sexta-feira, dezembro 13, 2024

A máquina semiótica que oculta o demasiado humano em 'Conclave'


Um dos eventos mais antigos e secretos do mundo: a reunião do Colégio de Cardeais trancada e incomunicável  com o mundo exterior na Capela Sistina, para a escolha do novo Papa. É o Conclave, um evento que acende a imaginação sobre o que ocorre por trás dos muros da pequena cidade-estado do Vaticano – uma instituição total profundamente hierárquica, inimaginavelmente rica com códigos de conduta rígidos e poder tremendo. Dan Brown imaginou conspirações ocultistas em “O Código Da Vinci”. Enquanto “Conclave” (2024) coloca a questão em termos mais prosaicos: como um grupo tão demasiado humano (ambição, luxúria, inveja etc.) pode escolher o Sumo Pontífice que será o suposto representante de Deus na Terra?  Para ocultar esse paradoxo, a Igreja criou uma máquina semiótica de intrincados símbolos, liturgias e mistérios teológicos.

 

É fácil perceber o porquê daquela pequena cidade-estado chamada de Vaticano atrair tanto a imaginação do público leigo e roteiristas de Hollywood – um mundo fechado entre altos muros, uma organização patriarcal potencialmente sombria, profundamente hierárquica e inimaginavelmente rica com códigos de conduta rígidos e poder tremendo. 

Isso pode soar muito como um retrato em miniatura da Máfia, como no filme O Poderoso Chefão 3. Ou como as adaptações de Dan Brown (O Código Da Vinci etc.) que mostra o Vaticano como um labirinto conspiratório ocultista, com Tom Hanks correndo para encontrar a saída.

O fato é que o Vaticano e a instituição da Igreja se ocultaram por trás de uma muralha semiótica: simbolismos, liturgias, a ritualística, os mistérios teológicos etc. Para ocultar o demasiado humano: no final aquela cidade-estado que abriga o Santo Padre, o Papa, que supostamente é o único representante do Deus criador nesse planeta, é habitada por seres humanos com todos os seus pecados veniais – ambição, luxúria, inveja, ganância e assim por diante.

Mais ainda na reunião dos cardeais da Igreja Católica para a eleição de um novo Papa, realizada quando o Papa atual morre ou renúncia, o chamado Conclave – trancados na Capela Sistina e isolados do mundo exterior, devem entre eles escolher o novo Sumo Pontífice.  Em votos preenchidos a mão e contados manualmente. Então, eles são queimados. A única comunicação durante este processo é por fumaça, cinza para uma cédula que não resultou em votos suficientes para que qualquer candidato fizesse uma seleção, branca quando a escolha for feita.  

O filme Conclave (2024) se propõe a reconstituir fielmente o processo da escolha do Papa. Com uma impecável fotografia e cenografia: as fileiras de cardeais em suas icônicas vestes vermelhas, os uniformes listrados multicoloridos dos guardas suíços e os magníficos detalhes arquitetônicos do Vaticano. 

O contraste entre as cores vibrantes, as obras-primas da arte e do design, a representação de séculos de tradição e as falhas humanas e as pequenas manipulações do demasiado humano diante de séculos de solidez de uma instituição total como o Vaticano, torna o filme emocionante.




Transforma a escolha do novo Papa num thriller de diálogos cortantes e conspirações misteriosas. Mas nada a ver com aquelas conspirações de Dan Brown. Aqui, o filme Conclave enfoca as conspirações das comezinhas relações humanas de cardeais que se dividem em grupos pela língua e nacionalidade.  É a humanidade universal, a ambição, a manipulação, as grandes visões, a mesquinhez, os desentendimentos sobre fé versus dúvida, progresso versus tradição, “nós” vs. “eles” que ressoam mais profundamente.

Por isso, a abertura do filme é simbólica: o Papa jaz morto na sua cama cercado de assistentes e sacerdotes. O anel do pescador (símbolo da humildade do Papa, remetendo ao cristianismo primitivo) deve ser retirado para o selo ser quebrado e impresso um novo. O anel é arrancado com dificuldade do dedo do falecido.

Primeiro, transmite para o espectador que a escolha do novo Papa não será fácil. Mas também, a fragilidade das aparências semióticas – costuma-se dizer que posições de grande poder devem ir apenas para aqueles sábios e humildes o suficiente para não querer eles. Isso pode se aplicar especialmente ao cargo de papa, destinado a ser uma nomeação vitalícia como chefe da Igreja Católica e da Cidade do Vaticano. Uma vez selecionado, ele é entendido como a autoridade final, protegido do erro quando fala sobre questões de fé e moral. 

