quarta-feira, agosto 21, 2013
Wilson Roberto Vieira Ferreira
De forma
despretensiosa através de muito humor negro e cinismo, a animação francesa “A
Pequena Loja de Suicídio” (Le Magasin des Suicides, 2012) de Patrice Laconte nos faz pensar em
uma questão fundamental para a História da Cultura: por que o suicídio foi sempre objeto de tabus
religiosos e repressão ao longo da História? Talvez porque nesse momento
derradeiro da vida do indivíduo se exponha de forma dramática as mazelas da
sociedade. Na animação de Laconte é a crise europeia e a forma
como a ideologia dos negócios consegue ver a infelicidade e o desespero como
mais uma oportunidade de mercado.
“Só
há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida
merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental de filosofia. O
resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias,
vem depois. São apenas jogos: primeiro é necessário responder.”
- Albert Camus –
A obra de estreia do cineasta frances Patrice
Leconte em filmes de animação, “A Pequena Loja de Suicídios” pode ser considerado
um produto cultural reflexo do imaginário europeu atual de um continente imerso
na crise econômica. Como explicita o filme, “os franceses já não riem”.
Tudo se passa em uma cidade triste e depressiva,
onde ninguém mais se diverte. Os dias são sempre cinzentos, as ruas com um
trânsito confuso e congestionado cercado por enormes prédios com pequenas
janelas, enquanto nas calçadas as pessoas se arrastam desanimadas. Algumas se
jogam diante do primeiro carro que veem ou se atiram dos prédios mais altos.
Mas
o suicídio não é permitido pelo Estado, pelo menos não em lugares públicos.
Quem se mata publicamente recebe de imediato um recibo de multa que é colocado
no corpo: os familiares pagarão a pesada multa... ou o próprio suicida, se for
mal sucedido.
Apenas
um único negócio prospera: a loja de artigos para suicidas, a Casa Tuvache,
que oferece para os clientes “uma morte requintada”, tendo como lema “ajudá-lo
a morrer é a nossa felicidade”.
“Se
sua vida foi um fracasso, pelo menos a morte será um sucesso”, fala a certa
altura o impagável Mishima, dono do estabelecimento. Ele, sua esposa Lucrèce e
seus filhos Vincente e Marilyn tocam o negócio que vai de vento em popa:
forcas, venenos, facas, espadas, rochas amarradas em correntes e afins, de
acordo com o gosto do cliente.
Mas
tudo mudará com a chegada do terceiro filho, Allan, que para azar da
família Tuvache é sorridente e com um semblante cheio de vida e pensamentos
positivos. Um contraste com o aroma de morte tão desejado pela família para os
negócios. Junto com um minoritário grupo de crianças também alegres, criará
confusões e arquitetará um plano anárquico para mudar o deprimente estado de
coisas, tentando provar que a vida não deve ser levada tão à sério para todos
serem tão tristes.
Suicídio consumista
Baseado
no livro homônimo de Jean Teulé, a animação é composta por vários musicais, em
um tom narrativo que lembra muito “A Noiva Cadáver” de Tim Burton. Muito humor
negro e linhas de diálogo politicamente incorretas. Leconte é feliz ao associar
o tema do suicídio pela crise econômica e de valores a uma loja que
paradoxalmente exacerba o desejo por consumismo ao oferecer formas requintadas de
morte para que, pelo menos, esse momento seja um sucesso depois de uma vida de
fracassos.
Mas
o mote principal da “Pequena Loja de Suicídios” é a cínica visão ideológica de
que a crise é um momento de oportunidades e de empreendedorismo. Morte e
suicídio são transformados em mercadorias por uma necessidade muito simples que
está implícita na narrativa: com um Estado vigilante evitando que as pessoas se
matem, o suicídio tem que ter 100% de eficácia e sem possibilidade de falhas ou
de sequelas que poderiam deixar a vida pior do que já está. Tem que ser rápido
e, ao mesmo tempo, espetacular.
Pela
lógica do sistema econômico de mercado, um objeto só pode ter valor se for
escasso. Essa é a condição essencial para que qualquer coisa seja transformada
em mercadoria com um valor que seja rentável para quem o comercializa. A morte
é a saída mais desejada nesse triste mundo alternativo e que, por isso mesmo, é
impedida ou dificultada pelo Estado. Por isso, o suicídio transforma-se em
mercadoria que é habilmente explorada pela “Pequena Loja de Suicídios”.
