Nesse século estamos vivendo a nova onda do subgênero do terror, o “horror à gravidez”, cujo filme “O Bebê de Rosemary” (1968), de Roman Polanski, é o exemplar mais icônico. Ao lado de “Antibirth”, “A Primeira Profecia”, e “Imaculada”, agora temos uma espécie de spin off do clássico de Polanski: o filme “Apartamento 7A” (2024), com todos os tropos do subgênero: a mãe que vive uma relação de estranhamento seja diante forma de concepção, estranhamento em relação ao pai (o demônio) ou estranhamento pela evolução da gravidez (o horror corporal). Uma nova onda que reflete o zeitgeist desse século: a gravidez como alienação de si mesmo em tempos de precarização profissional, existencial e na relação com o futuro.
Recorrências temáticas na produção cinematográfica são sempre índices da existência de um imaginário, arquétipo ou espírito de época que procura sua representação imagética na cultura popular.
Há um tema dentro do cinema que cresceu paralelo à revolução sexual, a pílula anticoncepcional, o crescimento do individualismo e consumismo, a indústria do sexo e do erotismo e o gozo como um tema transversal do Feminismo até os movimentos LGBT – o tema do horror à gravidez.
A mãe vive uma relação de estranhamento seja diante forma de concepção (abdução, rapto, estupro, sedução etc.), estranhamento em relação ao pai (o demônio, uma mutação, uma máquina, aliens, experiências demiúrgicas sinistras etc.) ou estranhamento pela evolução da gravidez (deformação corporal monstruosa, males psíquicos, alucinações, paranoia etc.).
A lista é longa, desde o seminal Village of The Damned (1960): em um vilarejo no qual todas as mulheres geram crianças mutantes com olhos malignos e capazes de fazer coisas terríveis com as mentes das pessoas.
O Bebê de Rosemary, It’s Alive, I Don’t Want to be Born, Inside, Alien, Prometheus, Demon Seed são apenas algumas produções.
Mas desde Antibirth (2016), seguido de Imaculada, A Primeira Profecia etc., o século XXI parece querer reativar esse verdadeiro subgênero – a heroína que tem sua rotina quebrada por uma monstruosa ou sobrenatural gravidez indesejada cujo bebê tem uma missão maligna sob o comando paterno. Uma protagonista que já vive em um inferno de drogas e álcool e tudo só tende a se tornar pior.
Parece que o século XXI está trazendo novamente a ansiedade e o medo em torno da gravidez.
É a gravidez como experiência de alienação: algo que não me pertence invadiu meu corpo e conspira contra minha própria liberdade e livre arbítrio. Esse parece ser o espírito do tempo do individualismo neoliberal em relação a gravidez: um acidente, algo indesejado, implicando disponibilidade, dedicação e uma série de obrigações que é o oposto do gozo e da liberdade.
Se aceito, precisa antes ser planejado, ter os seus riscos calculados e as relações custo-benefício quantificadas em uma planilha.
Certamente, O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, é o filme mais icônico que consolidou os tropos desse subgênero: paranoia, alucinações, males psíquicos, a conspiração de amigos e familiares, atmosferas claustrofóbicas, horror corporal entre outros.
Por isso, nessa espécie de nova onda do horror à gravidez sobre as ansiedades em torno da concepção não poderia faltar ao invés de um remake, um spin off tardio do clássico de Polanski.
É o filme Apartamento 7A (Apartment 7A, 2024), de Natalie Erika James, que conta a história de uma personagem que conhecemos de passagem no início da saga da pobre Rosemary Woodhouse, que conhece Terry no porão assustador do edifício Bramford, apenas para ver seu corpo ensanguentado na calçada logo depois.
Natalie James pega essa personagem menor de O Bebê de Roemary e imagina suas últimas semanas, traçando o arco da mulher que os Poderes do Mal da Cidade de Nova York tentaram transformar na mãe do Anticristo antes de Rosemary.
O Filme
A escolha em fazer um spin off ao invés de uma refilmagem foi sábia: o brilho contido do original de Polanski, estrelado por Mia Farrow como uma mulher que começa a perceber que seu filho por nascer é a criação do diabo, tornou difícil qualquer tipo de remake.
É estrelado por Julia Garner que interpreta Terry Gionoffrio, uma dançarina ambiciosa, mas sem um tostão no bolso e que veio para Nova York apenas com o talento e coragem.
Mas seus sonhos da Broadway foram despedaçados por uma grave lesão no tornozelo após uma queda em uma apresentação. Reconhecida no meio como “a bailarina que caiu”, anda mancando, mas tentar disfarçar nas audições em busca de trabalho.
