Para a grande mídia, Bolsonaro é uma figura tóxica: extrema-direita, golpista, autoritário, intolerante, negacionista... Mas não consegue esquecer dele! Por que não o condena à “Sibéria do esquecimento” (Brizola), como tentaram com Lula e fizeram com outros tantos personagens políticos na história recente? Inelegível e sem cargo, Bolsonaro não sai da ribalta. Porque, afinal, ele “caiu para cima”: virou cabo eleitoral da grande mídia, na busca até aqui fracassada de encontrar uma direita “limpinha” e de centro. Nem que seja através da psicologia reversa, como satiriza a capa do “Le Monde Diplomatique Brasil”: diretamente dos laboratórios do PMiG (o Partido Militar Golpista), uma nova criatura está sendo construída – um bandeirante-frankenstein. Tarcísio de Freitas ganha cada vez mais espaço na mídia como protagonista da reforma tributária e seu cabo eleitoral é... Bolsonaro. Em psicologia reversa.
Na sequência de abertura do histórico documentário de 1993 do canal privado inglês Channel Four, Muito Além do Cidadão Kane, dirigido por Simon Hertog, Leonel Brizola denunciava o poder hegemônico da Rede Globo em manipular a opinião pública: “quem não concorda com ela, a Globo tem o poder de mandar para a Sibéria, a Sibéria do gelo, a Sibéria do esquecimento”.
Logo em seguida, a fala de Brizola é confirmada pelo cantor e compositor Chico Buarque, ele próprio também por muito tempo vítima dessa invisibilidade: a capacidade da rede de comunicações em transformar pessoas em “não-pessoas”.
Mais recentemente, também como Lula tornou-se invisível não só para a Globo, mas para toda a grande mídia. Após a sua condução aos cárceres da PF de Curitiba, foi como se o tivessem trancado e jogado a chave fora – o jornalismo corporativo o condenou à invisibilidade, sem uma linha em jornalões ou frame em telejornais.
Mas parece que não acontecerá o mesmo com o ex-presidente Bolsonaro, condenado com inelegibilidade após julgamento no TSE por uso indevido dos meios de comunicação por reunião convocada com embaixadores em 2022.
Sabemos que o candidato manchuriano do PMiG (Partido Militar Golpista) somente ganhou a projeção necessária para sair do submundo do baixo clero da Câmara dos Deputados com a conquista progressiva de espaço midiático em programas humorísticos (“Pânico na TV”) e infotenimentos (o “CQC” da Band).
Chegando ao estado da arte na presidência, aloprando o cenário político semanalmente com metódicas ameaças golpistas, reuniões ministeriais explosivas, cercadinhos em que xingava jornalistas, motociatas e palanques pelo país como se a campanha eleitoral não estivesse terminada.
Fazia tudo isso porque sabia que poderia contar com a visibilidade midiática direta (transmissões ao vivo) ou indireta (a repercussão das protocolares “notas de repúdio” de associações de jornalistas ou classistas).
Bolsonaro, com o seu personagem do “tiozão do churrasco” (para os espectadores mais velhos das mídias de massas) ou o “thug life”, para os jovens nas redes sociais, sempre foi umbilicalmente ligado à grande mídia. Que sempre deu pernas aos seus não-acontecimentos.
Um ativo importante
Bolsonaro é um ativo importante. Principalmente quando percebemos que a condenação do capitão da reserva “rebaixado” se mostrou ser resultante de um julgamento político, uma tabelinha combinada com as Forças Armadas: confirmou a liberdade do ex-vice general Braga Netto. Não obstante o fato de o militar ter organizado a infame reunião com os embaixadores e ser o operador do suposto contexto golpista (minuta e roteiro do golpe), ele acabou inocentado... para poder se candidatar a prefeitura do Rio de Janeiro em 2024.
Como sempre, o timing do TSE foi político: “condena” depois de Bolsonaro ter entregado o serviço: elegeu o Congresso mais reacionário e de extrema-direita da história da República. Condenação somente a posteriori, mesmo depois de ter sido o presidente que mais produziu provas contra si mesmo: tudo ao vivo, pela TV! “As instituições estão funcionando”, era o que sempre se dizia.