Uma história social do suicídio
Em
toda a História o suicídio foi marcado ou como tabu religioso ou forma de
controle e distinção social. Por exemplo, tanto em Roma como Atenas adotou-se
diferentes atitudes em relação ao suicídio de acordo com a classe social:
legitimava-se o suicídio do senhor, enquanto era condenado quando o escravo se
matava. Era considerado uma afronta à autoridade do senhorio. Como um cidadão
livre, com o suicídio o senhor exercia sobre si mesmo o direito próprio de sua
condição pública amparada pela lei.
Ora
tolerado, ora reprimido, será com os primeiros séculos da Era Cristã que será
totalmente condenado no século V por Santo Agostinho e o Concílio de Arles (452
D.C.), para culminar com a condenação e todas as formas de suicídio no “Decret
de Gratien”, compêndio de Direito Canônico do século XIII. Matar-se era atentar
contra Deus, o único que criou o homem e que, por isso, teria o direito de
mata-lo. A vida deixa de ser um patrimônio humano para se tornar divino.
Suicidas são igualados ladrões e assassinos e combatidos pela Igreja e Estado.
A
partir da Revolução Francesa, o suicídio passa não mais a ser condenado ou
reprimido, mas considerado como algo clandestino, tóxico, patológico e
contagioso. Já estamos aqui no campo que o filósofo francês Michel Foucault
descrevia as formas de biopoder e controles capilarizados na sociedade a partir
do discurso médico da patologia. Discursos que irão controlar as formas
legítimas de viver (ou de estender artificialmente a vida por meio da
tecnologia invasiva hospitalar) e de morrer.
Olhando a História em perspectiva, é no suicídio que encontramos a
forma mais radical de reivindicação do direito individual, onde incidem as
formas de controle e poder: distinção de classe social, tabu religioso,
controle do Estado e, finalmente, como patologia a ser tratada.
Suicídio e mercado
Mas
a animação do francês Patrice Laconte oferece uma nova forma de controle sobre
o suicídio e o indivíduo, forma mais cínica e, por isso mais invasiva: a morte
e o suicídio como objeto do empreendedorismo e de oportunidade de negócios. O
suicídio absorvido pelo imaginário neoliberal da ordem do mercado, a mesma
ordem que joga o mundo da “Pequena Loja de Suicídios” na crise e desesperança.
O
consumismo explorado pela Casa Tuvache mesmo na hora derradeira da vida do cliente,
secretamente expõe o mecanismo de funcionamento de todo o comércio: a infelicidade.
Pessoas felizes e satisfeitas com a vida não são consumistas, como revelam
todos os estudos de Michael Schneider em seu livro Neurose e Classes Sociais (já discutido em postagem anterior - clique
aqui para ler) onde por trás do sucesso da revolução das vendas se
esconderia a escassez psíquica cujo sintoma é a impulsividade, irresponsabilidade
feliz e compulsão do consumidor. Escassez é a alma do negócio – quanto mais
estiver em falta a felicidade e satisfação, mais cara é a felicidade vendida no
mercado através de produtos como sexo, carros, grifes, até chegar à mercadoria
derradeira, a morte.
É
a própria essência da economia de mercado: escassez e crise são oportunidades
de novos negócios e mercantilização de novas esferas da vida social nunca antes
exploradas. A vida saudável está desaparecendo? Pois então produtos orgânicos
tornam-se desejados e caros. Qualidade de vida desaparece? Pois então
condomínios fechados tornam-se alvos de especulação imobiliária... e assim por
diante.
Não
querendo fazer um spoiler, o papel do alegre e “desajustado” Allan será decisivo ao expor essa lógica perversa: se todos forem felizes, ninguém
vai querer se matar. Hora de mudar de negócio.
O
grande mérito de “A Pequena Loja de Suicídios” e trazer essa reflexão
fundamental para toda a Filosofia e História da Cultura: por que o suicídio
sempre foi objeto de tabus e repressão ao longo da História? Porque é a forma
de protesto mais visível e eloquente onde se contrapõe a morte diante da perversidade
da vida.
Ficha Técnica
Título: A Pequena Lógica de
Suicídio (Le Magasin des Suicides)
Diretor: Patrice Laconte
Roteiro: Patrice Laconte, Jean
Toulé (livro)
Elenco (vozes): Bernard Alane, Isabelle
Spade, Kacey Klein
Produção: ARP Sélection, Caramel
Films, Diabolo Films
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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