quarta-feira, agosto 04, 2021

Descendo a toca do coelho quântico no filme "The Mandela Effect"


Muita gente possui em comum falsas memórias: de filmes que jamais foram feitos, de lembranças de nomes, logotipos, caixas de jogos de mesa e personagens de desenhos animados bem diferentes do que são na realidade. Mas qual realidade? Essa é a questão principal do chamado “Efeito Mandela”, fenômeno viral no qual muitas pessoas começam a descobrir que têm as mesmas falsas memórias dos mesmos eventos – produzindo conspirações quânticas como a experiência do gato de Schrödinger, a hipótese dos Muitos Mundos e a teoria do Universo como uma simulação computacional. Tudo isso inspirou o filme independente “The Mandela Effect” (2019): inconformado com a morte da sua pequena filha em um acidente, um designer de games de computador desce pelo buraco da toca do coelho quântico do Efeito Mandela acreditando que em alguns desses mundos das suas falsas memórias ela esteja ainda viva. Mas o filme apresente indícios de que a explicação do Efeito Mandela pode estar no fenômeno da hiper-realidade. 

Quando as torres gêmeas do WTC em Nova York desmoronaram nos ataques de 11 de setembro de 2001, tanto telespectadores quanto testemunhas no local dos acontecimentos ficaram tão surpreendidas com a similaridade dos filmes catástrofes de Hollywood que muitos depoimentos nas ruas e diante da TV falavam sobre uma estranha sensação de irrealidade. “Parece um filme!”.

Evento inaugural do século XXI, parecia replicar as tantas vezes que a cidade de Nova York fora destruída no cinema por monstros, terroristas, alienígenas e demais catástrofes apocalípticas. Mais do que isso, o evento aconteceu num cenário cotidiano já saturado de hiper-realidade com a jovem World Wide Web às vésperas do surgimento das redes sociais - o cineasta Robert Altman chegou a dizer que “os filmes criam padrões e a realidade copia os filmes”.

Talvez seja essa sensação de irrealidade (ou de hiper-realidade) que esteja por trás do chamado “Efeito Mandela”, conceito criado por Fiona Broome, pesquisadora de fenômenos sobrenaturais. O efeito leva esse nome porque Fiona acreditava que o líder sul-africano contra o regime do Apartheid, Nelson Mandela, havia morrido na prisão na década de 1980. Só que era 2010, e ele ainda estava vivo.

O que seria um mero esquecimento, transformou-se para ela em algo assustador: Fiona conheceu mais pessoas que também partilhavam dessa suposta falsa memória. Aprofundando sua pesquisa, descobriu que muitas pessoas tinham outras lembranças alternativas como, por exemplo, de episódios da série Jornada nas Estrelas que jamais existiram. Ou de filmes que nunca foram produzidos, como Shazaam, nos anos 1990 – seria uma confusão com outro filme sobre gênio da lâmpada da década chamado Kazaam?

O pior que as pessoas eram capazes de descrever cenas do filme que jamais existiu, assim como o nome do ator protagonista, David Adkins, conhecido como “Sinbad”. Que, em entrevista, afirmou que jamais atuou em qualquer filme sobre gênios.

Ou de pequenos detalhes como lembrar do personagem com monóculo que jamais existiu, na caixa do jogo “Monopoly”. Ou de muitos lembrarem que a mão da estátua O Pensador, de Auguste Rodin, está na testa. Quando na verdade, o personagem repousa a mão no queixo.



Apenas um fenômeno psicológico de falsas memórias produto de um horizonte cultural tão midiatizado... ou há algo mais? 

O filme independente The Mandela Effect (2019) faz o protagonista descer pelo buraco do coelho do Efeito Mandela para descobrir que há algo mais assustador. E na companhia de celebridades como o astrofísico-celebridade Neil DeGrasse Tyson (“há 50% probabilidade de vivermos numa simulação”), as teorias sobre o Tempo e universos simulados de Stephen Hawking e Nick Bostrom, e até do empreendedor-celebridade Elon Musk – também apostando que vivemos numa gigantesca simulação... e temos que fugir de dentro dela.

