domingo, dezembro 29, 2024

Ninguém vai nos salvar na comédia geopolítica 'Rumours'


Rumours” (2024) é uma sátira geopolítica extremamente engraçada da imaginação fértil do cineasta cult Guy Maddin – o equivalente canadense das elocubrações surrealistas do norte-americano David Lynch. Um cérebro do tamanho de um Volkswagen Beetle no meio de uma floresta, um chatbot projetado para prender pedófilos e cadáveres mumificados da Idade do Ferro que viram zumbis onanistas. Tudo isso atormentará uma reunião de cúpula do G7, realizada em um castelo em algum lugar remoto na Alemanha, liderado por Cate Blanchett, fazendo um avatar de Angela Merkel. Estão redigindo uma declaração conjunta sobre uma crise global indeterminada. Acabam sendo esquecidos lá e ficam isolados. Terão que lutar pela própria sobrevivência. O mundo os esqueceu porque sabe que ninguém irá nos salvar. 

“É melhor queimar do que desaparecer” (Neil Young)


“Cut-up”: técnica literária que consiste em cortar e misturar aleatoriamente um texto para criar um novo produto. Popularizada pelo escritor underground William Burroughs, a técnica foi criada pelos dadaístas com seus poemas com junções aleatórias de palavras para liberar o pensamento da prisão da linguagem. Mais tarde, artistas pop como John Lennon e David Bowie usaram a técnica em composições musicais.

“Brainstorming”: técnica de pensamento criativo para gerar novas ideias e soluções de problemas baseada no jogo de livre associação. Cujas origens estão na técnica freudiana da associação livre como forma de acessar o inconsciente do paciente, permitindo que ele rememore lembranças reprimidas, desejos e fantasias. Equipes de criativos em Publicidade utilizam largamente essa técnica para buscar novos insights para buscar conceitos em campanhas.

Agora, caro leitor, imagine chefes de Estado das grandes potências capitalistas em uma reunião de cúpula do G7 – Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Japão e Itália são participantes de longa data; o Canadá foi incluído no grupo em 1977. A Rússia esteve envolvida como parte do “Grupo dos Oito” por vários anos antes de ser expulsa em 2014.

Basicamente, reúnem-se por dias para deliberarem uma declaração conjunta com intenções, compromissos e metas. Sempre tendo como pano de fundo algum tipo de crise genérica (geopolítica, ambiental etc.). 

De preferência, isolam-se em algum tipo de castelo, palácio ou resort (ficar longe de possíveis manifestantes e essencial) e se sentam em mesas redondas para discutirem o futuro do planeta. 

Imagine esses líderes globais em mesas fartas regadas a vinho e champanhe, redigindo essa declaração conjunta em animadas sessões de cut-up e brainstorming, como fossem compositores pop de vanguarda ou criativos de agências publicitárias. Esqueça a grave crise política mundial. Deixe tudo lá fora! Na reunião, tudo o que os chefes de Estado devem fazer é produzir um documento bem criativo, alto astral e inspirador. Para a mídia e a patuleia se sentirem motivadas.



Pra quê ser tão sério? É assim como o cineasta cult canadense Guy Maddin imagina uma reunião da cúpula do G7 no filme Rumours (2024) - sete poderosos chefes de Estado se encontram num castelo remoto na Alemanha, cuja anfitriã é a chanceler Hilda Orlmann (Cate Blanchett) – uma espécie de avatar da ex-chanceler da Alemanha, Angela Merkel. 

O mundo lá fora parece estar desmoronando por algum tipo de crise indeterminada. Mas na reunião do G7, os líderes parecem mais interessados em discutir alegremente bobagens retóricas para dar um bom impacto na mídia, do que discutir mudanças reais. 

É algo que podemos ver na política mundial todos os dias: slogans e clichês motivacionais acabam substituindo a ação. Maddin e seus colaboradores criam uma comédia geopolítica: como dilemas internacionais podem virar uma idiotice total. E eles zombam muito bem disso.  

Chefes de Estado como criativos publicitários e compositores pop cut-ups? Guy Muddin quer ir mais além em Rumours: não se trata apenas da “incompetência” ou falta de compromisso de líderes mundiais cínicos. Há algo mais estrutural: eles seriam apenas maus atores que acabaram acreditando no próprio personagem canastrão. Não conseguem mais sair do papel porque são necessários como a fachada midiática de um verdadeiro governo que quer fugir do escrutínio público: o chamado “Estado Profundo”.

A mensagem de Rumours é: ninguém vai nos salvar. E a grande piada do filme é: com o mundo desmoronando, eles acabam sendo esquecidos naquele castelo remoto... e ninguém sente a falta deles.



O Filme

Para aqueles que não conhecem, o diretor e roteirista Guy Maddin faz filmes que explodem com criatividade, geralmente alimentados pelo que parece ser interesses pessoais em projetos como Brand Upon the Brain! e My Winnipeg. É uma espécie de David Lynch canadense, com narrativas surrealistas envolvidas em atmosferas com alusões ao expressionismo de Fritz Lang e ao cinema impressionista francês de Abel Gance.

Tecnicamente, Maddin é conhecido pela capacidade de recriar a aparência e o estilo do cinema mudo e do áudio dos primeiros filmes com som.

Rumours pode até parecer um filme fora da curva da filmografia do cineasta: é colorido e conta com um elenco de atores mainstream, liderado por Cate Blanchett. Ainda é inegavelmente inteligente, movido por um grande elenco que sabe o que fazer com essa sátira afiada da política mundial.