Mas como cardeais tão demasiado humanos podem escolher o infalível representante de Deus na Terra? É esse o paradoxo central de Conclave.



O Filme

Conclave acompanha um cardeal britânico, Lawrence (um sensacional Ralph Fiennes). Um clérigo de fé incerta, mas com uma convicção inabalável: a Igreja está num conflito entre as certezas teológicas e morais eternas e um mundo que está mudando rapidamente. Lawrence tem olhos tristes e sensibilidade refinada, acabando por ser indicado como o reitor do Colégio dos Cardeais, o grupo encarregado de selecionar o papa, que acabou de morrer. 

Lawrence está muito ciente das falhas passadas da igreja e da necessidade de evitar qualquer dano à reputação da instituição. Ele descobrirá que todos os candidatos são limitados de alguma forma porque são humanos, e o que é pior: um pecado passado, uma manobra antiética para subir ao topo da lista na votação ou um compromisso com políticas que ele e muitos outros consideram reacionárias e prejudiciais para a Igreja. Serão os obstáculos que Lawrence terá que resolver.

O excelente elenco inclui John Lithgow (Cardeal Tremblay) como candidato cujo apoio pode ter cruzado uma linha indecente a antiética, e Lucian Msamati (Cardeal Adeyeme) como um bispo africano cuja escolha pode ser uma oportunidade de enviar uma mensagem de inclusão da Igreja para o mundo, embora um segredo de seu passado poderá ser desqualificá-lo.

Lawrence apoia seu amigo, o Cardeal Bellini (Stanley Tucci), que é sincero sobre seus pontos de vista liberais e, portanto, assusta muitos apoiadores em potencial. 



Na outra extremidade do espectro está a versão católica fundamentalista, o Cardeal Tedesco (Sergio Castellitto), que quer trazer de volta o latim e expulsar qualquer um da igreja que não atenda às suas ideias limitadas de adequação – ele é radicalmente contra o multiculturalismo e qualquer tipo de diversidade que relativize a fé católica

Isabella Rossellini (Irmã Agnes) é formidável como uma freira que, como ela diz, deveria ser invisível, mas não pode deixar de ter olhos e ouvidos – ela comanda as freiras que servem ao Colégio de Cardeais. Mas está atenta às divisões e lutas internas.



Uma das suas subordinadas, uma freira nigeriana, será o pivô de uma das crises que desqualificará um dos cardeais.

Mas um novo cardeal surge inesperadamente, fora da lista inicial do Conclave: um cardeal de uma missão até então desconhecida em Cabul, Afeganistão: Cardeal Benitez (Carlos Diehz), um missionário com experiências em áreas de guerra violentas como Congo e Cabul. Nomeado secretamente pelo Papa inesperadamente falecido, será o personagem que desequilibrará o xadrez político do Conclave.

Baseado no best-seller de Robert Harris de 2016, este é um trabalho meticulosamente pesquisado que escava as tradições e os exotismos arcanos que são exclusivos deste ritual católico. 

Mas o apelo do filme está na sua universalidade. Conclave é a história de uma luta pelo poder: se o espectador abstrair as vestes dos cardeais e a Capela Sistina, a trama poderia muito bem acontecer durante uma campanha eleitoral à presidência da república. Poderia ser uma história de manobras numa sala de reuniões corporativas ou um episódio da série Sucession

É essa universalidade que torna Conclave uma agradável surpresa num tema aparentemente árido - a princípio o leitor pode pensar que ficar trancado em uma sala com um bando de homens idosos pomposos que tentam enganar uns aos outros não seria muito divertido. Mas, acredite: Conclave é um thriller explosivo.

Pois é essa universalidade narrada num Colégio de Cardeais que tem a missão de escolher o representante de Deus na Terra que coloca a fé do Cardeal Lawrence em xeque: como altos sacerdotes que carregam dentro de si a universalidade da imperfeição humana podem escolher o homem mais santo que dignificará Deus?  


 

 

Ficha Técnica 

Título: Conclave

Diretor: Edward Berger

RoteiroPeter Straughan e Robert Harris

Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabela Rossellini, Carlos Diehz

Produção: Indian Paintbrush, Access Entertainment

Distribuição:  FilmNation Entertainment

Ano: 2024

País: EUA/Reino Unido

 

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