segunda-feira, agosto 22, 2016

A distopia do esquecimento no filme "Embers"



Uma doença neurológica contaminou a maioria da população do planeta, na qual as pessoas perdem as memórias de curto prazo. A vida em sociedade torna-se impossível, transformando grandes cidades em espaços vazios e ruínas por onde vagam pessoas tentando sobreviver imersas no esquecimento. Esse é o filme “Embers” (2015), uma co-produção Polônia/EUA que faz uma abordagem bem diferente do tradicional tema das distopias pós-apocalipse: aqui não há um mundo novo a ser reconstruído por adição, mas um mundo cruel que opera por subtração. O filme questiona: o que nos torna humanos? A memória ou o esquecimento? Mas “Embers” também é sombriamente profético -  num mundo digital no qual a memória é frágil e efêmera, a única coisa que sobrará serão os suportes analógicos dos livros, a última esperança para recuperar a humanidade esquecida. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

O que nos define como humanos: a capacidade de lembrar ou de esquecer? A memória pode ser a base da nossa identidade, aquilo que define quem somos. Mas em muitas ocasiões, transforma-se num fardo opressor que não permite a libertação. Porém, o que chamamos de realidade pode ser baseado no esquecimento daquilo que fomos. E o que é pior: podemos ter esquecido que esquecemos, tornando a realidade banal e aceitável.
Essa é a indagação central em um distópico mundo futuro mostrado pelo filme Embers (2015) onde uma não identificada doença neurológica contaminou a maioria da população do planeta, fazendo as pessoas perderem a memória de curto prazo em diferentes níveis.
Sobreviventes de um mundo que está em ruínas (nas grandes cidades a perda da memória das pessoas simplesmente colapsou toda infraestrutura de energia e serviços) vagam por paisagens vazias tentando reunir fragmentos de suas sinapses cerebrais desgastadas para, daqui a alguns momentos, esquecer tudo para novamente recomeçar do zero. A vida não mais opera por adição, mas agora por subtração.
Em muitos aspectos, Embers lembra o filme Ensaio sobre a Cegueira (2008) onde uma inexplicável epidemia de cegueira atinge a todos que passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários.


Diferente disso, Claire Carré (na sua estreia em direção de longas) e Charles Spano optam por uma abordagem mais (desculpe o trocadilho) cerebral e episódico concentrando-se em uma série de personagens que vivem a doença neurológica em diferentes estágios e tentam seguir em frente nas suas vidas.
Para muitos, Embers parece ser mais um filme sobre distopias, tema comum no cinema sci-fi. Um tema dileto por roteiristas, porque após o apocalipse o mundo surge como um espaço livre para criar novos personagens, narrativas, situações e cenografias soltas das amarras da verossimilhança.
Embers, por outro lado, afasta-se dessa abordagem comum das distopias, optando por atravessar um terreno mais existencial focado nas questões que envolvem a identidade e a realidade. Em vez de construir um mundo diferente com um novo conjunto de regras e orientações, o filme nos mostra uma narrativa de desconstrução e subtração: embora estejamos no pós-apocalipse, falta ainda desconstruir aquilo que entendemos por humanidade, realidade, racionalidade e identidade.
Um filme cruel, porque após a sociedade humana ser destruída fisicamente, falta agora destruir o próprio senso de identidade, aquilo que supostamente nos definiria como humanos.


