A matéria-prima da ficção científica é o futuro. Portanto, se olharmos para o sci-fi do passado, encontramos três tipos de futuros: o retro-futurismo, o distópico e o hipo-utópico. Mas “Southland Tales – O Fim do Mundo” (Southland Tales, 2006), de Richard Kelly (Donnie Darko) é definitivamente um ponto fora da curva que acabou jogando o diretor ao ostracismo. Principalmente depois das vaias no Festival de Cannes. Dezoito anos depois, o filme revela ser assustadoramente profético: nova guerra fria e a escalada da ameaça nuclear; tecnologias supostamente limpas, mas que estão igualmente destruindo o planeta; a destruição da democracia liberal pela polarização alt-right através da viralização da cultura influencer-empreendedora-coach etc. Numa época em que as mídias sociais estavam engatinhando. Tão profético que até parece que o diretor Richard Kelly tinha conhecimento de algum tipo de agenda geopolítica secreta.
É comum olharmos para os filmes de ficção científica do passado e ver se as suas previsões para o futuro (que já é o nosso presente) foram acertadas.
Dentro desse revisionismo, há três tipos de sci-fi. Os primeiros são aqueles sci-fi dos anos 1950-60 que apresentavam uma ideia de futuro bem distinta da nossa: Planetas desconhecidos, robôs e tecnologia ultra-sofisticados, inacessíveis ao tempos atuais – por isso, acabaram criando no futuro o “retro-futurismo” que tenta emular essa visão nostálgica de um futuro que não se realizou.
O segundo são os distópicos, cujos mundos futuros foram tomados por alta tecnologia de controle e vigilância, guerra e violência sobre sociedades divididas entre cidadãos e escravos. Há algo divertido em refletir sobre o que poderia acontecer se os robôs se revoltassem como em Westworld ou o que aconteceria se o mundo tivesse um suprimento limitado de gasolina, como em Mad Max.
O terceiro tipo são aqueles que chamamos de hipo-utópicos. Filmes como Distrito 9, de Neil Blomkamp, dão uma estranha sensação de continuidade: eram sci-fis, mas já projetavam de forma hiperbólica no futuro mazelas que já ocorriam naquele presente em que foi produzido o filme. E que continuam a persistir atualmente.
Southland Tales - O Fim do Mundo (Southland Tales, 2006), de Richard Kelly, não se enquadra em nenhuma das categorias acima. É um ponto fora da curva porque é assustadoramente atual e exato nas suas projeções para o futuro. Naquele ano, o mundo estava em plena geopolítica da Guerra ao Terror num contexto pós impacto dos atentados do 11/08/2001 nos EUA.
Porém, as extrapolações de Richard Kelly não se limitam a geopolítica, mas também nos campos da cultura e tecnologia.
Southland Tales parece o sonho paródico mais febril que Kelly já teve – e ao mesmo tempo tão assustadoramente preciso, olhando do nosso ponto de vista atual, que o filme parece mais uma agenda de intenções geopolíticas do que uma mera ficção científica.
Kelly, conhecido por seu sucesso anterior Donnie Darko (2001), se tornou um diretor para ser obrigatoriamente assistido – vinha na esteira de promissores diretores independentes como Christopher Nolan, com o filme Amnésia (Memento, 2001).
Mas Richard Kelly teve um destino diferente de Nolan. Enquanto este virou o queridinho dos estúdios da Warner que despejou fortunas nos seus intrincados roteiros não-lineares, Kelly foi execrado. Principalmente após Southland Tales – o corte bruto do filme, de duas horas e meia, foi recebido com vaias no Festival de Cannes e por toda a crítica subsequente. Quanto ao público, ficou perdido e não entendeu nada, obrigando o diretor reduzir em 20 minutos a versão final em DVD.
O filme fez parte de um grande projeto trans-mídia do diretor chamado “Southland Tales”: uma experiência interativa de nove partes. Três partes foram publicadas como histórias em quadrinhos, e o filme combinou outras três partes.
O filme é sobre os medos do povo americano confrontado com a agenda geopolítica do país, com mensagens que só agora podemos perceber os acertos dos insights do diretor. Com a marca específica do estranho mundo de Kelly inaugurado com Donnie Darko: a mistura de comentários sociais sobre liberdades civis e o poder da segurança interna nos EUA com tropos de física quântica combinado com o gnóstico questionamento da natureza daquilo que chamamos de “tecido da realidade”.
Southland Tales acabou criando um filme que acertou o caos do futuro.
