Num curto espaço de tempo no cinema francês, tubarões e zumbis turbinados por drogas invadiram Paris. Agora é a vez de enorme e venenosas aranhas vindas do Oriente Médio, no filme “Infestação” (Vermine, 2023). Isso sem falar de filmes como “Colapso” (2019) e “Nocturama” (2016). Um conjunto populacional popular da periferia de Paris é colocado em quarentena quando é infestado por aranhas que crescem exponencialmente (em número e tamanho). Em sua maioria imigrantes, os moradores estão condenados a morrer junto com a infestação de aracnídeos. Desde a onda de atentados islâmicos que varreram a Europa, o continente precisa criar o objeto fóbico para expiar a ansiedade e medo coletivos. Ainda mais agora, com a ameaça da escalada da guerra nuclear da OTAN contra a Rússia.
Depois de tubarões gigantes invadirem o rio Sena (Sob as águas do Sena, 2024) e zumbis turbinados com drogas sintéticas tomarem conta de Paris (MadS, 2024), agora é a vez de aranhas do Oriente Médio provocarem urgência sanitária e um conjunto habitacional popular na periferia de Paris ser colocado em quarentena no filme Infestação (Vermines, 2023).
Chama a atenção desse humilde blogueiro a recorrência da produção cinematográfica francesa de produções de terror que beira ao tom do filme-catástrofe que flerta com o fim da própria civilização, como em MadS.
Sabemos que, historicamente, sejam os filmes-catástrofes propriamente ditos (terremotos, asteroides caindo na Terra, tsunamis etc.), ou seja o terror das infestações e contaminações virais, todos eles operam um deslocamento no psiquismo coletivo, onde a ansiedade e medo social da guerra nuclear e da guerra fria eram transferidos para um “objeto fóbico” representados por invasores alienígenas, formigas gigantes ou até pássaros assassinos – Os Pássaros, de Hitchcock.
Segundo Ignácio Ramonet, esse gênero de blockbuster teria o papel habitual de “deslocamento”: as calamidades fílmicas teriam a função de “criar um objeto fóbico que permitiria ao público localizar, circunscrever e fixar a formidável angústia ou estado de aflição real suscitado pela situação traumática da crise” (Veja RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas. Petrópolis: Vozes, 2002, p.86).
O filme-catástrofe ou o terror da contaminação viral (zumbis, pandemias etc.) é um subgênero hollywoodiano por excelência que tanto expressa o medo fóbico pelo inimigo externo (de alienígenas, terroristas islâmicos ou vírus estrangeiros ) quanto um modelo econômico baseado na obsolescência planejada no qual a destruição e descartabilidade são valores economicamente positivos – sobre isso, clique aqui.
O curioso é ver a produção fílmica francesa aderindo a esse subgênero norte-americano. Numa escola de cinema que sempre foi marcada pela temática da crítica social ou do demasiado humano – a crítica existencial da condição humana.
Certamente tem a ver com o zeitgeist europeu atual: o apoio incondicional da União Europeia à Guerra Fria 2.0 criada pelo governo de Joe Biden e a ameaça da escalada da guerra nuclear contra a Rússia na guerra da Ucrânia. Além da crise inflacionária e desemprego gerada pelo investimento unilateral à geopolítica armamentista da OTAN.
Isso provoca medo e ansiedade coletivos, mas, principalmente, a criação de um objeto fóbico que tente expurgar a tensão coletiva. Seguindo o velho modelo psíquico que Hollywood promoveu durante a Guerra Fria EUA vs. URSS.
Infestação segue todos os tropos de um thriller de terror hollywoodiano, inclusive as clássicas discussões de relacionamento dos protagonistas em meio ao caos – no meio de uma gigantesca infestação de aranhas venenosas que crescem exponencialmente (tanto em número quanto em tamanho), protagonistas ainda arrumam tempo para tentar resolver diferenças e crises familiares – fórmula hollywoodiana para conseguir identificação ou empatia do espectador.
A estreia na direção de longas de Sébastien Vaniček, aborda de forma séria e mortal o tema, diferente de filmes como Aracnofobia (1990) ou Spiders (2000) que fizeram uma abordagem entre a parodia e o camp.
Talvez, o diferencial francês ao abordar um subgênero tão hollywoodiano seja a crítica social – a maneira como as autoridades lidam com tudo como uma crise sanitária, transborda para a xenofobia e preconceito. Um conjunto habitacional habitado por imigrantes das ex-colônias francesas cujo destino foi decretado pelas autoridades: devem morrer junto com as aranhas vindas do Oriente Médio.
