Em um dos episódios da série Mad Men (sobre os bastidores de uma grande agência de publicidade da Madison Avenue, na década de 1960), o protagonista Don Draper faz uma pergunta amargamente retórica: “o que é a felicidade?”. E ele próprio responde: “É um momento antes de você precisar de mais felicidade”.
Nessa pequena linha de diálogo está um flagrante do gênio da indústria publicitária. Muitos mais do que os industriários e financistas, os publicitários são aqueles que melhor compreenderam a essência do jogo do mercado no capitalismo: a valoração (e o lucro) com uma mercadoria está na relação direta da sua escassez. Se a lei da oferta e procura é a essência do mercado, então haveria uma contradição que tenderia a fabricação da escassez para geração contínua de valor – quanto mais um bem for escasso, mais valor terá no mercado: excesso de oferta desvaloriza um produto.
Como Don Draper sugere acima, toda indústria publicitária parte do pressuposto de que a felicidade é um bem (ou um sentimento) escasso: deve ser escavado, procurado de forma insistente. Não é fácil encontrá-la, a não ser com ajuda da publicidade, com ofertas exclusivas e com prazo de validade.
Dessa maneira, a felicidade vira uma sensação abstrata, nunca satisfeita. E o indivíduo sempre mobilizado pela publicidade e entretenimento a procurá-la, sempre ansioso e insatisfeito. O que mantém a roda girando. E nós somos o ramster que a faz girar sem parar.
O documentário Generation Wealth (2018), da fotógrafa Lauren Greenfield, discute essa busca da felicidade através do excesso (identificada com uma certa ideia de “riqueza”) como uma preocupante patologia social que sempre esteve presente no último estágio da queda de grandes impérios: Romano, Otomano, Mongol, Ibérico, Califados etc. Ascensão e queda de nações fizeram parte de ciclo na História. A diferença do momento atual é que se o império americano cair, levará o mundo inteiro junto.
Generation Wealth acompanha a organização do inventário visual de fotos que documentam flagrantes de ostentação de luxo e consumismo que levaram a edição de livro homônimo da fotógrafa. Greenfield está preocupada com a mudança drástica dos antigos valores americanos como o trabalho duro, frugalidade e discrição, convertidos em narcisismo e a ridícula ostentação de riqueza – ou uma certa ideia de “riqueza”, transformada na ostentação de marcas e emulação dos ícones cinematográficos e das celebridades.
Porém, ela não vai procurar essa deterioração dos valores morais e éticos apenas nos EUA. Vai também nas franjas do império, como Rússia, China e Ásia Oriental – novos ricos, por exemplo, um multimilionário chinês que construiu uma réplica da Casa Branca cuja vista do Salão Oval dá para um Monte Rushmore fake com os rostos esculpidos de George Washington, Abraham Lincoln, Roosevelt e Thomas Jefferson.
O documentário procura aquilo que estaria por trás dessa ostentação kitsch de luxo: uma drástica mudança na noção de felicidade. Se no passado estava ancorada na solidez das tradições, agora é oferecida como uma meta abstrata ou rarefeita e, por isso mesma, nunca satisfeita.
Mas o documentário não fica apenas nos ricaços e celebridades instantâneas: está também no endividamento extremo das baixas classe média, capazes de empenhar suas hipotecas e filhos em cirurgias plásticas e indústria da beleza nessa busca obsessiva por felicidade
No final, a própria fotógrafa coloca-se em xeque: faz a mea culpa de ter sacrificado tanto a sua vida familiar com as milhares de fotos e viagens pelo mundo que compuseram o livro e o documentário: estaria ela mesma também reproduzindo essa obsessão?
O Filme
Em 2012, Lauren Greenfield já havia produzido o documentário The Queen of Versailles, que foi em certo sentido um ensaio para a produção Generation Wealth. Acompanhou a história de David Siegles e sua esposa Jackie (vencedora de um concurso de beleza e que se tornou personagem de um desenho animado humano) na busca quixotesca de construir a maior residência dos EUA: uma réplica perfeita do Palácio de Versalhes. E como tudo foi abaixo com a explosão da bolha do mercado imobiliário de 2008.
Greenfield estava preocupada em como o clássico “sonho americano” havia se transformado radicalmente.
Nesse novo documentário acompanhamos Greenfield discutindo o início da sua carreira e como surgiu a sua ideia de pesquisa fotográfica. Depois de ler o livro de Bret Easton Ellis, “Abaixo de Zero” (um retrato visceral da geração yuppie consumista dos anos 1980), viu que o seu grande tema estava diante de seus olhos: como filha de classe média alta e frequentadora de uma escola exclusiva de ensino médio em Los Angeles, estava no epicentro dessa revolução kitsch nas noções de felicidade, riqueza e sucesso.