O Filme
O lugar é o Texas, o ano é 2005 e uma multidão de homens, mulheres e crianças estão rindo e comemorando o Quatro de Julho em alegres churrascos no entorno de piscinas em subúrbios verdejantes, quando um imenso cogumelo nuclear floresce no horizonte. É o início da Terceira Guerra Mundial.
Não muito tempo depois que a fumaça se dissipa, vemos Justin Timberlake, interpretando um veterano da guerra do Iraque, a bordo de uma metralhadora giratória high tech vigiando litoral da Califórnia. Ele entoa sinistramente um poema de T.S. Eliot sobre a Primeira Guerra Mundial: “É assim que o mundo termina... não com um gemido, mas com um estrondo”.
Tomando emprestado do poema de Eliot “The Hollow Men”, o filme satiricamente imagina uma paisagem de guerra perturbadoramente pessimista do dia seguinte. Agora o deserto que Eliot imaginou da Europa pós-guerra é a América. Não há mais combustível fóssil, tendo todo o seu estoque reservado para as frentes americanas de guerra — no Iraque e no Afeganistão, juntamente com o Irã, Síria e Coreia do Norte. A América entrou em confinamento, isolada do resto do mundo.
Mas em algum lugar em Venice Beach, Califórnia, está sendo gestada a revolução protagonizada por uma frente de esquerda.
Após o prólogo do big-bang, a história muda para 2008, quando, na véspera de uma campanha presidencial, interesses concorrentes estão lutando violentamente pelo poder. Entre o elenco extenso de suspeitos incomuns estão os "neo-marxistas", principalmente garotas hippies de meia-idade com tasers ameaçadores e retórica pesada que lideram o movimento; um candidato presidencial republicano com sua esposa ao estilo Lady Macbeth; e um bando de estrelas pornô totalmente incríveis em calças chiquérrimas e brilho labial que pregam sua própria marca de empreendedorismo na televisão a cabo.
Esgueirando-se à margem está um cientista alemão, o Barão Von Westphlan (Wallace Shawn), cuja descoberta revolucionária encontrou uma solução para as reservas esgotadas de petróleo da América – algo chamado “Karma Fluido”, que iluminará o país aproveitando o poder do oceano.
É uma substância energética que está ligada de alguma forma à gravidade da Terra, bem como à força das marés... essencialmente, é como a força vital da Terra, se você quiser. O Karma Fluido é uma fonte perpétua de energia, o que torna o Barão Von Westphlan um homem muito rico e poderoso (apoia o candidato republicano) e o Karma Fluido a substância mais procurada do mundo.
Mas provoca um inesperado efeito colateral: pelo fato de o Karma Fluído estar sendo extraído da força gravitacional, a rotação da Terra está diminuindo, além de uma fenda interdimensional ter sido aberta no meio do deserto da Califórnia. Por causa dessa fenda, a mente das pessoas está essencialmente enlouquecendo...
Há ainda mais coisas recheando o roteiro repleto de ideias do Sr. Kelly. Inclui a figura de Boxer Santaros (Dwayne Johnson). Depois de ter desaparecido inexplicavelmente, Boxer — identificado como um ator com laços com o Partido Republicano (Schwarzenegger?) — ressurgiu em Venice Beach, amnésico e aninhado nos braços de uma estrela pornô empreendedora, Krysta Now (Michelle Gellar). Juntos, Boxer e Krysta escreveram um roteiro apocalíptico que estão tentando lançar em meio à intriga e ao barulho. Tudo o que Boxer quer é fazer pesquisa para o seu papel, aproximando-se de um policial misterioso (Seann William Scott).
Revendo o filme daqui de 2024, percebemos que Southland Tales se tornou inesperadamente metalinguístico: roteiro de Santaros e Krysta é intitulado "The Power". "The Power" conta a história de um homem chamado Jericho Cane... esta é uma referência ao filme de 1999 "End Of Days", estrelado por Arnold Schwarzenegger. Em "The Power", Jericho Cane é um policial renegado de L.A. em um mundo que enlouque. Ele se une ao Dr. Muriel Fox e uma stripper psíquica para proteger um bebê milagroso chamado Caleb que não tem evacuações.
Eventualmente descobrem um riff interdimensional acima do Lago Meade, em Nevada, que está fazendo com que a rotação da Terra diminua a uma taxa de 0, 000000006 milhas por hora todos os dias. Exatamente o plot que está ocorrendo com o mundo naquele momento.
Parece que Southland Tales antecipou a própria leitura que agora fazemos do filme: o roteiro de Sr. Kelly antecipou o futuro – o nosso presente. Assim como, na ficção, o roteiro de Santaros e Krysta revela involuntariamente uma agenda secreta dos republicanos.