O filme acompanha a tragédia de pais que perderam sua pequena filha em um acidente. O pai não consegue superar a perda e se apega compulsivamente às memórias da filha, seus objetos e brinquedos. Mas a memória de um brinquedo em particular, o boneco de pelúcia do macaquinho “George, o Curioso” chama a atenção: da forma como lembra o boneco tinha um rabo. Porém, o personagem nunca teve um, nem a animação na TV e muito menos como boneco de pelúcia. Pronto! Nosso herói vai descobrir em sites na Internet, como o Reddit, outras pessoas partilhando memórias alternativas à realidade, até descobrir que isso se chama “Efeito Mandela”. Uma teoria acompanhada pela discussão entre físicos e astrofísicos sobre teorias sobre universos paralelos, o universo como simulação computacional e as visões quânticas sobre mundos paralelos em colisão.



Detalhe: ele é um programador de jogos de computador. O leitor já deve estar vislumbrando até onde o filme O Efeito Mandela vai chegar: alguma coisa entre Tron e Matrix.

O Filme

Efeito Mandela é sobre um casal em luto pela perda da filha. Claire (Aleksa Palladino) está lutando para voltar à rotina. Mas, e Brendan (Charlie Hofheimer)? Ele está conversando com padre da paróquia local (Tim Ransom), fazendo a grande pergunta: “Se Deus existe, por que ele levou Sam (Madeleine McGraw)?”

Claire tenta levar a vida em frente, mas Brendan está obsessivamente apegado às memórias da filha. 

Enquanto o casal vasculha relutantemente os pertences de Sam em seu quarto, Brendan encontra a cópia de Sam do clássico livro de histórias infantil "Os Ursos de Berenstein". No entanto, para espanto de Brendan, o título é na verdade " Os Ursos de Berenstain ". Mesmo que Brendan e seu cunhado, Matt (Robin Lord Taylor), acreditam que sua memória da grafia do nome é precisa, eles não encontram evidências de que o nome tenha sido alterado. 

Depois de ficar obcecado com essas discrepâncias, Brendan e Claire discordam sobre onde uma de suas fotos foi tirada. Brendan acaba se convencendo de que eles não estão se lembrando erroneamente, mas de que, em vez disso, as discrepâncias são causadas pela experiência de universos paralelos.

Isso leva Brendan a explorar muitos outros exemplos do "Efeito Mandela", ou memórias "falsas" comumente mantidas. Brendan e Claire descobrem outras discrepâncias entre suas memórias e a "realidade" como, por exemplo, lembrar que “George, o Curioso” tinha cauda, ​​quando na verdade nunca teve.

Brendan então passa a ter a esperança de que Sam nunca morreu realmente e continua a viver em um desses universos. Apesar das objeções de Claire e Matt, Brendan rastreia um cientista, Dr. Roland Fuchs (Clarke Peters), que foi afastado de seus colegas por sustentar hipóteses semelhantes.



Os co-escritores David Guy Levy e Steffen Schlachtenhaufen pontuam a narrativa com vídeos de celebridades da ciência como Neil DeGrasse Tyson e Abhishek Kothari debatendo a realidade, teoria das cordas e afins, além da guru do “Efeito Mandela”, Fiona Broome, especulando sobre o que pode estar acontecendo.

A pesquisa do Dr. Fuchs indica que o universo é uma simulação de computador e que o Efeito Mandela é o resultado de seu programa alterar imperfeitamente a realidade sempre que seus habitantes simulados suspeitem de sua verdadeira natureza. 

Brendan e o Dr. Fuchs teorizam que a simulação poderia ser interrompida com um programa através de um computador quântico. E esse computador existe, no campus da Universidade do Dr. Fuchs. Secretamente, Brendan cria uma “programação procedural” para sobrecarregar de dados a simulação cósmica. A ideia é fazer a simulação entrar em colapso para, finalmente, encontrar a verdadeira realidade. E a sua filha Sam.

Pelo buraco do coelho quântico

Há milênios filósofos como Platão especulam que a vida como a conhecemos talvez não seja real. Com o advento da era da computação, essa ideia ganhou um novo impulso, principalmente quando a cultura pop passou a debruçar-se sobre o tema chegando ao imaginário cinematográfico em filmes como A Origem, Dark City, 13o Andar e a trilogia Matrix das Wachowski.



