Um mito cresce com o aumento do desemprego e das profundas transformações das relações trabalhistas no capitalismo: o mito do empreendedor. Como em todo mito, promete uma transformação mágica: a da força de trabalho se converter em capital. Claro, desde que você tenha força de vontade e dê o sangue para o seu negócio. Às vezes, literalmente! O filme francês “A Nuvem” (La Nuée, 2020) narra a perfeita metáfora da ideologia do empreendedorismo quando acompanhamos o drama de uma fazendeira que tenta salvar o seu negócio: uma crocante e nutritiva farinha de gafanhotos. Obcecada por salvar o empreendimento, coloca em risco os filhos e a si mesma ao descobrir acidentalmente que sangue humano turbina os insetos e as vendas. É o paradoxo do empreendedor: a força de trabalho só pode se transformar em capital na medida em que consome a si mesma.
Um mito vem crescendo nos últimos anos, desde que o crash de 2008 apontou para implacáveis mutações do capitalismo: o mito do empreendedor. Um mito que cresce com a escalada do desemprego em uma nova fase do capitalismo na qual grande contingente populacional não servirá nem mesmo para ser explorado.
Financeirização, desindustrialização, Quarta Revolução Industrial, capitalismo de plataforma, Novo Reset Global. O fato é que o capitalismo de escala (aquele de produção em massa que necessitava de grande margem de força de trabalho e consumidores) desapareceu. Hoje, o lucro vem do alto valor agregado em produtos para poucos e especulação, seja de papéis ou digital (bitcoin).
Nesse contexto, o mito do empreendedor é o novo conto de fadas (narrado pelos case de sucesso em livros e telejornais) para manter os excluídos com o moral alto, livrando a sociedade de possíveis convulsões sociais. As oportunidades estão abertas para qualquer um: basta você ter uma ideia original e muita força de vontade e então... o céu é o limite.
Por que um conto de fadas? Porque, como todo mito, baseia-se em causas sobrenaturais que criam um efeito fantástico: no caso, a transmutação mágica da força de trabalho em capital. Categorias que são retiradas do campo da economia política para irem diretamente para os livros de autoajuda: de repente, com a ajuda da força de vontade, a força de trabalho vai emanar riqueza que se acumulará criando o efeito análogo da reversão do lucro no capital. Desigualdades socioeconômicas e estrutura social somem no ar para dar lugar à força de vontade de um indivíduo abstrato.
O diretor britânico Ken Loach, no filme Você Não Estava Aqui (2019), aborda como essa mitologia sustenta as ilusões de sucesso para as pessoas que se aventuram no chamado capitalismo de plataforma: o processo de precarização do trabalho e da uberização no qual as relações de exploração são ocultadas pela impessoalidade dos aplicativos e transações econômicas misteriosas do espaço digital.
O diretor francês Just Philippot, no filme A Nuvem (La Nuée, 2020), também faz uma incursão crítica nessa mitologia que sustenta o atual capitalismo. Mas, dessa vez, o objeto é o mito do empreendedor – aquele que pode ser bem-sucedido por si mesmo. Quando operosidade e poupança podem dar um salto e virar capital.
Na sua estreia em longas-metragens, A Nuvem foi premiado com o selo da Semana de Crítica de Cannes 2020 e homenageado no festival de cinema fantástico de Sitges (Prêmio Especial do Júri e Melhor Atriz). E não é por menos: Philipot consegue combinar o cinema de arte (com uma câmera ao mesmo tempo suave e rápida) com o filme de gênero fantasia e o horror – um gênero subexplorado no cinema francês.
O filme acompanha uma fazendeira viúva e seus filhos na sua luta por conseguir um preço justo pelo seu exótico produto: uma farinha de gafanhotos, rica fonte crocante de proteína. Seu sonho: ajudar o planeta com uma fonte proteica sustentável (“100 gramas de gafanhoto têm mais proteínas do que 150 gramas de carne bovina”) e sustentar a unidade familiar de três pessoas.
O filme faz um mergulho sociológico e psicológico no mundo rural no interior da França, com suas vinícolas e criadores de patos que produzem patê de foie gras. Uma mãe que trabalha incansavelmente, sempre à beira da falência, em sua pequena fazenda, sacrificando a sua relação com os filhos pela ausência – enquanto os filhos sofrem bullying na escola em função do exótico produto em que estão envolvidos. Afinal, são os filhos da “mamãe gafanhoto”.
A guinada para o terror ao estilo corporal dos filmes do diretor Cronenberg é quando ela descobre que um empreendedor, literalmente, tem que dar o sangue para que seu negócio prevaleça.
O Filme
“Tudo mundo está dizendo: sua mãe perdeu o juízo!”, dizem à adolescente Laura (Maria Narbone) e seu pequeno irmão Gaston (Raphaël Romand) sobre a sua mãe Virgine (Suliane Brahim). Toda a comunidade ridiculariza o seu projeto: oferecer ao mundo a mais rica fonte de proteínas já vista, a farinha de gafanhotos. Viúva, seu marido criava cabras num empreendimento não tão bem-sucedido. Mas, com os gafanhotos, as coisas estão indo financeiramente bem pior.
