Há dois anos era “pedra cantada” que Donald Trump ganharia a eleição desse ano. É o que nos mostra o filme “Suaves e Discretas” (Quiet & Soft, 2022) da diretora americana Beth de Araújo, que reflete o alinhamento do movimento “Tradlife” (mulheres que defendem o retorno aos valores “tradicionais” que dependem de fazer muitos bebês brancos na tentativa de “preservar” a “raça europeia”) com a “Alt-right” - Emily é uma professora que organiza uma reunião com um grupo de mulheres de extrema-direita num chá da tarde. Elas decidem continuar a reunião em outro lugar, mas uma discussão no meio do caminho dá início a uma inesperada e violenta cadeia de eventos. Diferente do terror racial de “Corra!” ou “Them”, em “Suaves e Discretas” acompanhamos a perspectiva do racista. Mas o terror perturbador do filme não está no conteúdo fascista, mas pela absoluta banalidade da personalidade autoritária. E mais: como a democracia liberal está se tornando disfuncional no atual estágio do capitalismo.
Em 1944, Theodor Adorno, ainda na condição de exilado nos EUA, foi convidado a coordenar uma pesquisa inédita da Universidade de Berkeley, sob o impacto do nazifascismo na Europa – investigar em indivíduos “normais” a existência de elementos psíquicos que predisporiam a posições políticas fascistas, mesmo em uma democracia liberal como a dos EUA.
Que resultou no livro “Estudos da Personalidade Autoritária”, publicado pela primeira vez nos EUA em 1950 – no Brasil, pela Editora UNESP, 2019.
Para Adorno, uma das coisas mais impactantes descobertas no material das entrevistas foi a ignorância e confusão generalizada dos sujeitos em assuntos políticos.
“Se as pessoas não sabem do que estão falando, o conceito de ‘opinião’, que é básico para qualquer abordagem da ideologia, perde muito do seu significado”, observou Adorno. Para o pesquisador, isso não implicaria que o material fosse insignificante do ponto de vista factual, mas deveria ser relacionado principalmente com as categorias sociopsicológicas do sujeito investigado.
Em outras palavras: o entrevistado estaria falando muito mais da sua própria vida psíquica (preconceitos, disposições, traumas, ressentimentos etc.) e cotidiana do que sobre a realidade política.
Os entrevistados até poderiam falar sobre temas políticos (discorrer sobre nazismo, comunismo, judaísmo, governo Roosevelt etc.), mas pareciam muito mais refletir ansiedades e angústias da própria vida privada.
Estamos acostumados a pensar sobre o nazismo e o fascismo nos seus aspectos mais espetaculares popularizados pela mídia: encapuzados da Ku Kux Klan queimando cruzes, nazistas marchando ameaçadores empunhando suásticas e assim por diante. Mas a personalidade autoritária está lá, latente, do dia a dia das pessoas consideradas “normais”.
O que pode se tornar uma coisa imprevisível, potencialmente explosiva e até aterrorizante.
Esse é o mote do filme independente Suaves e Discretas (Soft & Quiet, 2022), da cineasta norte-americana Beth de Araújo que segue o caminho aberto para o terror racial de filmes como Corra! (2017), Excluídos (2023) e da série Them (2021). Nessas produções citadas, acompanhamos sempre o ponto de vista da vítima do racismo.
Ao contrário, Suaves e Discretas assume a perspectiva do racista.
Em tempo real e dentro da filmagem do cinema experimental em plano sequência acompanhamos, em pouco mais de 90 minutos, o final do dia e a noite de uma professora do ensino fundamental que tem um encontro marcado com suas amigas no que parecer ser um típico chá de final de tarde sobre fofocas e temas frugais.
Não fosse o que está escrito no pequeno quadro branco ao lado de uma mesa com doces e salgados: “Filhas da Raça Ariana”. E esculpido na massa da cobertura de uma torta de cereja, uma suástica.
A câmera portátil e itinerante de Beth de Araújo enquadra as participantes em conversas cada vez mais assustadoras, não tanto pelo conteúdo, mas pela absoluta banalidade - uma mulher branca grávida com cabelo loiro descolorido e um cardigã com estampa de leopardo diz que nasceu na KKK, mas hoje em dia ela é mais ativa no site neonazista Stormfront. "A mídia adora nos retratar como grandes monstros assustadores. Eu sou realmente tão assustador assim?" Ela diz, um grande sorriso colado em seu rosto.
De Araújo sempre foi uma cineasta de curtas, mas em sua estreia em um longa ela explora um material bem sombrio baseado na própria experiência pessoal – sua mãe é sino-americana e o pai brasileiro (De Araújo tem dupla cidadania nos Estados Unidos e no Brasil). O filme foi Inspirado em suas próprias experiências com um professor racista, alimentada pelo incidente de um atirador em massa próximo ao local das filmagens e reforçada por pesquisas profundas sobre o movimento “Tradlife”, alinhado nos EUA ao movimento Alt-right.
