Cada religião reivindica ter o verdadeiro caminho para Deus e a Salvação. Então, qual a religião verdadeira? E se nenhuma for verdadeira? Porque ao longo da História apenas replicaram uma narrativa original, cujo sentido verdadeiro foi se diluindo ao longo do tempo. E o Sr. Reed quer provar isso através de um jogo mental e mortal com duas cobaias: uma dupla de jovens missionárias mórmons. Barnes e Paxton parece que escolheram a pessoa errada para catequizar. Uma casa se transforma num experimento comportamental sobre crença, fé e controle. Sr. Reed quer descobrir nesse experimento perverso qual a verdadeira religião. Ecos de Norbert Wiener, o pai da Cibernética: a Teologia será substituída pela Teleologia, a fé pelo controle.
O livro de Norbert Wiener, “Cibernética: ou Controle e Comunicação no Animal e na Máquina”, de 1948, foi o divisor de águas no Ocidente. Wiener estava lançando a ciência que tinha por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas.
Na superfície, a Cibernética foi a responsável por impulsionar a Teoria da Informação e a computação. Mas foi muito mais além: estudou processos circulares, como sistemas de feedback, princípios gerais aplicáveis em vários contextos: sistemas ecológicos, tecnológicos, econômicos, biológicos, cognitivos e sociais.
Tudo se resumindo ao princípio de controle (cibernética vem do grego “kubernetikḗ”, que significa "arte de dirigir" ou "arte de governar") – o estudo de sistemas que se retroalimentam através de inputs e outputs de informação, tornando-os previsíveis, administráveis, controlados.
Substitua a palavra “feedback” por “fé” e descobrimos como a Cibernética representou um divisor de águas: substituiu a Teologia (“Theós”, Deus + “Logia”, ciência), pela Teleologia (“Télos”, finalidade + “Logia”, ciência).
Se, por exemplo, a invenção dos mistérios teológicos da Igreja Católica foi uma forma de controle político do Império Romano, a Cibernética busca essa mesma função política de controle. Porém, não mais utilizando-se dos mistérios inescrutáveis da fé, mas agora pela crença em sistemas orientados por uma finalidade supostamente racional. No fundo, permanece a fé em algum objetivo, seja a salvação da alma, seja a eficiência, produtividade lucro.
Mas também permanece, principalmente, o controle de uma elite sacerdotal ou tecnocrática – seja a fé ou o feedback, tornam as pessoas previsíveis: a elite sabe onde os subalternos estarão e fazendo o quê.
O filme Herege (Heretic, 2024) aborda esse arco que vai do controle da crença religiosa à racionalidade de um perverso jogo mental que aprisiona duas incautas missionárias da religião mórmon em uma casa que lembra bastante as armadilhas de Jogos Mortais (Saw).
A princípio, Herege quer fazer um comentário sobre a loucura da fé religiosa: o que é mais assustador do que acreditar em um poder superior que supostamente controlaria todos os nossos movimentos? E aceitaremos essa situação como condição sine qua non para a Salvação.
Ou ainda mais, o relativismo religioso: todas reivindicam possuir o verdadeiro caminho para Deus. Mas, então, qual a verdadeira religião? Qual o verdadeiro Deus? Ou será que a verdadeira religião não é nenhuma delas, mas, paradoxalmente, um princípio que as torna todas idênticas?
Herege, de Scott Beck e Bryan Woods, é um thriller sobre a natureza aterrorizante da crença religiosa. Houve centenas de filmes, dos mais diferentes gêneros (do terror ao drama policial) sobre fanáticos religiosos usando a violência para conseguir o que querem. Mas este filme é inteligente ao propor ao espectador um jogo mental, um estudo não apenas sobre quais histórias que não apenas as religiões (mas também a cultura pop) nos contam. Mas principalmente sobre quem as tem contado para nós.
Através do charme britânico sombrio de Hugh Grant, o filme propõe um argumento ousado: destilar milhares de anos das mesmas narrativas básicas das diferentes religiões que moldaram a história humana. Sistemas religiosos que parecem replicar uma mesma narrativa original, assim como as diversas versões do jogo de mesa “Monopoly” ou os plágios involuntários nas músicas, como “Creep” de Radiohead inconscientemente “chupada” de “The Air That I Breath” do The Hollies, 1962.
O Filme
Assim que aparecem na tela, duas mulheres missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (a igreja mórmon), começam a aquecer o filme através das suas simpatias, jogando conversa fora e revelando a fé religiosa inquebrantável da América profunda.
Elas são doces e ansiosas para serem boas missionárias, mesmo que a Irmã Barnes (Sophie Thatcher) tenha um olhar cauteloso e ousado que não se encolhe diante da sua companheira mais tímida e incauta, a irmã Paxton (Chloe East).