A atualidade de Southland Tales
(a) Para começar, o filme antecipa todo o imaginário dos influencers-empreendedores-coach, numa época em que as redes sociais estavam apenas engatinhando.
No filme, Krysta Now é uma estrela pornô que está trabalhando em seu reality show de TV. Ela é enorme em autopromoção e se torna famosa por ser famosa. Muitos influenciadores agora não precisam ter um escândalo para que seus nomes sejam ouvidos por milhões. Tudo o que eles precisam é de uma marca ou controvérsias e uma conta no Instagram, TikTok e Twitter. Sucessos virais permitem que mais pessoas tenham cinco minutos de fama, enquanto as controvérsias tornam os criadores e influenciadores de conteúdo mais populares. Não existe tal coisa como má publicidade, certo?
Krysta inventa o sobrenome “Now” por questões de “mindset” – a urgência da prosperidade.
(b) Em pleno contexto da guerra ao terror dos neocons de George W. Bush, Kelly antecipa o retorno da Guerra Fria e da ameaça nuclear, como vivemos nesse momento geopolítico de 2024. E o papel do Oriente Médio no xadrez mundial. Com destaque atual que o filme dá à Síria – que, nesse momento, é invadida por terroristas mercenários financiados pelos EUA como lance no xadrez da guerra híbrida de Biden contra a Rússia.
(c) O gênio científico do barão alemão Von Westphlan reverbera o Projeto Paper Clip pós derrota da Alemanha nazista: programa secreto de inteligência dos Estados Unidos no qual mais de 1600 cientistas, engenheiros e técnicos alemães foram levados da ex-Alemanha nazista para os Estados Unidos para empregos no governo. Dando vantagem tecnológica dos EUA na Guerra Fria.
E mais: o barão descobriu o “Karma Fluído” numa perfuração na costa de Israel – o aliado dos EUA em qualquer tipo de Guerra Fria.
(d) Assim como as “tecnologias limpas” atuais como solar, eólica etc. são promovidas como sustentáveis e ambientalmente corretas, também o “Karma Fluído” é saudado como “protetor da camada de ozônio” na ficção. Tanto as chamadas “energias limpas” como o “Karma Fluído” tem efeitos colaterais: na ficção, a destruição do tecido temporal e efeitos geotérmicos no planeta; e na realidade atual, datacenters que exigem a escalada absurda de água e eletricidade ou placas solares que exigem a exploração mineral em larga escala igualmente destruidora ambiental – silício, sílica, bauxita etc.
(e) Southland Tales também previu que governo e as Big Techs estão sempre nos observando. Antes de Edward Snowden divulgar informações ao público sobre os inúmeros programas de vigilância global da NSA, muitas pessoas brincavam sobre o governo nos espionar por meio de tecnologia simples, como nossos telefones. Southland Tales revela que eles sempre estiveram do outro lado do telefone ou da câmera. Os monitores do programa de vigilância do governo em Southland Tales mostram ao público as estranhas semelhanças entre o mundo do filme e o nosso mundo atual.
(f) Polarização e destruição da democracia liberal, tal como acompanhamos na atualidade com as estratégias alt-right.
A maioria dos elementos do filme são ruídos de fundo para a agitação em massa do mundo, e essa experiência é uma viagem visual chocante para o público. O público é bombardeado com contos sobrepostos - o enredo salta rapidamente de um evento para outro que não tem relação com a cena anterior.
Cada personagem é uma pessoa que declara seus sentimentos sobre um problema para o vazio. Nesse sentido, o filme um desenrolar de desgraças através de um mundo que não dá ao público uma pausa para respirar.
Assim como na mídia social, onde não há um enredo sólido, mas apenas o clima de polarizações que nós próprios cultivamos.
A narrativa distorcida e brilhantemente bagunçada de Southland Tales torna o filme uma experiência surreal. As palhaçadas bizarras e os enredos pouco claros fazem um quebra-cabeça preciso demais em suas previsões e deve ser visto como um aviso ao nosso vício em entretenimento constante – o vazio que mídia onipresente criou.
Ficha Técnica |
Título: Southland Tales – O Fim do Mundo |
Diretor: Richard Kelly |
Roteiro: Richard Kelly |
Elenco: Dwayne Johnson, Sarah Michelle Gellar, Seann William Scott |
Produção: Universal Pictures, Darko Entertainment |
Distribuição: Sony Pictures Entertainment (DVD) |
Ano: 2006 |
País: EUA |