Tradlife: defende um retorno aos valores “tradicionais” que dependem de fazer muitos bebês brancos na tentativa de “preservar” a “raça europeia” (leia-se: branca).
Um grupo de aparente pacatas donas de casa capazes de expressar suas frustrações e ressentimentos pessoais através de símbolos e agendas que conhecem apenas superficialmente. Mas com potenciais efeitos devastadores.
O Filme
O título do filme se refere a uma abordagem que uma de suas personagens, Emily (Stefanie Estes), vê como a mais eficaz para espalhar o evangelho da supremacia branca. Emily é uma professora de jardim de infância e líder de uma aliança de mulheres de extrema-direita.
O filme abre de forma perturbadora: depois de fazer um teste de gravidez no banheiro e, frustrada, vê o resultado negativo, ela encontra um aluno aguardando a mãe vir buscá-la de frente da escola. Ela manipula a criança a confrontar uma faxineira hispânica, proibindo-a de limpar o local enquanto ele estivesse ali – sutilmente, Emily faz a criança humilhá-la.
Ela está carregando um prato envolto com papel alumínio e ruma para uma reunião com amigas, em uma sala contígua a uma pequena igreja católica.
O filme aumenta sua voltagem quando Emily chega ao encontro e a folha é retirada de uma torta que ela fez, revelando uma suástica esculpida na massa.
Cada um dos membros do grupo nascente de mulheres de extrema-direita de Emily representa uma face diferente da supremacia branca: uma punk radicalizada e ex-presidiária, uma boomer amarga (formou-se em jornalismo, mas tudo o que conseguiu foi ficar no caixa de uma loja de conveniência), a dona de casa que estuda em casa, a racista de uma família da KKK. E as justificativas que eles apresentam para suas visões intolerantes têm uma gama semelhante, evocando "senso comum", "orgulho na herança de alguém" e "racismo reverso".
Ela está conscientemente reunindo mulheres desiludidas e doutrinando-as em pontos de discussão supremacistas brancas, moldando-as em soldados úteis em sua guerra racial imaginária. Ela também usa ideias supremacistas brancas sobre gênero e feminilidade como armas, aproveitando o sexismo e a homofobia do movimento para evitar a responsabilidade por suas ações. Sua voz treme quando ela pergunta ao marido: "Você quer que eu olhe para você como um viadinho, querido?" Usando um insulto anti-gay para intimidá-lo para forçá-lo em uma tarefa sombria no meio do filme.
O encontro regado a vinho torna a conversa mais entusiasmada. Elas saem para comprar mais vinho em uma pequena loja. Lá encontrarão um par de irmãs sino-americanas (Cissy Ly e Melissa Paulo) que será o alvo das provocações e ressentimento – mais estrangeiros que estão roubando seus empregos e promoções. Uma das supremacistas está furiosa pelo fato de uma colombiana ter sido promovida no trabalho, ao invés dela.
Raiva, ódio e ressentimento farão o grupo descarrilhar numa ação malsucedida para intimidar as irmãs em sua própria casa – que faz até lembrar a cena da invasão de uma gangue de “drugs” na casa de um escritor no filme Laranja Mecânica, de Kubrick.
É quando o filme mergulha numa noite do inferno do terror racial. O efeito do plano sequência e tempo real transforma a realidade da violência radicalizada numa aterrorizante experiência imersiva para o espectador.
O que deveria ser apenas uma lição para aquelas estrangeiras ficarem apavoradas e fugissem da cidade, transforma-se numa sequência de vandalização, roubo e mortes – nem o próprio grupo de “tradlifes” radicalizadas acreditam nas consequências. Enquanto Emily força o seu marido a ajudar, insultando-o como “covarde” e “bichinha”.
O que fica claro em Suaves e Discretas é o papel da ignorância e confusão generalizada sobre política e a situação do próprio país. As referências do extremismo de direita que elas exibem orgulhosamente são meros significantes para expressar profundos ressentimentos – Emily é ressentida por não conseguir engravidar, Leslie (Olivia Luccardi) é uma ex-presidiária raivosa pela perda da Nação; Kim (Dana Millican) é a universitária que tudo o que conseguiu foi um “bullshit job”; Marjorie (Eleanore Pienta) e de uma família KKK.
Setenta e quatro anos depois dos Estudos da Personalidade Autoritária, as análises psicanalíticas de Theodor Adorno sobre as opiniões reveladas pelos questionários da pesquisa de Berkeley, continuam bem atuais.
Como nos revela esse filme perturbador de Beth de Araújo.
Porém, mais ainda perturbador é esses grupos radicalizados emergirem no ambiente político liberal norte-americano, nos enviando um alerta para todo o mundo: a democracia liberal burguesa está se tornando disfuncional dentro do atual estágio do capitalismo.
Ficha Técnica |
Título: Suaves e Discretas |
Diretor: Beth de Araújo |
Roteiro: Beth de Araújo |
Elenco: Stefanie Estes, Olivia Luccardi, Dana Millican |
Produção: Blumhouse Productions |
Distribuição: Momentum Pictures |
Ano: 2022 |
País: EUA |