O retorno é muito baixo, com o agravante de operar num ambiente profissional (fazendeiro) extremamente machista – com a exceção do seu vizinho vinicultor Karim (Sofiane Khammes), que a ajuda com empréstimos e tem algum interesse amoroso por ela – embora seu maior desejo físico seja uma boa noite de sono depois da estafa diária de trabalho.
O primeiro plano do filme, mostrando a cúpula geodésica que ocupa o pequeno laboratório de gafanhotos de Virgine, é simbólico: a estrutura arquitetônica (inventada por Buckminster Füller) é o símbolo da “geometria energético-sinergética” que envolve conceitos da filosofia holística e ecologicamente correta da sustentabilidade etc.
A princípio, é o que parece animar o sonho de Virgine. Mas, como os fazendeiros de qualquer lugar do capitalismo, ela não consegue o preço justo, o que significa que não terá lucro e muito menos pagar pela dieta habitual dos insetos.
A filha adolescente Laura vive em desacordo com a mãe. Ela é durona e sofre constante bullying, ridicularizada na escola pelo negócio da mãe em um meio rural de vinícolas e aves – chamam ela de “mamãe gafanhoto”. Laura quer cair fora dali e ter uma vida normal para uma adolescente. O irmão, Gaston, é um menino doce que ama sua cabra de estimação. Seu sonho é fazer uma excursão com o time de futebol infantil local, mas os problemas financeiros da família não ajudam.
Virgine que ser a melhor mãe do mundo e imagina uma família solidária e unida em torno do seu negócio. Mas no seu esforço de ser a melhor mãe possível, acaba se viciando em seu trabalho e coloca a si mesma e a família em risco.
Tudo porque acidentalmente descobre que os gafanhotos prosperam com sangue humano – tornam-se maiores, fortes e mutantes. Nada melhor para o empreendimento: finalmente terá uma quantidade suficiente de farinha crocante para conseguir os melhores preços. Porém, o que deveria ser um negócio não invasivo e ecologicamente correto, começa a derivar para o sinistro e aterrorizante.
A princípio, começa a fornecer o seu próprio sangue – é irresistível aqui a metáfora que o diretor quer criar: o empreendedor muitas vezes tem que dar o “sangue” para o negócio. No caso, literalmente.
Capital vs. força de trabalho
Essa metáfora de A Nuvem vai muito mais além: suscita uma reflexão sobre esse núcleo mágico da mitologia do empreendedor – a transmutação da força de trabalho em capital.
Capital e força de trabalho são categorias totalmente distintas na economia política: capital é riqueza, gera lucro. E força de trabalho é uma mercadoria cuja moeda é o salário, meio evanescente de troca. Moeda que unicamente serve à reprodução física e mental da própria força de trabalho. Não vai além disso, a não ser que o trabalhador “poupe”, isto é, renuncie à gratificação das suas próprias necessidades: gaste menos com comida, lazer etc.
Capital é riqueza porque é poder: através do lucro ele pode se acumular, se superar, indo além do seu valor inicial. Quanto à força de trabalho, paradoxalmente só pode se superar negando-se a si mesma, consumindo a sua própria reprodução.
Esse é o ponto chave da discórdia entre os paradigmas liberais e materialistas na economia política. Para o liberalismo, esse algo mais que a força de trabalho teria para virar o “capital humano” seria a ideia inovadora (logicamente, valorizada pelo mercado) e a força de vontade (operosidade). Para o ponto de vista materialista, unicamente o capital tem poder, porque poder siginifica apropriação, exploração, a dimensão política da dominação sobre aqueles que darão ao Capital sua própria força de trabalho como mais um insumo na produção.
As origens do moderno capital estaria na “acumulação primitiva” (colonização, pirataria, saques, escravagismo etc.), origem de todo o capital industrial e financeiro da burguesia e classes dominantes. Hoje, a mitologia do empreendedorismo vende essa esperança politicamente correta de que ideias e vontade podem também se tornar Capital: ideologia que oculta todas as origens selvagens do processo de acumulação que originou o capitalismo.
A metáfora de A Nuvem, sobre um empreendimento alimentado literalmente pelo próprio sangue do empreendedor, é totalmente materialista histórica: a força de trabalho só consegue prosperar num processo análogo ao processo biológico catabólico - sob condições extremas de fome ou de alteração do metabolismo basal, o corpo começa a entrar em processo catabólico, processo de degradação onde o corpo começa a consumir seu próprio tecido muscular.
Virgine está se autoconsumido, ou melhor, os gafanhotos a consomem. Enquanto a produção aumenta, ampliando o número de estufas nas quais os gafanhotos mutantes são cultivados. Como Virgine foi enfermaria, descobre canais ilegaisde fornecimento de sangue humano para saciar a fome dos gafanhotos cada vez mais agitados e selvagens. O leitor já deverá estar imaginando as consequências aterrorizantes se os insetos escaparem em uma nuvem assassina.
A Nuvem é uma grande metáfora crítica da nova ideologia que abre as transformações radicais que o capitalismo sofre nesse século: o mito do empreendedor e do seu “capital humano”.
Ficha Técnica |
Título: A Nuvem |
Diretor: Just Philippot |
Roteiro: Jérôme Genevray, Frank Victor |
Elenco: Suliane Brahim, Sofian Khames, Marie Norbone |
Produção: Capricci Films, The Jokers Films, Arte France Cinéma |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2020 |
País: França |