O estilo lynchiano está presente em Rumours: um cérebro do tamanho de um Volkswagen Beetle, um chatbot projetado para prender pedófilos e cadáveres mumificados da Idade do Ferro descobertas num sítio arqueológico que, coincidentemente, ocorre no mesmo local da cúpula do G7.

 Todas essas criações atormentam os sete chefes de estado fictícios que se reuniram em na reunião de cúpula anual organizada pela Alemanha, cuja líder Hilda (Cate Blanchett) mal pode esperar para começar um affair sexycom o primeiro-ministro canadense Maxime Laplace (Roy Dupuis). 



Durante um longo almoço em um mirante em uma remota propriedade arborizada, os sete líderes alegremente se debatem para redigir uma declaração conjunta sobre uma crise global não especificada, sem saber que suas reflexões anódinas sobre paz e prosperidade logo serão descarriladas pelo caos salpicado de lama e misteriosos zumbis ressuscitados do sítio arqueológico.

A primeira grande risada em Rumours começa antes mesmo dos créditos de abertura terminarem de rolar: “Os produtores gostariam de agradecer aos líderes do G7 por seu apoio e consulta durante a produção deste filme”. Ora, imaginar que os vários chefes de estado fossem tão generosos e tirassem do seu tempo esforços para adicionar verossimillança ao mais recente sonho febril do ícone do cinema cult Guy Maddin, é tão lindamente ridículo que não resiste ao primeiro ataque de risadas. 

Os líderes são recebidos por Olga em um castelo na Saxônia e todos rumam a pé para um mirante em um ponto alto da propriedade. Lá conhecemos o presidente da França, Sylvain Broulez (Denis Ménochet) um homem corpulento e agitado que atualmente está escrevendo “uma espécie de psicogeografia de cemitérios” em seu tempo livre; ele está particularmente animado para ver os cadáveres de mil anos recentemente escavados que Orlmann está exibindo para seus colegas. 

A primeira-ministra britânica Cardosa Dewindt (Nikki Amuka-Bird) está simplesmente tentando evitar o bonitão do Canadá, Maxime Laplace, que está seriamente preocupado com o envolvimento em um escândalo de corrupção que está para explodir. 

O chefe de estado da Itália, Antonio Lamorle (Rolando Ravello), está apenas feliz por estar lá, oferecendo fatias de salame que guarda nos bolsos. Idem o primeiro-ministro do Japão, Tatsuro Iwasaki (Takehiro Hira). 

Quanto ao comandante-em-chefe dos EUA, Edison Wolcott (Charles Dance), ele é um homem idoso que não perde o hábito imperial compulsivo de vigiar a propriedade com binóculos.

Em intenso brainstorming, eles apenas querem descobrir quais as palavras que estão na moda para inserir no documento final do evento G7. Há uma crise global que nunca ficamos conhecendo os detalhes. Mas todos eles parecem muito pouco preocupados, concentrados em que estão em jogar conversa forma naquele luxuoso mirante.



O G7 luta pela sobrevivência

“Você não pode resolver todos os problemas do mundo... Você nem consegue resolver todos os problemas do Canadá!”, retruca a certa altura Broulez.

Até que algo estranho acontece: um vento forte espalha todos os rascunhos do documento na floresta, obrigando Broulez a persegui-los.  Para retornar com uma notícia perturbadora – todos os serviçais, imprensa e organizadores desapareceram do castelo. Eles estão sós e isolados naquele mirante.

O grupo se vê vagando pela floresta depois de escurecer em busca de comida e abrigo, presos em uma paisagem de conto de fadas e sem saída. Além disso, existem zumbis furiosamente se masturbando — ou talvez sejam apenas manifestantes, ninguém sabe ao certo — que parecem estar perseguindo-os por razões desconhecidas. 

Um cérebro gigante aparece em um ponto. Alicia Vikanderaparece como presidente da Comissão Europeia, falando o que várias pessoas pensam ser uma língua antiga e acabam descobrindo que é apenas sueco. Um chatbot projetado para prender pedófilos acaba desempenhando um papel enorme para suas localizações para resgate, porque, é claro, líderes globais pedófilos são obviamente algoritmicamente suspeitos.

Lá fora está ocorrendo o agravamento, talvez apocalíptico, da tal crise global. Mas ninguém se preocupa em resgatá-los. Parece que Maddin está querendo nos dizer que os sete líderes globais não servem para nada num momento de crise real – são apenas personagens criados para o storytelling do marketing político.

“É melhor queimar do que desaparecer”, é o verso do roqueiro Neil Young que ecoa em vários momentos em Rumours. Parece que lá fora está tudo queimando. Enquanto os líderes do G7 foram esquecidos em algum lugar remoto na Alemanha. 

Se o mundo estiver acabando, ninguém vai nos salvar. Nem Deus nem as suas versões olimpianas secularizadas e midiatizadas concebidas para o brilho efêmero de megaeventos como as reuniões de cúpula do G7.

Onde assistir ao filme? Somente na boa, velha e confiável plataforma em streaming “Stremio”.


  

 

Ficha Técnica 

Título: Rumours

Diretor: Guy Maddin, Galen Johnson, Evan Johnson

RoteiroGuy Maddin, Galen Johnson, Evan Johnson

Elenco:  Cate Blanchett, Roy Duppois, Sylvain Broulez, Nikki Amuka-Bird

Produção: Buffalo Gal Pictures, Thin Stuff Pictures

Distribuição:  Elevation Pictures

Ano: 2024

País: Canadá

 

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