A primeira evidência de que Bolsonaro continua um ativo importante para a grande mídia, um verdadeiro cabo eleitoral midiático, é a forma como o Jornal Nacional cobriu o Jair inelegível.
Embora tenha merecido o devido destaque na escalada e no tempo da matéria, tudo foi sóbrio, tendo como foco não o tal “conjunto da obra”, mas o papel da Justiça e como as instituições supostamente estão funcionando plenamente. Apesar das ameaças do suposto golpe - a não notícia alimentada semanalmente pelo bolsonarismo para criar paralisia estratégica na esquerda – clique aqui).
Uma fala direta de Bolsonaro pós condenação, a repercussão nacional e internacional e só. Tudo, como sempre, descontextualizado: deixou para lá o fato de que a condenação foi o ponto alto de uma campanha a qual a própria grande mídia cobriu, participou e deu plena visibilidade. JN escondeu aquilo que a incomoda: suas digitais na criação da “criatura”.
E no day after a continuação da estratégia de dar pernas a não notícias: a repercussão da foto de Bolsonaro seminu (de como a cúpula do PL teria ficado “furiosa” – nota plantada para a “colonista” Malu Gaspar do O Globo), as indefectíveis análises de quem irá assumir o “legado” do bolsonarismo e a inacreditável matéria de O Globo sobre o que o ex-mandatário fazia no dia do julgamento: “enterro, salão de beleza e churrasco”.
Além do fato de Bolsonaro virar um cabo eleitoral de luxo e ativo importante para o consórcio PMiG-Judiciário-Mídia sempre contar com um Plano B (caso não vingue a eterna busca de um “campeão branco”, limpinho e de centro), há algo existencialmente midiático: Bolsonaro é uma usina de crise e caos – cai como uma luva no modus operandi midiático da presunção da catástrofe, viés que legitima a própria função de Alarme dos meios de comunicação tradicionais – e a sua sobrevivência frente às mídias de convergência, sempre acusadas de serem a única fonte das fake news.
As crises, ameaças e freak outs metódicos do ex-presidente ajudam a legitimar o suposto papel da mídia hegemônica de defensora da democracia.
Periodicamente os analistas dos canais fechados de notícia repetem o mantra de que, afinal, Bolsonaro teve 51 milhões de votos e de que Lula ganhou apertado, descontextualizando uma eleição repleta de anomalias (mais precisamente oito anomalias - clique aqui) além da utilização massiva da máquina pública para compra de votos.
Se, como analistas e “colonistas” tanto denunciam de que o ex-presidente é uma figura golpista, corrupta, inimigo da democracia, intolerante, cheia de ódio etc., por que não esquecem dele? Por que não o condenam à “Sibéria do esquecimento”, como fizeram com tanta gente na história política brasileira? E tentaram com Lula?
A nova criatura: o bandeirante-frankenstein
A capa da edição de julho do Le Monde Diplomatique Brasil apresenta uma charge na qual faz uma sátira sobre o laboratório do PMiG, capaz de produzir criaturas, candidatos manchurianos, prontos e acabados para ganharem vida e pernas através da visibilidade dada pelo jornalismo corporativo.
Vemos uma espécie de cientistas maluco com quepe de general, puxando uma alavanca e saudando a sua nova criatura: um bandeirante-frankenstein, ao estilo da horrenda estátua do Borba Gato da cidade de São Paulo. Ao fundo estão outras criaturas produzidas pelo laboratório como uma foto do ex-presidente Michel Temer num look de Conde Drácula e, ainda frescos em tubos, a cabeça de Bolsonaro e o roteiro do golpe.
E ao lado, esfregando as mãos e com sorrisos estão os representantes da Banca financeira e do Agropop. E num detalhe precioso, um patinho da Fiesp flutuando em um balão de vidro de destilação.
Capa profética: nos últimos dias o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) vem ganhando cada vez mais espaço no jornalismo corporativo, com direito a adjetivações como “a foto do dia” ou “se aprovada a reforma tributária, Tarcísio será o personagem da semana”. Tudo isso na esteira da inelegibilidade de Bolsonaro e na ansiedade da grande mídia em procurar o “nome da direita”.