O Filme

Nada é explicado sobre a origem da epidemia neurológica. Apenas que se iniciou nos grandes centros urbanos.
O filme começa com um casal de errantes (Jason Ritter e Iva Gocheva) que acorda juntos, mas sem conseguir lembrar de nada sobre o outro. E nem de si mesmos. O par assume que deve ter algum tipo de relacionamento romântico, mas estão fadados a repetir o mesmo esforço em resgatar indícios de memória todos os dias.
Enquanto esse romance minimalista vem e vai, conhecemos outros personagens paralelos: um professor (Tucker Smalwood) que criou um engenhoso sistema em sua casa em uma zona rural para resgatar memórias do dia anterior através de anotações e cordas estendidas que o faz não esquecer o caminho de volta para casa; uma criança (Silvan Friedman) que vaga pelos bosques e vive uma espécie de loop mental, resmungando e correndo em círculos; um homem psicótico e raivoso (Karl Glusman) que passa o dia arrebentando para-brisas dos carros abandonados pelas ruas sem saber o porquê desse impulso.
Aliás, as únicas coisas que restaram foram memórias reflexas como, por exemplo, andar de bicicleta ou certas habilidades manuais como rachar lenha – o que resulta em mais um esforço de memória: como eu sei fazer isso? Mas esse breve momento de lembrar de que algo foi esquecido vai embora. Esquecer que esquecemos torna a realidade estranha e divorciada de qualquer racionalidade.
O contraponto de tudo isso é um homem rico (Roberto Cots) que conseguiu escapar da contaminação com a sua filha chamada Miranda (Greta Fernandez), confinados em um bunker subterrâneo high-tech. Todas as manhãs Miranda responde a perguntas de um sistema de diagnóstico computadorizado para garantir que ela não foi infectada com a doença.


No bunker estão todas as memórias da sua família e da própria espécie humana. O pai quer garantir o que restou de humanidade: quadros, o HD do computador e um violoncelo que Miranda toca diariamente. Mas tudo não passa de um museu morto. Para Miranda a memória e o tédio são pesadelos numa prisão sem vida. Ela quer o oposto: sair de lá para se sentir viva, nem que seja ao custo da infecção e perda eterna da memória.

Esquecimento e inocência

Embers explora esse polo oposto: de um lado a memória do bunker como um museu sem vida; e do outro o mundo de fora onde está o esquecimento, mas por outro lado pulsa de experiências e sensações que, no final, é o que nos torna vivos. Porém, sem conseguirmos fixa-las em símbolos ou linguagem.
O filme sugere uma inocência na luta pela sobrevivência dos personagens – afinal, sempre estão experimentando experiências como fosse a primeira vez (o toque da areia nas mãos, os pés na água do mar). Todas as experiências que normalmente seriam traumáticas, não são superadas, mas simplesmente esquecidas. Todos apenas vivem o momento, a intensidade do tempo e do espaço.
Nem podemos dizer que os personagens vivem numa cultura hedonista ou niilista, porque a dimensão ética e moral desapareceu – esquecemos que esquecemos, não há mais referência nem de passado ou futuro.


A esperança nos livros

Mas é justamente por isso que o mundo se arruinou em uma distopia inconsciente. Apenas os habitantes do bunker sabem o que foi perdido. E também o professor na sua casa de campo, imerso na sua engenhosa metodologia para se apegar a índices de memórias. E nos livros que o rodeiam, nos quais faz diariamente uma pesquisa prometeica para tentar encontrar um meio de recuperar as sinapses neuronais. Mas  a cada dia está condenado a recomeçar do zero.
É nesse ponto que Embers sugere um tema atual e urgente: livros foram o único registro de humanidade preservado. Num mundo tecnológico e digital, os registros magnéticos em suportes informáticos são frágeis e efêmeros, diante da memória analógica dos livros. Em uma catástrofe, facilmente esses frágeis suportes seriam perdidos, desmagnetizados ou simplesmente corrompidos.
Ao contrário dos suportes analógicos, capazes de resistir a séculos de História. Se hoje fazemos História, é devido ao legado analógico. Será que as gerações futuras terão algum registro da nossa civilização? Nesse sentido, o filme Embers pode ser sombriamente profético.


Ficha Técnica

Título: Embers
Diretor: Claire Carré
Roteiro:  Charles Spano, Claire Carré
Elenco:  Jason Ritter, Iva Gocheva, Greta Fernandez, Tucker Smallwood, Roberto Cots
Produção: Chaotic Good, Papaya Films
Distribuição: Bunker Features
Ano: 2015
País: Polônia/EUA

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