sábado, junho 12, 2021

Uma fábula sombria e gnóstica da pandemia na série 'Sweet Tooth'


A crítica especializada parece confusa diante da série Netflix “Sweet Tooth” (2021- ), adaptada das HQs de Jeff Lemire: uma fábula infanto-juvenil sombria? Uma aventura infantil ao estilo Steven Spielberg? Mais um produto Netflix cujos algoritmos tentam fazer um mix entre fábula e a crueldade num mundo distópico sob a pandemia que dizima a humanidade? Gus é um jovem híbrido de cervo que vive numa idílica floresta, protegido pelo seu pai de um mundo que lá fora está sendo destruído. Com sua bondade e otimismo radiantes cruzará uma América devastada e violenta em busca da sua mãe. A suposta ausência de tom narrativo (é uma fábula ou distopia?) na verdade é proposital: é onde pulsa a mitologia gnóstica de anjos decaídos e da luz espiritual (traduzida no otimismo, fé e positividade de Gus) em confronto com um mundo niilista cujo apocalipse distópico começa e termina numa ciência demiúrgica. 

A crítica especializada vem definindo a série Sweet Tooth (2021-) como um “estranho caso de adaptação inadequada” e que tenta se equilibrar, no fio da navalha, entre dois tipos de público: infanto-juvenil e adulto; entre as aventuras ao estilo da positividade spielbergiana e um mundo distópico cruel e sangrento que segue todos os temas de A Estrada e Mad Max.

Baseado na história em quadrinhos Jeff Lamire, publicada pela DC Comics entre 2009 e 2013, para começar o nome “Sweet Tooth” já parece ser um estranho título para um drama distópico. Porém, o tom geral da crítica é que a decisão de transformar uma parábola espiritual pós-apocalíptica em uma aventura infantil no estilo Spielberg criou uma série de efeitos narrativos e tonais que todos os oito episódios da primeira temporada não conseguiram superar. Não haveria um tom narrativo dominante, sempre num movimento que tenta equilibrar entre a positividade infantil e a distopia adulta.

Em síntese: um “otimismo pop” diante de tristezas e tragédias.

Mas, para esse humilde blogueiro é exatamente nessa “positividade spielbergiana” que se confronta com uma humanidade que revela o seu pior no “Grande Colapso”, que está a força da adaptação da série. A adaptação dos quadrinhos feita por Jim Mickle explicitamente trabalha com muitos tropos gnósticos, comprovando que o gnosticismo nos séculos XX e XXI foi muito além da religião ou filosofia: saiu do subterrâneo da História para se transformar numa “atitude” uma ambiência psicológica ou uma nova sensibilidade diante da realidade.



A primeira pista está na frase repetida pelo narrador invisível James Brolin: “Toda história tem um início... a nossa, começa aqui”, criando o contraste entre o tradicional “era uma vez” e a narrativa distópica que começa, ao contrário, pelo fim. É essa mudança de sensibilidade na adaptação da série Sweet Tooth que acaba destacando aquilo que está no cerne das HQs de Jeff Lamire: a fábula das crianças híbridas de humanos e animais que despertam num mundo que acabou vivendo nas consequências da gênese do desastre. Fé, otimismo e esperança de novos seres que despertam cheios de energia e alegria se confrontam com o niilismo e desespero dos adultos.

A série Sweet Tooth consegue captar esse microcosmo da própria Cosmogonia gnóstica: toda a história da humanidade deve ser entendida de forma inversa da sensibilidade evolutiva. Não houve gênesis mas apocalipse. E passamos milhares de anos agarrados a destroços de uma tragédia que foi a Criação. Somos anjos caídos que ainda carrega fé, otimismo e esperança numa realidade que conspira contra nós ao nos oferecer unicamente o niilismo e o desespero da luta pela sobrevivência.

Esse é o drama do menino Gus, o híbrido de humano e cervo, protagonista central de Sweet Tooth.