O Filme
Kaleb (Théo Christine), de 30 anos, é uma pequena vigarista com paixão por pequenas criaturas. Suas esperanças de abrir um zoológico de répteis com seu amigo Jordy (Finnegan Oldfield) foram esmagadas anos atrás, quando uma discussão separou os dois amigos. Kaleb compensa seu sonho perdido forrando as paredes de seu quarto com viveiros cheios de rastejantes assustadores.
Além disso, Kaleb tenta sobreviver no mercado negro de tênis de grife para comercializar na periferia – principalmente no seu gigantesco conjunto habitacional para moradores de baixa renda, principalmente imigrantes.
O filme abre com vários homens árabes procurando metodicamente por algo logo abaixo de pedras que se espelham no chão do deserto. Estão atrás de animais raros e exóticos para serem comercializados no mercado ilegal. Quando o que procuram, uma aranha exótica, é encontrada, um deles é mordido e trucidado pelo aracnídeo e largado sem cerimônia por seus companheiros no deserto. Enquanto coletam uma ninhada de vários espécimes para comercializar no exterior.
Para azar de Kaleb (que selará o destino de todos), sua última aquisição é exatamente aquela aranha contrabandeada de um deserto do Oriente Médio.
Pouco depois de trazê-la para casa, a aranha escapa de uma caixa vazia de tênis Nike. Kaleb tenta isolar o seu quarto, com a intenção de procurá-la mais tarde. Mas o aracnídeo fotossensível tem uma programação genética própria que rapidamente causará estragos no prédio.
Esta não é apenas uma aranha solta em um complexo de apartamentos. Esta aranha, carinhosamente chamada de Rihanna por Kaleb, acasala rapidamente (a linha do tempo do filme é um dia, talvez dois), e sua prole cresce dez vezes o tamanho de seus pais. Isso acontece várias vezes ao longo do filme, garantindo que as apostas aumentem rapidamente e adicionem uma variedade de situações arriscadas e mortes aterrorizantes em série – as aranhas têm um péssimo hábito de transformar as vítimas em hospedeiras de novas ninhadas de aranhas de dimensões ainda maiores.
Tudo leva à única saída daquele prédio condenado: a sequência em que acompanhamos nossos personagens forçados a caminhar lentamente até o final de um corredor escuro forrado de aranhas antes que o temporizador no interruptor de luz se acabe – como são fotossensíveis, a única forma de paralisá-las é por meio de focos de luz.
Para descobrirem que tanto eles quanto as aranhas foram condenadas pelas autoridades: o prédio foi selado e posto em quarentena, enquanto lá fora um forte esquema de policiais pesadamente armados garante que ninguém saia.
A crítica social está latente em todo o filme: Kaleb é atormentado pelo racismo e xenofobia do seu vizinho branco que continuamente o acusa de ser traficante de drogas e que seu quarto que mantém fechado está repleto de haxixe e cocaína. Do vizinho tão pobre quanto Kaleb às autoridades municipais de Paris, o princípio é o mesmo: livrar a França das infestações que ameaçam a saúde e a cultura dos franceses, sejam ameaças sanitárias ou etno-raciais. O que dá na mesma.
Aranha simbólica
Para além da crítica social, há também a maneira como Infestação lida com o simbolismo do aracnídeo.
O simbolismo da aranha como uma besta fera (assim como nosso inconsciente) paira sobre o filme. A aranha detém um simbolismo paradoxal de simultaneamente ser considerada a grande mãe cósmica (a teia, a tecelã do destino) e também o perigo, a ameaça como predador.
Psicanaliticamente remete a dualidade da mulher no psiquismo masculino: mãe e, por outro lado, prostituta; a proteção da grande nutriz e o objeto do desejo. Em síntese, teríamos a trama edipiana da culpa e do desejo.
Esses são os dois temas principais de Infestação: o medo fóbico e a culpa.
É conhecido que a aracnofobia tem um forte componente cultural: é um fenômeno cultural que é mais comum em sociedades predominantemente europeias. Enquanto em outras como Papua e Nova Guiné, Camboja e outros países asiáticos ou estão incluídas na alimentação tradicional, ou são objetos de respeito e admiração religiosa ou filosófica
E o medo fóbico e sentimento de culpa europeu do seu inconsciente coletivo: o perigo da revanche do inconsciente coletivo – ser invadido por aqueles que foram vítimas da própria expropriação colonial.
Ficha Técnica |
Título: Infestação |
Diretor: Sébastien Vaniček |
Roteiro: Sébastien Vaniček, Florent Bernard |
Elenco: Théo Christine, Sofia Lesaffre, Jérôme Niel |
Produção: My Box Productions, Netflix |
Distribuição: Shudder |
Ano: 2023 |
País: França |