejar produtos que não são comestíveis em vitrines ou stands de venda, a reação orgânica é a liberação de ácido clorídrico no estômago como se o corpo se preparasse para receber um alimento. Isso acaba produzindo fome, o que passa a ser a isca para a compra por impulso de qualquer coisa. Daí as bocas abertas das pessoas diante do objeto do desejo de consumo nas vitrines dos shoppings.
Diante das nossas Smart TVs assistindo às plataformas de streaming, embora não tenhamos as mesmas condições imersivas das salas de cinema, atavicamente repetimos essa relação de identificação primária. Agora diante das telas 4k. Pegamos um balde de pipocas de micro-ondas e replicamos no recôndito do lar a lógica geral da sociedade do espetáculo.
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