Em postagens anteriores o Cinegnose desenvolveu esse argumento do Universo como simulação computacional finita a partir de pesquisas da Universidade de Bonn, Alemanha, onde uma equipe de cientistas tenta substituir a ideia de espaço-tempo contínuo pela busca de uma “assinatura cósmica”: minúsculos espaços cúbicos parecidos com grades – pixels? – sobre isso clique aqui.

Ao mesmo tempo, o pesquisador da NASA Richard Terrile, baseado na chamada Lei de Moore (que sustenta que os computadores duplicam sua capacidade a cada dois anos), leva a sério a possibilidade de que o Universo possa ser alguma espécie de game em um computador cósmico. E a principal evidência é que nós também procuramos repetir isso por meio de meta-simulações como games e mundos virtuais como, por ex., o Second Life.

Quem começou toda essa especulação filosófica nesse início de século foi o filósofo e matemático da Universidade de Oxford, Nick Bostrom, que criou o conceito de “substrato independente”: consciência e inteligência poderiam se manifestar por meio de diversos suportes, entre eles um supercomputador senciente que conteria toda a simulação cósmica. Em outras palavras, seríamos partes de uma versão de um gigantesco role-playing cósmico como um World of Warcraft – sobre isso clique aqui

Toda essa especulação que subjaz ao Efeito Mandela é uma consequência da chamada Interpretação de Copenhagen a partir da famosa experiência do gato de Schrödinger: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano.

De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas. Segundo o raciocínio, as duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade.




Esses dois gatos (morto e vivo) passariam a ser considerados dois mundos independentes e sobrepostos sobre o mesmo tempo/espaço. Não são mais considerados uma “decoerência quântica” fruto da intervenção do observador que romperia com a função de onda. A Interpretação de Copenhagen considerava uma existência ontológica para cada um desses mundos, ou “subsistemas”, como afirmava. Haveria uma sobreposição quântica de vários, possivelmente infinitos, estados de universos paralelos não comunicantes.

“Easter egg” – Alerta de Spoilers à frente

Porém, The Mandela Effect contém uma linha de diálogo e um “easter egg” que sugerem uma origem mais prosaica para esse efeito.

No velório de Sam, Claire lamenta para Brendan: “Não parece real... Eu não me sinto real”. Ao que Brendan, já imerso nas teorias em torno do Efeito Mandela, responde: “sei exatamente o que você quer dizer...”. Diálogo que conecta ao que o cineasta Albert Altman afirma das relações do cinema com a realidade: a realidade parece cada vez mais um filme. O pensador francês Jean Baudrillard chamava isso de “hiper-realidade”.

Falsas memórias surgiriam facilmente nesse cenário de hiper-realidade no qual imagens midiáticas e memórias individuais falsas que são compartilhadas passam a dominar a percepção. Lembrando bastante o livro “Recursão” do autor de ficção científica Blake Crouch: do nada indivíduos passam a se lembrar de detalhes de vidas que nunca tiveram, o que os leva a tomar decisões catastróficas.

E um surpreendente “easter egg” no filme: a pequena Sam toca ao piano “As Time Goes By”, música imortalizada pelo personagem pianista Sam no clássico Casablanca (1942). Esse filme também foi imortalizado por uma frase que nunca foi dita por Ilsa (Ingrid Bergman): “Play it again, Sam”. Frase que se tornou uma falsa memória tão famosa que virou título original de um filme do diretor Woody Allen Sonhos de um Sedutor (1972). Na verdade, Ilsa disse: “Play it Sam. Play ‘As Time Goes By’”.

Falsas memórias compartilhadas sempre existiram. Mas passaram a ter a relevância conspiratória atual numa cultura na qual os simulacros invadem a realidade transformando-se em hiper-realidade. E de repente as discussões quânticas da Física tornam-se teorias perfeitas para justificar um hoax da Internet.

Mas, claro, há um componente de verdade em tudo isso: a condição humana gnóstica de alienação e estranhamento em relação à realidade.  


 

Ficha Técnica 

Título: The Mandela Effect

Criador: David Guy Levy

Roteiro: David Guy Levy e Steffen Schlachtenhaufen

Elenco: Charlie Hofheimer, Aleksa Palladino, Robin Lord Taylor, Clarke Peters, Madaleine McGraw

Produção: Periscope Entertainment

Distribuição:  Gravitas Ventures

Ano: 2019

País: EUA

 

 

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