Dirigindo suas bicicletas por uma típica cidadezinha do interior dos EUA, elas dirigem-se para a casa Sr. Reed (Hugh Grant). Ele solicitou algumas informações sobre a igreja delas, então em pouco tempo elas estarão trocando gentilezas em sua casa, um espaço sombrio com a iluminação amarelada e crepuscular que lembra a casa de Tyler Durden no Clube da Luta de David Fincher.
Elas primeiro seguem os protocolos da fé mórmon e se recusam a entrar na casa do Sr. Reed até que a sua esposa esteja presente. Mas ele insiste que sua esposa está na cozinha assando uma torta. Ela é tímida, argumenta o Sr. Reed, mas logo Barnes e Paxton a conhecerão.
Elas podem até sentir o cheiro no ar da torta cozinhando. Então aceitam entrar e começam a ter uma discussão teológica com Reed.
Ele então começa uma palestra para as missionárias sobre como o jogo Monopoly deriva de um jogo de tabuleiro anterior chamado The Landlord's Game. Reed também aplica isso à música “The Air That I Breathe” de The Hollies, que Barnes e Paxton alegaram não ter ouvido antes daquela noite, mas ele sabe que estão familiarizados com a música “Creep” do Radiohead, já que essa música usou elementos da música anterior.
Tudo isso é para estabelecer a crença de Reed de que todas as religiões do mundo são falhas e derivadas da “uma verdadeira religião”, original e milenar. Uma mesma narrativa que copiada da original, cópias da cópias, até o sentido original ter se perdido.
Barnes e Paxton ficam cada vez mais desconfortáveis e desconfiadas e tentam encontrar uma maneira educada de sair daquela casa, pois deduzem que a esposa do Sr. Reed não existe. A porta da frente está trancada e descobrem que não têm sinal no celular para pedir ajuda. Começam a se dirigir para os fundos da casa, apenas para encontrar Reed em seu escritório, que contém uma extensa biblioteca. Enquanto elas tentam se desculpar educadamente, Reed diz a que há duas portas pelas quais eles podem sair, marcadas com a palavra “crença” e a outra com “descrença”, com base em suas crenças reais em Deus.
É o início de um jogo mental comandado pelo Sr. Reed: na verdade um estudioso de teologia, leitor do “Livros dos Mórmons”, de Joseph Smith, e que chegou a uma conclusão niilista sobre a fé: de que Barnes e Paxton acreditam num poder divino e superior, assim como acreditaram que a esposa do Sr. Reed estivesse na cozinha.
Religião é controle
Qual o objetivo do anfitrião? Provar e convencer as missionárias de que a verdadeira natureza da religião, a verdadeira religião, é o controle.
A dupla de missionárias se vê prisioneiras de um jogo em que cada momento e cada reação das cobaias parece estar previsto, num perverso jogo cibernético de retroalimentação – cada momento faz parte de um jogo de simulação (cuja arquitetura geral parece ter sido planejada numa maquete que o Sr. Reed constrói em uma das dependências da casa) para provar que ele pode controlar qualquer um, da mesma forma que todas as religiões fazem.
Ele submete Barnes e Paxton a testes cada vez mais brutais, tanto física quanto psicologicamente, quando as discussões teológicas começam a dar lugar a um intrincado jogo de perseguição em porões e masmorras labirínticas.
O álibi do Sr. Reed é provar para a dupla de missionárias a existência da verdadeira religião através de uma teoria maluca envolvendo experiências de quase morte, relatos supostamente verdadeiros de contatos com anjos e Deus do lado de lá e a teoria do universo como simulação.
Mas na verdade seu objetivo é mais cínico: nada existe de verdadeiro, a não ser a situação de alguém manter grupos e multidões sob controle – a crença em narrativas replicadas desde a antiguidade tornaria as pessoas previsíveis e controláveis.
Como colocamos acima, Wiener e a Cibernética criaram mais uma versão da narrativa milenar sobre fé e salvação. Só que dessa vez, não mais teológica, mas teleológica – dessa vez a fé por meio da transparência cínica dos sistemas de crenças: assim como no jogo mortal do Sr. Reed, um sistema cibernético de retroalimentação em que todos os movimentos parecem estar previstos pelo controlador.
O jogo e as discussões teológicas, principalmente do primeiro ato do filme, podem ser complexos. Mas Heregeé um filme divertido, principalmente pela performance de Hugh Grant: o ator está claramente está se divertindo ao encarnar o Sr. Reed, com olhos frios e predatórios e um sorriso que vai instantaneamente do amigável e acolhedor para o diabólico.
Grant parece ter relaxado como ator à medida que envelheceu, como se não estivesse mais inibido pelo fardo de interpretar o protagonista romântico desejável e previsível que sempre marcou a sua carreira, desde o filme Quatro Casamentos e um Funeral, de 1994.
Ficha Técnica |
Título: Herege |
Diretor: Scott Beck e Bryam Woods |
Roteiro: Scott Beck e Bryam Woods |
Elenco: Hugh Grant, Sophie Thatcher, Chloe East |
Produção: A24 |
Distribuição: Diamond Films (Cinemas) |
Ano: 2024 |
País: EUA |