sábado, maio 29, 2021

'Senhor das Moscas', Rousseau e Elon Musk vão para o espaço em 'Voyagers'


Desde que William Golding publicou “O Senhor das Moscas” em 1954, seu plot passou a ser um dos mais adaptados ao cinema e audiovisual (Lost, The Hundred, A Praia etc.). Porém, a ficção científica “Voyagers” (2021) acrescenta um toque de modernidade com a ideologia Elon Musk que parece dominar o gênero na atualidade. Mas também leva a ideia iluminista de contrato social de Rousseau para o espaço sideral. Diante de um cataclismo climático que ameaça a espécie, uma tripulação de adolescentes é enviada em uma missão de 86 anos para um distante planeta na qual seus filhos e netos viverão. Mas o maior inimigo será mesmo a natureza humana que transformará aquela espaçonave no microcosmo das mazelas políticas deixadas na Terra, a ponto da ruptura dos limites entre Natureza e Civilização. Porém, a ideologia Elon Musk não permite o filme abordar uma questão gnóstica que o filme suscita: a missão para salvar a humanidade foi elaborada através da mentira, ilusão e amoralidade. 

O Pós-Guerra foi marcado por um lado pelo tradicionalismo das mulheres voltando aos afazeres domésticos no sonho americano dos bairros de subúrbio (depois da participação ativa em fábricas bélicas durante a Segunda Guerra Mundial) e, do outro, pelo florescimento inédito da cultura jovem: na primeira vez da História o jovem passa a ser modelo comportamental e de beleza – o jovem identificado com a felicidade do consumo.

Elvis Presley, Brigitte Bardot, Pin-ups, lolitas, Marilyn Monroe, a juventude rebelde da moda ready-to-wear de James Dean para se contrapor a alta costura, o rock and roll para embalar toda essa cultura nascente, tudo convergia para uma cultura em que o jovem era o modelo promocional para uma nascente sociedade de consumo.

Nesse contexto surge o sombrio livro “O Senhor das Moscas” do britânico William Golding, um ex-professor de Filosofia que se tornou tenente na Marinha Real durante a guerra. Golding voltou da guerra dando de cara para esse paradoxo: uma cultura jovem que transbordava futuro e as duas superpotências mundiais (EUA e URSS) ameaçando uma a outra com o holocausto nuclear.

Situada em meio a Segunda Guerra Mundial, o livro acompanha um grupo de jovens britânicos que ficaram presos em uma ilha deserta após o avião em que estavam viajando cair. Enquanto tentam sobreviver, precisam arranjar algum jeito de se autogovernarem. A ilha transforma-se num microcosmo das mazelas da natureza humana e da impossibilidade da utopia – a possibilidade de construir um paraíso terrestre desmancha-se em violência, num regime totalitário baseado no medo, humilhação e controle que despenca para a barbárie.

O argumento desse livro já rendeu inúmeras adaptações cinematográficas e audiovisuais como as séries Lost e The Hundred e filmes como The Mosquito Coast (1986), The Secret Garden (1993), A Praia (2000) entre outros. Já até se tornaram repetitivas, com narrativas mais focadas em thrillers e aventuras.

Mas Voyagers (2021) vai um pouco mais além, trazendo para o campo da ficção científica os mesmos tropos de “O Senhor das Moscas”, mas buscando uma solução que enquadre a natureza humana dentro de uma necessidade urgente: a própria sobrevivência da espécie, que terá que perseverar num planeta distante numa viagem de 89 anos. Para abandonar a Terra, condenada por um cataclismo climático.



Voyagers discute a condição humana descendo a um ponto ontológico do problema: se todos vamos morrer um dia, para quê construir uma sociedade pensando nas futuras gerações? A que propósito serve renunciarmos aos prazeres imediatos, pensando na posteridade, se tudo o que aguardamos é a morte? O quê nos impede de mandarmos cultura, normas, leis e a civilização às favas e vivermos uma vida a mais prazerosa possível antes que tudo acabe? Viver dez anos a mil ou mil anos a dez?

Freud falava que esse é o mal-estar da civilização: para que uma sociedade prospere, é necessário acreditarmos em algo maior do que nós, se não... Mas essa crença nos cobra um preço alto: a renúncia até de nós mesmos.