A Série

 O piloto da série foi filmado em 2019. Desde então, a série não voltou à produção até o momento em que o vírus pulou da ficção e invadiu a realidade: a pandemia global Covid-19. É visível ao longo dos episódios todos os tropos da pandemia real repercutidos na narrativa: os primeiros sintomas encarados como uma simples “gripezinha”, o caos econômico e social, máscaras, distanciamento social, as suspeitas origens do vírus (colocadas na série em um típico “limited hangout”, como veremos adiante) etc.




Os fatos começam a ser narrados dez anos depois do “Grande Colapso” na qual um vírus devastou a maior parte da população humana enquanto - coincidentemente ou não - todos os bebês começaram a nascer como híbridos humano-animal. 

Gus, (Christian Convery) tem orelhas e chifres de cervo (e alguns sentidos aprimorados como visão e olfato), mas, fora isso, é um típico garoto indisciplinado e amigável que passou a primeira década de sua vida protegido dos destroços de sociedade por seu pai (Will Forte), a quem ele se refere como "Paba". Ele protegeu Gus do pesadelo em que o mundo se tornou, e incutiu nele um espírito curioso e compassivo que a partir de livros artesanais que ele próprio confeccionou para Gus: de memória, Paba reescreve clássicos da literatura infanto-juvenil, como “As Aventuras de Tom Sawer”. Livro que inspirará Gus na sua jornada.

Vive com o seu pai numa idílica fazenda, cercada por florestas e uma cerca que protege do mundo lá fora. Mas, claro, a curiosidade pelo mundo incutida por Tom Sawer vai fazê-lo querer conhecer o mundo, após a morte do pai. E a esperança de reencontrar com a sua suposta mãe, a partir de uma foto tirada em algum lugar no Colorado. 

Quase todo mundo que conhece Gus - especialmente o ex-jogador de futebol americano Tommy Jepperd (Nonso Anozie) não consegue deixar de sentir-se protetor da criança e inspirado a ser melhor do que eles pensavam que ainda fosse possível nesta nova realidade sombria.

A bondade radiante de Gus, além de outros toques como a narração com um tom afetuoso em off de James Brolin, Sweet Tooth rapidamente começa a parecer menos um pesadelo distópico do que um conto de fadas ligeiramente sombrio, mas principalmente otimista - e muito divertido, aliás.




Quando a narrativa se afasta de Gus, as subtramas não por coincidência tendem a funcionar melhor quanto mais perto se fixam de sua visão de mundo infantil. Dania Ramirez interpreta Aimee, que antes era terapeuta e agora mora em um zoológico abandonado, e suas cenas têm em grande parte o mesmo tom de contos de fadas de Gus – ela mora com outras crianças híbridas, criando uma espécie de santuário protetor – essas crianças híbridas são perseguidas pelos humanos como as responsáveis pelo grande colapso pandêmico.

Ou um exército formando por jovens que odeiam adultos (uma lembrança do clássico “Senhor das Moscas”) e que protege as crianças híbridas da caça sistemática – jovens que moram num parque de diversões mas sabem ser cruéis e sanguinários o suficiente para defender seus ideais

Por outro lado, o plot envolvendo Adi Singh (Adeel Akhtar), um médico que ainda trabalha para curar o vírus depois de todos esses anos, ou a do general Abbott (Neil Sandilands), o déspota cuja milícia conhecida como “Os Últimos Homens” controla o que resta da América, parecem inspirados em qualquer coisa do tipo Walking Dead.

Ao longo dos episódios, assistimos a flashbacks que vão apresentando fragmentos do início da pandemia do “Flagelo” (assim designam o vírus) e como era a vida dos protagonistas no passado.




“Limited Hangout” – Alerta de Spoilers à frente

É curioso como Sweet Tooth mostra o início da pandemia nos EUA. Para aqueles mais informados a cerca das “teorias conspiratórias” sobre a Covid-19, é conhecido o episódio do fechamento de Fort Detrick, Maryland, em setembro de 2019, pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC). O motivo foi de que as instalações não possuíam salvaguardas contra vazamentos de patógenos, segundo o jornal New York. Fort Detrick é um laboratório de armas biológicas militar – pertence à agência de Bio-Defesa da US Army Medical Research and Development Command (USAMRDC). 

