quinta-feira, dezembro 12, 2024

O espírito do Natal é duro de matar em 'Noite Infeliz'


Esses são os filmes que fazem a síntese do que chamamos “espírito do Natal”: as reprises de “Esqueceram de Mim” e as inúmeras adaptações da obra de Charles Dickens “Christmas Carol”. O Mal tentando invadir o lar e o Natal como oportunidade para fazermos uma reforma íntima moral. E tudo isso costurado pela figura aparentemente a-histórica do Papai Noel. O filme “Noite Infeliz” (Violent Night, 2022) junta tudo isso, acrescentando referência ao clássico “Duro de Matar” – um grupo de mercenários ataca a mansão de uma família rica justamente quando Papai Noel está entregando presentes. Ele terá que agir para salvar a noite de Natal – com uma marreta nas mãos. Aproximar a figura do bom velhinho da comédia “gore” talvez seja a coisa mais verdadeira do Natal: Papai Noel é descendente de uma longa linha de soturnos, sujos e peludos deuses remanescentes da era pré-cristã.

O “espírito do Natal” no cinema e audiovisual pode ser resumido a dois vieses: o mais reprisado filme da História, Esqueceram de Mim, e as diversas adaptações fílmicas e pop do livro de Charles Dickens, “Christmas Carol – Um Canto de Natal”, de 1843 – de Tio Patinhas dos quadrinhos de Walt Disney a filmes como Os Fantasmas Contra-atacam (1988), Um Conto de Natal (1984), Os Fantasmas de Scrooge (2009), Barbie in Christmas Carol(2008), It’s a Christmas Carol (2012) e assim por diante numa longa lista.

Mesmo Esqueceram de Mim faz parte de uma longa lista de natais frustrados: Férias Frustradas de Natal(1989), A Última Ressaca do Ano (2016), Um Natal Muito Louco (2004), Um Dia de Louco (1994) etc.

De um lado, o espírito do Natal no século XXI ainda reflete os contos moralistas vitorianos de “Christmas Carol” de Dickens: Ebenezer Scrooge, velho ranzinza e sovina que passou a vida inteira juntando uma fortuna, desprezando qualquer contato com as pessoas. Na noite de Natal recebe a visita de três fantasmas (que mostram para ele as visões do passado, do presente e do futuro) levando-o a uma transformação íntima e reavaliando o significado da vida. 

O Natal como uma janela de oportunidades para fazermos uma reforma moral e nos tornamos “bons”: mais compassivos, empáticos etc.

Entretanto, tem um outro lado: a visita do “Mal” num momento tão sagrado – do lar invadido em Esqueceram de Mim às catástrofes exponenciais envolvendo férias, famílias e mal-entendidos num dia em que o próximo está ainda mais próximo. Como o inferno é sempre o outro, isso só pode ser fonte de confusões. Para, no final, a família ou vínculos conjugais ressurgirem mais fortalecidos.

A moralização vitoriana do Natal, principalmente na obra mais adaptada de Dickens (um dos livros mais lidos, lembrados e citados de todos os tempos), foi o desfecho de uma aproximação midiática da figura pagã do Papai Noel com o nascimento de Jesus através de uma mercadológica construção da figura de Noel como mágica ou milagrosa: renas e trenós voadores, o saco sem fundo de Noel como remanescente dos milagres de multiplicação de Jesus, ou os duendes como os apóstolos de Noel.



Na verdade, Papai Noel é descendente de uma longa linha de soturnos, sujos e peludos deuses remanescentes da era pré-cristã que puniam crianças mal-educadas. Como a figura de “Pencenickel” (Pelznickel no original alemão) que usando máscara e roupas escuras trazia correntes para prender as crianças malcomportadas.

Tentar fazer uma síntese de todas essas referências contraditórias sobre Papai Noel e o Natal é complexo. Ainda mais como um entretenimento. Mas é o que faz o filme Noite Infeliz (Violent Night, 2022): um brilhante pastiche projetado pelos escritores Pat Casey e Josh Miller e pelo diretor Tommy Wirkol, cujo ponto de partida do argumento está no prólogo de Os Fantasmas Contra-atacam, de 1988 – um pseudo trailer promocional intitulado “A Noite em que a Rena Morreu” quando terroristas invadem o Polo Norte, fazendo Papai Noel e seus duendes abrirem seu paiol de armas. Ajudado pelo herói Lee Majors que salva o dia.

Um competente pastiche de Esqueceram de MimDuro de Matar e Uma Noite de Fúria (Santa’s Slay, 2005) no qual todas essas referências contraditórias do Natal estão reunidas de uma forma explosivamente divertida.

Numa remota mansão cercada de neve por todos os lados se reúne uma família bilionária e disfuncional que, claro, vai destilar com cinismos e ironias todas as suas diferenças. Até que parece que se esforçarão para entrar no espírito natalino. Mas não contavam com a chegada de uma quadrilha violenta e armada, especializada em roubar bancos e cofres – estão de olho em um cofre da família supersecreto. E que fará a alegria do amargo líder que odeia o Natal, por motivos traumáticos familiares.

Mas não contavam com o Papai Noel que chegava naquele momento no seu trenó voador, pronto para presentear as poucas pessoas boazinhas daquela família. E nem esperavam que acabaram mexendo com o Papai Noel errado.



O Filme

  Noite Infeliz abre com um Papai Noel (David Harbour) amargurado, remoendo auto-aversão em um bar na noite de Natal. Mal-humorado (e com um passado pagão nada convidativo, como descobrimos adiante), ele destila seu desapontamento com as crianças (viraram materialistas e egoístas) e com o mundo. Que parece querer aposentá-lo com as compras online da Amazom.

