E se Jesus resolvesse voltar usando o mesmo modus operandi: através do Espírito Santo, conceber o Salvador sem o pecado original e sem nenhum pecado mortal ou venial, isto é, sem uma relação sexual e gozo? “Meu corpo, minhas regras!” pensaria a nova candidata a Santa. E denunciaria ao #MeToo o suposto abuso divino. Ou renderia um bom filme de terror como “Imaculada” (Immaculate, 2024) dentro da nova onda do horror à gravidez no cinema. Uma noviça americana vai para um convento remoto na Itália para fazer seus votos finais à Igreja. Para descobrir que está grávida, mesmo sendo casta. A volta de Jesus? Ou algum tipo de conspiração maligna? Certa vez o desenhista Robert Crumb falou sobre a sua versão em HQ da Bíblia Sagrada: “A Bíblia já é muito louca, não precisa ser satirizada”.
“Meu corpo, minhas regras!”, exorta o slogan feminista que defende o direito individual sobre o corpo para escolhas sexuais, reprodutivas e matrimoniais.
Certamente, se Jesus retornasse repetindo o mesmo modus operandi bíblico (concebido sem o pecado original e sem nenhum pecado mortal ou venial, isto é, sem uma relação sexual e gozo) seria rejeitado como uma intrusão, uma anomalia, uma apropriação indevida do corpo feminino no momento político atual de afirmação de gênero.
Como assim? O Espírito Santo inoculando a sua semente num corpo feminino e exigindo a entrega total a Deus, sem vacilações? E pior! Criando uma situação socialmente ambígua - assim como a Maria bíblica, a nova mãe de Jesus permaneceria virgem mesmo depois do parto. Com certeza, na atualidade, não seria considerada uma santa, mas uma aberração natural!
Ou, no mínimo, seria motivo para uma nova denúncia de abuso ao #MeToo.
Certa vez o quadrinista e ilustrador underground Robert Crumb foi perguntado sobre o porquê de ter desenhado uma versão HQ da Bíblia Sagrada tão fiel ao livro original: “porque a Bíblia já é muito louca! Não precisa ser satirizada”, disse.
Mais do que o texto bíblico, o mais louco é a interpretação literal de toda a retórica e simbolismo dos versículos sagrados. E tudo começou no Primeiro Concílio de Niceia, em 325 DC, no qual a Igreja Católica, sob a égide do imperador romano Constantino, fundou as bases teológicas da natureza divina de Jesus Cristo.
Tal narrativa fantástica e mítica acabou rendendo uma excelente matéria-prima para a exploração em estátuas, vitrais e afrescos para a veneração propagandística da imagem dos santos – decisão estratégica do, por assim dizer, marketing católico no Segundo Concílio de Niceia, três séculos depois.
E, na atualidade, rende boas histórias de terror, dentro daquilo que denominamos na postagem anterior como a nova onda do horror à gravidez: a mãe que vive uma relação de estranhamento seja diante forma de concepção, estranhamento em relação ao pai (o demônio) ou estranhamento pela evolução da gravidez (o horror corporal). Uma nova onda que reflete o zeitgeist desse século: a gravidez como alienação de si mesmo em tempos de precarização profissional, existencial e na relação com o futuro – clique aqui.
Um bom exemplo é Imaculada (Immaculate, 2024), dirigido por Michael Mohan e estrelado por Sydney Sweeney (ao lado de Mia Goth, a nova musa dos gritos nos filmes de terror) como a irmã Cecília, uma noviça vinda de Michigan, EUA, pronta para fazer os votos da pobreza e castidade para Deus em um convento remoto na Itália.
Apenas para descobrir que precisamos sempre ter muito cuidado com o que desejamos.
Um convento no qual estão todo os tropos do terror religioso: corredores assustadores à luz de velas; catacumbas misteriosas; visões de pesadelo com figuras com batas e capuzes pretos; e... explosões impressionantes de sangue.
Ao assistirmos ao filme Imaculada, entendemos por que as narrativas bíblicas renderam sátiras e assustadoras histórias de terror: foram interpretadas literalmente pelos fiéis. Que acabaram tão loucos quanto as histórias bíblicas, loucos porque querem vivenciar na literalidade o êxtase sagrado bíblico.
Assim como as freiras daquele convento. Mas, principalmente, um padre demiúrgico que, cercado de assistentes que despertariam a inveja no Dr. Frankenstein, quer reviver na literalidade a natividade e a salvação cristã, em pleno século XXI.
O Filme
“Que desperdício”, diz um oficial de imigração do aeroporto de Roma ao seu parceiro ao ver o rosto luminoso da adorável Cecilia, depois de dizer que o motivo de vir dos EUA é fazer os votos como freira num mosteiro.
“Você ainda pode sair”, diz uma freira com um rosto de pedra (Giulia Heathfield Di Renzi) logo antes de nossa heroína fazer seus votos. “Você é muito doce”, ela também diz a Cecilia, antes de acrescentar ironicamente: “Não quero dizer isso como um elogio.”