Figuras como Kim Kardashian e o pré-presidencial Donald Trump eram a espuma midiática de um movimento mais profundo que estaria ocorrendo nos valores tradicionais americanos – numa sociedade marcada pela imobilidade social, o mito do self made man e da meritocracia estaria se deteriorando no consumismo que ocultaria essa impossibilidade de verdadeira ascensão social. A ostentação de marcas e gadgets caros (mesmo ao custo do endividamento e falência pessoal) criariam a ilusão de mobilidade e empoderamento.
Para montar essa quebra-cabeças, Greenfield entrevistou inúmeros personagens extremos – como Limo Bob e seu fascínio por bizarras limousines (“quanto maiores, maior a impressão de fama e poder”) e um grupo de adolescentes ostentadores (cujas fotos foram documentadas no início do século XXI em “Girl Culture e Fast Foward”), agora ainda mais estúpidos e fumando charutos na praia.
Outro fumante de charuto é o infame Florian Homm, antigo multimilionário administrador de fundos de hedge, descreve sua ascensão e queda com escândalos de fraude financeira que o levaram à prisão na Itália e que agora vive recluso na Alemanha.
Porém, é dele um dos insights mais interessantes do documentário: Homm localiza o início de toda ambição e ganância desenfreada no meio financeiro (e que contaminou a sociedade) no início dos anos 1970: o momento em que o governo Nixon rompe o padrão-ouro como lastro para o dólar, permitindo a impressão da moeda ad infinitum pela Casa da Moeda dos EUA, provocando uma incrível liquidez da economia mundial. Para a especulação financeira, o céu virou o limite e o significante disso foi a criação de uma ideia de felicidade materializada na ostentação e riqueza sob a estética kitsch do exagero.
Nos 105 minutos do filme, Greenfield revela um número estonteante de narrativas, nem todas diretamente relacionadas à riqueza monetária como tal. Mas está tudo conectado, quer estejamos ouvindo o depoimento de uma garota do Meio-Oeste que viajou para Hollywood e se tornou uma estrela pornô (a história de como ela contraiu salmonela não é algo que você vai esquecer).
Ou ainda a motorista de ônibus que, insatisfeita com a sua vida, veio para o Brasil em busca de uma cirurgia plástica barata e radical (essa combinação tem tudo para dar errado) e que consertasse a si mesma e seu relacionamento com a filha. Como o leitor verá, o desfecho é trágico.
Workaholic
Entre os diversos depoimentos, Greenfield insere trechos da sua própria vida em entrevistas com sua mãe, marido e filhos. Questiona-se como suas próprias tendências workaholic - de novo, a “busca por mais” como modelo de felicidade - prejudicaram sua vida familiar.
Sua câmera nos leva literalmente ao redor do mundo, lembrando-nos que a Rússia e a China, dois países que no século XX tiveram revoluções com o objetivo de abolir as diferenças de classe, são agora os dois maiores mercados de produtos de luxo.
Até o pequeno país da Islândia também se encaixa no quebra-cabeças: como o boom da abertura de bancos e corretoras de investimento na gelada ilha mudou os padrões de consumo e modelos de felicidade. Para, mais uma vez, tudo acabar com o crash de 2008, levando os bem remunerados agentes do mundo das finanças a retornarem aos velhos valores, tornando-se marinheiros da indústria pesqueira local.
O documentário pontua as frenéticas exposições de luxo e arrependimentos com opiniões de pesquisadores e críticos sociais, como o jornalista Chris Hedges, lembrando o antigo Egito e suas pirâmides, observando que “as sociedades acumulam suas maiores riquezas no momento que se aproximam da morte”.
Generation Wealth termina de uma forma rápida e simplista: Greenfield consegue levantar um rico material visual, entrevistas e preciosos insights críticos. Porém, a fotógrafa é compelida a buscar uma saída simplista, superficial: a sua decisão culminante e pessoal de passar mais tempo com a própria família – a conclusão relâmpago e clichê de que a felicidade é algo que temos que definir por nós mesmos.
Greenfield não nega sua posição de classe social e a ideologia liberal: no final, tudo seria uma questão de “bom senso” individual. Ao invés de buscar mais, deveríamos nos conter com o que temos: a própria família. Depois de mais de uma hora e meia de um rico material imagético e informações, Greenfield deixa entre parêntesis qualquer forma de transformação política, econômica e tecnológica para deixar todo o peso das possíveis transformações no bom senso pessoal.
Cuidado! Os expertos publicitários da Madison Avenue poderão transformar o “bom senso” em mais um produto à venda.
Ficha Técnica |
Título: Generation Wealth (documentário) |
Diretor: Lauren Greenfield |
Roteiro: Lauren Greenfield |
Elenco: Lauren Greenfield, Bret Easton Ellis, Paris Cronin, Florian Homm entre outros |
Produção: Artemis Rising Foundation, Candescent Films, Cinereach |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2018 |
País: EUA |