Bêbado e vomitando, Papai Noel lembra que tem de entregar os restantes dos presentes, voltando para as renas e o trenó. E voando para a remota mansão da bilionária família Lightstone

A família Lightstone, poderosa (com ligações com senadores e governos) e disfuncional está se reunindo no enorme complexo pertencente à matriarca Gertrude (Beverly D'Angelo). Lá tentarão esquecer as suas diferenças para “celebrar” o feriado. 

Estão lá a sua filha de olho na herança Alva (Edi Patterson), seu filho igualmente odioso Bertrude (Alexander Elliot). Para agradar a mãe, deu esse nome estranho para o filho. Ao seu lado, o namorado ator idiota (Cam Gigandet). 

Seu filho Jason (Alex Hassell), que está quase se divorciando da esposa Linda (Alexis Louder), está tentando resolver seus problemas conjugais naquele feriado. Apenas a adorável filha de Jason, Trudy (Leah Brady), ainda parece disposta a abraçar o espírito do Natal. 

Mas, em pouco tempo, os diálogos cínicos e as trocas dissimuladas de ofensas familiares são substituídos por tiros quando uma quadrilha especializada e violenta, liderada por um cara apelidado de “Scrooge” (John Leguizamo) chega para roubar US$ 300 milhões que eles acreditam ter sido adquirido de forma corrupta por Gertrude e escondido em um cofre teoricamente impenetrável.

Enquanto tudo isso está acontecendo, o Papai Noel está no andar de cima da casa e acaba ficando preso lá dentro quando suas renas decolam assustadas com o barulho dos tiros durante o caos inicial da invasão. 



Embora seu primeiro instinto seja fugir, ele percebe que a menina Trudy é um dos nomes destacados na sua bela lista de crianças boas – ela é a única na família Lightstone que merece um presente no Natal. 

Ele decide então se recompor e resgatá-la, utilizando-se de habilidades que ele cultivou em seus dias pré-Papai Noel – séculos trás foi um sanguinário bárbaro que tinha por hábito esmagar crânios com uma enorme marreta. 

Quem assistiu a Uma Noite de Fúria sabe o destino que aguarda aquela quadrilha: Papai Noel vai achar uma marreta na mansão para começar a despachar horrivelmente vários bandidos usando tudo, desde uma marreta, triturador de neve até uma estrela pontiaguda de árvore de Natal para cravar no globo ocular de alguém. 

Por sua vez, a adorável Trudy vai usar suas habilidades de construir armadilhas que ela desenvolveu assistindo ao filme Esqueceram de Mim, de tanto ser reprisado na TV a cabo.

Mas o inimigo mais forte é o obstinado líder da quadrilha, o “Sr. Scrooge”. Quando descobre que está enfrentando o verdadeiro Papai Noel, seu ódio fica ainda maior: por motivos traumáticos na infância, ele odeia o Natal. E decide: matará Papai Noel para aquele ser o último Natal da história. 

O dinheiro fez o Natal

É irônico a figuração que se faz do Papai Noel como um personagem imbuído de um espírito inverso à ganância, ao consumismo e o materialismo. Principalmente quando sabemos que o dinheiro não arruinou o Natal. Ele FEZ o próprio Natal.



Como discutíamos em postagem anterior, o Natal é mais uma tradição inventada a partir do século XIX nos EUA pelas lojas de departamentos a partir de 1841 – a invenção de uma narrativa mercadológica que criou, por exemplo, o embrulho natalino para sacralizar os presentes e criou o Papai Noel como figura secular de Cristo.

Em 1841, uma loja da Filadélfia criou um modelo em tamanho real do Papai Noel como um esforço de marketing para atrair as crianças para a loja. Isso levou a uma tendência na qual as lojas ofereciam oportunidades de ver um Papai Noel "real ao vivo", cimentando o Papai Noel como parte de nossos hábitos de compras natalinas.

A Macy's se tornou a primeira a ter o Papai Noel dentro de uma loja real em 1862, iniciando a tradição aparentemente a-histórica do bom velhinho – clique aqui.

Certamente o elemento mais a-histórico e arquetípico (e verdadeiro) na mitologia do Papai Noel é o lado gore do filme Noite Infeliz: o Papai Noel que arrebenta cabeças dos homens maus com sua marreta.

Como descreve Phyllis Siefker em seu livro “Santa Claus, Last of the Wild Men: The Origins and Evolution of Saint Nicholas, spanning 50,000 years” afirma que Papai Noel é descendente de uma longa linha soturnos, sujos e peludos deuses remanescentes da era pré-cristã. Através de milênios sua figura surge em muitos países adaptando-se às regras e mudanças sociais. Através da Europa, esse deus selvagem fez parte de festividades e rituais de fertilidade, relembrando os ciclos da natureza, morte e renascimento.

Uma figura criada pela tradição antiga para manter as crianças na linha através do terror.

As lojas de departamento norte-americanas limparam sua imagem para aproximá-lo da figura de Cristo para promover as vendas depois da Black Friday.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Noite Infeliz

Diretor: Tommy Wirkola

RoteiroPat Casey e Josh Miller

Elenco: David Harbour, John Leguizamo, Beverly D’Angelo

Produção: 87North, Universal Pictures

Distribuição:  Amazom Prime Video

Ano: 2020

País: EUA/Canadá

 

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