sábado, julho 15, 2023

Uma epidemia esotérica de espirais no filme 'Uzumaki'


Esta é para os cinéfilos amantes dos filmes estranhos: a produção japonesa “Uzumaki” (“Espiral”, 2000), do diretor Akihiro Higuchi (aka Higuchinsky), baseada em uma série de mangá. No auge do J-Horror de final de século, “Uzumaki” é um exemplar estranho: não há um monstro definido ou qualquer tipo de vilão aterrorizante. Tudo o que temos é uma espécie de epidemia de espirais: como os habitantes vão do fascínio inexplicável pela forma até o ponto em que o próprio corpo começa a se retorcer em espiral ou pessoas desenvolvem conchas de caracol em suas costas, começando a subir paredes e prédios. “Uzumaki” segue uma longa tradição simbólica da espiral no cinema, desde “O Mágico de Oz” – um símbolo de ondulação com intrincado significado esotérico e ocultista.

O final de século do cinema japonês foi marcado pela ascensão do J-Horror como Cure de Kiyoshi Kurosawa e Ring de Hideo Nakata – com uma versão hollywoodiana: O Grito. O J-Horror acabou merecendo a atenção do Ocidente pela mudança de fórmulas e dos tropos do gênero que, após os desdobramentos da chamada “Espantomania” (Jason, Fred Krueger etc.) acabou tornando tudo previsível demais.

O J-Horror também criou produções estranhas que acabaram sendo ignoradas – afinal, a principal matéria-prima dessa transformação do gênero era os mangás e sua narrativas fantásticas e fluidas que misturam tradições orientais com simbolismos ocultos e esotéricos ocidentais.

Um grande exemplo é Uzumaki, (“Espiral”, 2000), dirigido por Akihiro Higuchi (aka Higuchinsky) e baseado no mangá original de Junji Ito. A produção de Uzumaki começou antes de Ito terminar de escrever a série de mangás. Possivelmente, por insistência do estúdio, para que pudesse coincidir com o lançamento de outra adaptação de Ito, Tomie: Rebirth. Como resultado, o mangá e o filme têm desenvolvimentos significativamente diferentes.

O que caracterizava principalmente o J-Horror é a premissa de que o sobrenatural se esconde em objetos e lugares os mais cotidianos, podendo eclodir do nada forças perigosas e incontroláveis. Como em Ring, cujo sobrenatural aflige aqueles que cometem o erro de assistir a uma determinada fita de vídeo.

E o exemplo de Uzumaki, que leva essa premissa do J-Horror ao campo da estranheza radical – sem qualquer explicação, do nada, uma pequena cidade no interior do Japão é amaldiçoada por uma espécie de epidemia das espirais - forma geométrica encontrada desde as nuvens no céu até a concha do caracol encontrado nos jardins de todas as casas.

Dividido em quatro episódios (Premonição, Ruínas, Invasão e Transmigração), o filme descreve através do horror corporal como os habitantes vão do fascínio inexplicável pela forma até o ponto em que o próprio corpo começa a se retorcer em espiral ou pessoas desenvolvem conchas de caracol em suas costas e começam a subir paredes e prédios.

O absoluto non sense do argumento é evitado pela inserção do simbolismo da espiral, com grande significado na tradição ocultista e esotérica.



No simbolismo oculto a espiral representa a auto evolução, a alma ascendente, da matéria ao mundo espiritual. Além disso, a espiral partilha de uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade. Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através das mudanças.

Esse simbolismo parece representar a própria condição do jovem casal protagonista: a estudante de ensino médio Kirie (Eriko Hatsune) e Suichi (Fhi Fan) – ele, às portas dos exames nacionais para a admissão nas mais importantes universidades do país; e ela, uma adolescente vivendo os dramas de crescimento convivendo realidade de bullying escolar e o assédio sexual. 

Jovens buscando manter suas identidades num momento de mudanças rápidas com a passagem para a vida adulta. Tornarem-se independentes dentro das limitações de uma pequena cidade interiorana, mas ao mesmo tempo manterem suas essências – alma, espírito etc. Por isso, um forte senso de desencanto com as limitações de seu ambiente e um sentimento de alienação ou estranhamento diante de pais e amigos passa a dominar os protagonistas.

Muitos compararam o filme a Donnie Darko de Richard Kelly, outro conto de terror cujo enredo envolvendo viagens no tempo, bem como o conceito de destino em seu núcleo, também é um retrato profundamente reflexivo das mudanças com as quais um jovem tem que lidar quando se torna mais independente. Ambas as produções seguem os mesmos temas.