Por todo os lados Cecília está ouvindo avisos de advertência. Mas sabemos que algo de muito aterrorizante está à espera dela naquele convento.
Isso porque o filme começa com um flashback de outra jovem freira tentando escapar daquele convento no meio da noite e depois tendo as pernas quebradas contra as barras de aço do portão por um grupo de figuras misteriosas trajando preto da cabeça aos pés.
O que é apenas outra maneira de dizer que sabemos que nada de bom virá, em última análise, da chegada de Cecilia a este lugar, onde sua tarefa ostensiva será a de cuidar de irmãs idosas que estão à espera do encontro final com Deus.
Ela veio para servir a Deus e se entregar de corpo e alma. Mas não esperava que fosse tao literal.
É quando Imaculada começa a entrar no terreno assustador do clássico O Bebê de Rosemary. Ao invés de um prédio claustrofóbico em Nova York, um convento escuro e labiríntico no interior da Itália.
Depois da clássica e ambígua sequência onírica (foi tudo um pesadelo ou realidade?) envolvendo rapto e assédio corporal, nossa heroína e descoberta inexplicavelmente grávida – ela é virgem é jamais sequer namorou um homem.
A liderança do convento decide que é uma concepção imaculada, e que Cecília, de uma humilde serva de Deus, tornou-se a futura mãe do novo salvador da humanidade, a nova Virgem Maria trazendo mais uma vez o filho de Deus para esse mundo.
Torna-se objeto de semi-adoração, colocada em um pedestal (literal), em vestes de uma santa com seu cabelo feito em cachos.
Porém, o mais preocupado é o Padre Tedeschi (Álvaro Morte), uma espécie de mentor de Cecília, o seu protetor e responsável por ter convencendo-a a ir para a Itália fazer os seus votos – principalmente depois de uma milagrosa ressureição depois de cair em um lago congelado e ter sido dada como morta.
O Padre parece saber o porquê da sua gravidez, e quer conduzi-la em segredo do mundo exterior. Cecíla será assistida unicamente por um médico chamado Dr. Gallo e pelo Cardeal Franco Merola (Giorgio Colangela), enquanto o Padre Tedeschi tem um coroinha-assistente arquetípico dos filmes de cientistas loucos, Deacon (Giuseppe Lo Piccolo).
A literalidade louca da Bíblia – Alerta de Spoilers à frente
Na Bíblia o Evangelho Segundo João nos oferece dois versículos que são fundamentais para entendermos os mecanismos arquetípicos presentes no “marketing” da propaganda católica através das imagens: “E o Verbo se fez carne”, diz o versículo 14 do capítulo primeiro.
“Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”, versículos 51-71 do capítulo 6.
Se o pesquisador em Midiologia, o francês Regis Debray, estiver certo de que há uma linha de continuidade entre a civilização das imagens atual e os Concílio de Nicéia no ano 787 que estabeleceu o mistério da Encarnação de Cristo (o Eterno que se tornou carne, o Infinito que se tornou finito) e a representação do Invisível por meio de imagens, então tanto a Igreja quanto Hollywood deveria erguer uma estátua em homenagem a São João – leia DEBRAY, Regis. Vida e Morte da Imagem, Vozes, 1994.
O êxtase místico dos fiéis frente as imagens de vitrais, afrescos e estátuas vem do sortilégio inerente às imagens: o de esquecermos que estamos diante de representações, para tomá-las como a própria realidade – Cristo crucificado com sangue vertendo de suas chagas em pinturas e estátuas como a própria Deus encarnado que veio nos salvar.
Se os fiéis tomam essas imagens da fé como literais, por que não as trazer para a existência real, assim como no versículo de São João: “e o Verbo se fez carne”.
Mas para tanto é necessário um empurrão da Ciência biogenética. E da descoberta de um dos pregos com os quais Jesus foi crucificado... com amostras do santo DNA do filho de Deus.
Então, por que não o clonar e colocá-lo no útero de uma virgem? E trazer de volta o Salvador.
É quando ocorre esse plot twist que Imaculada fica cada vez mais sangrento, na luta selvagem de irmã Cecília contra o padre demiúrgico e seu bizarro experimento fracassado em diversas vezes com outras jovens freiras-cobaias.
Até encontrar Cecília, cujo experimento parece prosperar. Até o Padre Tedeschi descobrir que mexeu com a freira errada – sua fé em Deus de Cecília somente rivaliza com a sua ferrenha convicção: meu corpo, minhas regras!
Ficha Técnica |
Título: Imaculada |
Diretor: Michael Mohan |
Roteiro: Andrew Lobel |
Elenco: Sydney Sweeney, Álvaro Morte, Simona Tabasco |
Produção: Black Bear, Fifty Fifity Films |
Distribuição: Prime Video |
Ano: 2024 |
País: EUA/Itália |