Após outro acidente na rua, Terry é socorrida pelos Castevets (Dianne Wiest – Minnie - substituindo Ruth Gordon no filme original e Kevin McNally – Roman - assumindo Sidney Blackmer). É quando ela vê sua sorte mudar: o casal de idosos começa a tratá-la como da família, um pouco sufocante, mas sempre útil, permitindo que ela não precise pagar aluguel - ganha um apartamento ao lado do casal idoso no mesmo sinistro edifício no qual vimos os horrores de Rosemary em 1968.
Como sabemos muito bem, os Castevets têm uma agenda nefasta motivada pela adoração ao diabo e determinados a ajudar a pôr em prática um plano para derrubar o domínio de Deus, procurando uma jovem que possa ser capaz de ajudar a trazer o Anticristo para esse mundo.
Como o original, o filme sabiamente percebe que aqueles ansiosos para entrar no show business são mais propensos a serem atraídos pela promessa de vender a alma. Embora o acordo de Terry aqui seja menos óbvio do que o oferecido ao implacável marido ator de Rosemary em 1968, ela ainda está cega pela ideia de ver seu nome piscando nos painéis luminosos da Broadway.
Terry vê seu pé melhorar milagrosamente após aplicar um remédio caseiro de uma idosa do ciclo de amizades daquele sinistro edifício – certamente, algum unguento de alguma receita demoníaca do caldeirão de bruxaria.
Consegue um emprego em um musical da Broadway, cujo produtor (claro!) mora no mesmo edifício em dos Castevets. Terry será seduzida e abusada sexualmente por ele... e o resto será quase o mesmo destino de Rosemary.
Porém, com uma marcante diferença: sua ascensão na carreira no showbiz é ameaçada pela gravidez. Logo os Castevets oferecem o pacto: sua carreira não ficará prejudicada e seu bebê será adotado pelos seus protetores para que possa seguir a sua carreira em meteórica ascensão – “é assim no showbiz”, afirma a certa altura uma linha de diálogo tentando convencer Terry.
O pesadelo de Terry seguirá o caminho angustiante de sua antecessora: o isolamento devastador acompanhado por médicos, alucinações, a crescente paranoia e memórias fragmentadas e pouco nítidas, mas que apontam para um ritual diabólico no porão do edifício Bramford, na noite em que foi seduzida.
O curioso em Apartamento 7A é que, desde o início, tudo parece inrerentemente diabólico: ao contrário de 1968, aqui nesse filme já sabemos que Terry terá um destino terrível e que o discurso do adorável casal de idosos protetores não passa de uma mentira engendrada pelo próprio diabo.
Por ser um filme desde o início com spoiler, a diretora e roteirista Natalie James investe em outros temas mais atuais: a relação com a gravidez não apenas como estranhamento demoníaco, mas como um obstáculo que pode prejudicar o sucesso profissional.
Mas também o velho tema de como artistas são capazes de ir longe demais pela fama e reconhecimento.
É o que esse humilde blogueiro chama de “Síndrome de Vida de Inseto”.
O leitor deve lembrar da animação da Pixar Vida de Inseto (A Bug’s Life, 1998) no qual acompanhávamos um circo de insetos de um empresário embusteiro chamado P.T. Flea. Os insetos artistas foram enganados pelo empresário charlatão. Indignados com o patrão, o louva-deus mágico Manny protestava: “Como ousa! O senhor é o charlatão nessa história. Aproveitando-se das almas de artistas infelizes, sedentas por atenção...”. Com salários atrasados, os pobres artistas insetos se submetiam a P.T. Flea unicamente por carência de reconhecimento e atenção de pequenos públicos.
Apartamento 7A parece revelar o porquê do plano do diabo encontrar uma mãe para o seu filho anticristo em Nova York. É a Broadway, repleta de artistas aspirantes sem um tostão, como Terry (ou como o marido de Rosemary), sedentos por fama, sucesso, mas, principalmente, carentes por atenção. Capazes de fazer qualquer tipo de acordo...
Mas também revela a nova onda do horror a gravidez no cenário cultural – em tempo de precarização profissional e existencial no vale-tudo neoliberal, pensar em filhos ou na própria posteridade deixou de ser realista ou... demoníaco.
Ficha Técnica |
Título: Apartamento 7A |
Diretor: Natalie Erika James |
Roteiro: Natalie Erika James, Christian White, Skylar James |
Elenco: Julia Garner, Dianne Weist, Kevin McNally |
Produção: Platinum Dunes, Sunday Night |
Distribuição: Paramount + |
Ano: 2024 |
País: EUA |