O Filme

Mesmo que ela tenha passado toda a sua vida na pequena cidade chamada Kurouzu-cho, ultimamente seus arredores parecem ter mudado aos olhos da estudante do ensino médio Kirie Goshima. Embora a princípio ache que é devido ao fato das mudanças por agora frequentar o ensino médio, seu amigo Shuichi também começa a descrever muitos eventos estranhos, começando com as estranhas obsessões de seu pai Toshio (Ren Osugi) com espirais. 



De repente, Toshio começou a colecionar muitos itens, de pinturas a placas de loja contendo espirais ou algo de formato semelhante. Ele deixou o trabalho para passar a maior parte de seus dias olhando para espirais. Enquanto sua esposa e seu filho tentam encontrar respostas para esse comportamento estranho. No entanto, à medida que a obsessão de Toshio se torna mortal, culminando em seu bizarro suicídio (se joga numa máquina de lavar roupa querendo ser tragado pelo próprio movimento em espiral da lavagem), isso marca apenas o início de uma série de eventos estranhos na comunidade.

Enquanto Kirie e Shuichi observam seus colegas de classe e seus próprios familiares sendo pegos na mesma obsessão por espirais que Toshio, sua cidade natal outrora pacífica se torna um lugar de perigo e morte. O que até atrai a mídia, com repórteres cobrindo as mortes que se sucedem. 

Percebendo a maldição que se abateu aparentemente diretamente do céu (pesadas nuvens escuras em espiral se estendem sobre a cidade enrolando-se para baixo como fossem o dedo acusatório de Deus), os dois adolescentes veem apenas duas opções: ceder à obsessão que já está afetando a maior parte da cidade ou procurar uma maneira de escapar.

O que torna o filme Uzumaki particularmente curioso e único é por ser um horror sem um monstro definido ou qualquer tipo de vilão aterrorizante. E apesar de se tratar de uma espécie de invasão aparentemente vinda dos céus, não há invasores alienígenas ou planos de dominação. 

O vilão aqui é meramente um padrão de ondulação. O fato de ser uma força externamente inofensiva, sem causa aparente a ser abordada, é o que torna o filme ainda mais estranho e perturbador.



A única esperança de racionalização ou explicação sobre tudo que ocorre parte de um jornalista local que vai tentar encontrar alguma causa nos arquivos do jornal sobre a história da cidade – cujas informações apontam para o Lago Libélula e uma intrincada simbologia oriental envolvendo espelhos que foram jogados na água e serpentes. Mas quando parece que vai chegar a uma teoria plausível, ele é apanhado pela onda dos acontecimentos e é vítima de outra morte bizarra.

A espiral no cinema

 A espiral como simbolismo central do filme acompanha uma longa tradição de espirais simbólicas no cinema. Para começar, no clássico O Mágico de Oz (1939): o começo da estrada de tijolos amarelos começa com uma espiral – através da estrada os protagonistas vão encontrar muitos perigos e mudanças na estrada, mas devem descobrir aquilo que lhes é eterno e imutável: coração, inteligência e coragem. Assim como na espiral, encontrar o permanente em meio à mudança.


Cidade das Sombras, Pinky Dink Doo e O Mágico de Oz


Assim como em Cidade das Sombras (Dark City,1998), no qual alienígenas aprisionam humanos em um experimento: uma cidade simulada na qual os habitantes trocam de identidade a cada noite, durante o sono – procuram entender a essência humana (sua alma) que permanece mesmo sob constantes mudanças. Mais uma vez espirais estão presentes como inscrições nas paredes de um apartamento.

Ou, saindo do cinema e entrando no audiovisual infantil, na série de animação Pink Dink Doo (2005-2011): uma espiral estampada no vestido da pequena protagonista que adora inventar história e incentiva o uso da imaginação. Evoca um sentido gnóstico ao simbolismo da espiral: “tudo o que você precisa já está dentro da sua mente”. A espiral como jornada labiríntica da alma ao encontro de si mesma, seja após a morte ou então como jornada de conhecimento interior.

Em Uzumaki o simbolismo da espiral assume um significado inédito: punitivo, ao transformar-se numa maldição epidêmica que assola uma pequena cidade. É como o significado espiritual e oculto da espiral se vingasse de uma cultura que prioriza as mudanças (os temidos exames para as universidades, ritual de passagem traumático para o jovem – como Shuichi confessa no início do filme) em detrimento da permanência: alma e caráter.


 

Ficha Técnica

 

Título: Uzumaki

Diretor: Higuchinsky

Roteiro: Junji Ito, Kengo Kaji, Takao Nitta

Elenco:  Eriko Hatsune, Fhi Fan, Ren Osugi, Hinako Saeki, Keiko Takahashi

Produção: Omega Micott Inc., Shogakukan

Distribuição: Elite Entertainment (DVD)

Ano: 2000

País: Japão

   

 

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