Dois meses depois, surgem os primeiros casos de síndrome respiratória nos EUA (encarado como “fibrose pulmonar” decorrente do uso de cigarros eletrônicos). E depois, a história já conhecemos.

É curioso que a série coloque o epicentro do Grande Colapso no Fort Smith Labs., na qual algum tipo de projeto envolvendo pesquisas em imunizantes deu muito errado – qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência.

O fato é que Sweet Tooth opera o chamado “limited hangout” – quando o véu de um sigilo é resgado (a notícia sobre Fort Detrick foi, inclusive, noticiada pelo próprio New York Times – clique aqui) e não é mais possível sustentar uma mentira, usa-se o recurso de admitir uma parte da verdade que passa a ser encarado como “nova informação”, sem mais se aprofundar no assunto.




Na série, Fort Smith Labs é uma instituição privada e o projeto que saiu dos trilhos é uma pesquisa puramente pessoal da geneticista chamada Birdie (Amy Seimetz), cujo primeiro bebê híbrido fez parte da experiência (GUS - Genetic Unit Series 1). A primeira temporada não elucida a relação entre os bebês híbridos e o Flagelo.

Os militares apenas aparecem em cena para intervir no laboratório quando começa o caos sanitário. Mas, na realidade fora da tela, o que aconteceu foi o inverso...

O núcleo gnóstico – mais spoilers

Aqui entramos no núcleo gnóstico de Sweet Tooth: Gus descobre que tudo o que foi contado para ele foram mentiras: desde os livros escritos pelo pai (Gus descobre os livros originais) até a descoberta de que ele, assim como todas as crianças híbridas, não foi um milagre da natureza. Mas o resultado de algum projeto científico terrivelmente malsucedido.

Mas o que move a jornada de Gus é a sua inquebrantável positividade, otimismo e confiança num mundo sombrio.




Em uma cripta linha de diálogo de Gus com a líder do Exército juvenil que defende os híbridos (Bear – Stefania LaVie Owen) de que tudo do que precisamos já está dentro de nós, em nossos corações.

Para a mitologia gnóstica essa espontaneidade que exala por todos os poros de Gus é a forma pela qual as partículas de luz (memórias das nossas verdadeiras origens não nesse cosmos, mas no Pleroma) se manifestam no cotidiano: alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc., isto é, sentimentos e disposições que põem em movimento nossas vidas não em um sentido instrumental (em função de metas, objetivos, eficiência, eficácia ou “pensamento positivo”, como preconiza a literatura de autoajuda). Pelo contrário, tomamos a espontaneidade no aspecto do “jogo” e do “lúdico”.

A relação lúdica de Gus com um mundo sombrio, cuja instrumentalidade e racionalidade criaram o Grande Colapso, é uma fábula da condição humana gnóstica: Gus é como um anjo caído, exilado de um Paraíso perdido. Porém, totalmente construído em torno dele por mentiras.

A ciência demiúrgica manipula através da mentira a “luz” ou a “espontaneidade” das crianças híbridas, caçadas para suas medulas ósseas servirem de insumo para a cura do Flagelo.

Esse é o centro pulsante de Sweet Tooth: o encontro (e desencontros) luz de Gus contra um mundo niilista dominado por milícias e uma ciência demiúrgica. Vai muito mais além do que uma fábula sombria com um estilo Steven Spielberg.

 

 

Ficha Técnica 

Título: Sweet Tooth (série)

Criador: Jim Mickle, Beth Schwartz

Roteiro: Christina Ham, Jeff Lemire, Jim Mickle

Elenco: Christian Convery, Nonso Anozie, Stefania LaVie Owen, Will Forte, Amy Seimetz

Produção: DC Entertainment, Warner Bros

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021

País: EUA

 

 

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