O “imortal” Merval Pereira logo apressou-se a dizer que “Bolsonaro não é de direita... é de EXTREMA-direita!”, numa das extensas mesas de debate na “RivoNews”.
Pois então, Tarcísio não é radical, embora entronado pelo mentor Bolsonaro.
Tudo começou quando Tarcísio usou a conhecida “estratégia Wanderlei Luxemburgo” de criação de factoides. Foi a fagulha jogada no rastilho midiático, assim como a corrente elétrica que deu vida ao bandeirante-frankenstein do Le Monde Diplomatique.
Nos anos 1990 e no auge da carreira como técnico do Palmeiras na vitoriosa era Parmalat, Vanderlei Luxemburgo sabia como ninguém manipular os jornalistas esportivos e as mesas redondas de debates da TV. Após mais um jogo do Palmeiras, Luxemburgo, no meio de uma coletiva para a imprensa, disparou do nada: “quero aproveitar a oportunidade e dizer que jamais fui sondado pelo Corinthians. É tudo mentira!”. Os jornalistas se entreolhavam: quem disse isso? De onde partiu essa informação?
"Olha o Tarcísio... ele está ali, no canto!" |
Pronto! Era tudo o que Luxemburgo queria. O factoide corria como fogo em rastilho de pólvora pelos debates nas TVs. E os desmentidos da diretoria do Corinthians só alimentavam ainda mais os boatos.
A “colonista” da Folha, Monica Bergamo, crava manchete de visível nota plantada (“agrojornalismo”): “Tarcísio proíbe empresários de lançarem seu nome à Presidência da República: governador tenta frear movimento de fazê-lo herdeiro do bolsonarismo”.
O rastilho foi aceso para o nome do governador de São Paulo ganhar espaço nas análises políticas dos canais de notícias.
Esse foi o “start” para a escalada do seu nome na grande mídia, ao transformá-lo no líder dos críticos da reforma tributária. De repente, Tarcísio passou a ganhar influência e peso na votação da reforma na Câmara.
Uma das mais ansiosas foi a “colonista” da Globo News, Andreia Sadi, ao eleger a “imagem do dia”: a entrevista com o ministro Fernando Haddad, tendo o governador ao seu lado... bem ao lado. Mais exatamente, quase saindo do enquadramento da câmera. Para a “colonista” chamar a ansiosamente a atenção do telespectador: “Olha o Tarcísio... ele está ali no canto!...”.
Ou na também ansiosa cobertura da votação da reforma tributária, em que outra “colonista” especializada em agrojornalismo, Ana Flor, disparar ao vivo: “se a reforma for aprovada hoje, Tarcísio será o personagem da semana!”.
Os jornalões praticamente estão tratando o governador de São Paulo como um estadista – a pedra de toque que faltava para saírem as negociações finais de uma reforma tributária emperrada.
Eliane Catanhede no "Em Pauta" da Globo News: "a grande alavanca dele para um projeto nacional!... a direita mais moderna, mais liberal, menos ignorante...".
Essa nova criatura que nesse momento a grande mídia está dando pernas, apenas confirma a necessidade de manter o inelegível e sem cargo Bolsonaro sempre presente nas manchetes.
Até mesmo nas estratégias de psicologia reversa: fortalecer o bandeirante-frankenstein Tarcísio de Freitas através dos estudados ataques indignados de Bolsonaro e seus filhos contra o governador.
Reforçar a legitimidade da nova criatura através dos ataques do “nosso malvado favorito” inelegível.
Mais que depressa a agrojornalista Andreia Sadi veio em defesa de Tarcísio no programa “Estúdio I” contra supostas “fake news”: “é mentira que Tarcísio teve que sair da reunião do PL com seguranças para não ser agredido”.
O grande comunicador Vanderlei Luxemburgo está fazendo escola... enquanto o jornalismo corporativo vê nessa nova criatura a oportunidade de se descolar a incômoda extrema-direita que deu visibilidade nos tempos do jornalismo de guerra.