Como resolver essa questão ontológica? E aí que Voyagers leva o filósofo iluminista Rousseau e a sua ideia de Contrato Social para o espaço. Porém, sem tematizar o, por assim dizer, “imaginário Elon Musk”, premissa de toda a missão daquela espaçonave: salvar a humanidade, nem que seja através da manipulação e amoralidade.




O Filme

Em um futuro próximo, a Terra se tornou inabitável por causa das mudanças climáticas, secas e doenças. Os cientistas descobrem um novo planeta para os humanos colonizarem - o problema é que leva 86 anos para chegar lá. Então, eles criam através de inseminações artificiais (e, possivelmente, manipulações genéticas) uma tripulação de cadetes brilhantes que embarcarão na espaçonave “Humanitas” e, eventualmente, procriarão durante a viagem, com o objetivo final de fazer seus filhos e netos recomeçarem neste mundo novo. 

Eles incluem o sensato Christopher (Tye Sheridan), a inteligente médica chefe Sela (Lily-Rose Depp) e Zac (Fionn Whitehead), que claramente vai se tornar um vilão baseado apenas em seus olhos intensos e maçãs do rosto salientes lembrando o aspecto fisionômico do Coringa. 

O único adulto experiente a bordo é Richard (um terno e experiente Colin Farrell), que desempenhou um papel crucial na criação desses astronautas desde os primeiros dias e quer ver a missão até o fim, mesmo sabendo que vai morrer no decorrer dela.

O detalhe é que essa jovem tripulação foi concebida e cresceu na Terra totalmente isolada do meio ambiente externo – como passarão a vinda confinados numa espaçonave, eles cresceram adaptados à ausência de sol, vento e grandes espaços a céu aberto. Dessa forma Voyagers lembra o argumento do filme Titã (2018): para ganhar o espaço sideral e outros planetas a humanidade não deverá terraformar o espaço, mas adaptar-se a ele. O único que não passou por esse procedimento é Richard, que embarca na missão por compaixão por aqueles jovens tripulantes – ele quer cuidar de seus “filhos”.




Esse grupo de jovens maravilhosos cederá aos seus impulsos mais primitivos em uma jornada interplanetária de décadas. Isso pode até soar sexy. Mas, apesar da natureza familiar do tema que o escritor/diretor Neil Burger está explorando (uma adaptação de “O Senhor das Moscas”), seu filme oferece muita tensão e sua marca registrada – um verdadeiro panaché visual

Semelhante ao seu Limitless de uma década atrás, Burger conta uma história sobre o que acontece quando as pessoas exploram seu eu superior e verdadeiro, para melhor e para pior. Mas dessa vez é para pior.

Em vez de tomar uma droga, como em Limitless, ao contrário, eles eliminam uma de seus sistemas corporais: a jovem tripulação toma diariamente uma bebida a que se referem como "O Azul". Esses astronautas pensam que é um suplemento vitamínico para fortalecê-los por um longo período, mas na verdade os equilibra e suprime tendências negativas como ciúme e raiva, tornando-os mais calmos e conformistas. Além da atração sexual – eles certamente se reproduzirão in vitro durante a viagem.

Tudo para evitar que os impulsos humanos mais primitivos possam colocar em risco aquela missão que levará décadas.




Mas quando Christopher e Zac começam a questionar, param de beber - e então aconselham os outros a fazerem o mesmo. Então começa a ocorrer um alegre despertar sensorial em todos.

Burger retrata de forma enérgica e vibrante a pressa de se experimentar emoções puras pela primeira vez: a alegria de correr por um corredor, o esforço de uma luta divertida na ginástica ou - com o tempo - o prazer de tocar o corpo de um tripulante do sexo oposto. Um gêiser irrompe, as pupilas encolhem e se expandem, além dos pelos dos braços se arrepiarem. 

Mas esse devaneio não durará muito: uma espaçonave que antes parecia cheia de descobertas e possibilidades ilimitadas começa a ser dominada pela claustrofobia e paranoia. 

Deixar de tomar “O Azul” permitiu que as verdadeiras personalidades dos astronautas se revelassem, resultando no velho conflito humano sobre natureza versus cultura. À medida que os cadetes ficam mais confiantes e curiosos, questões como livre arbítrio e consentimento também vêm à tona. 

Dentro desta turbulência, o centrado Christopher emerge como um líder natural que busca proteger seus companheiros de tripulação e manter alguma aparência de civilização. E Zac claramente se torna o arrogante e antagônico conforme sua impulsividade e veia cruel tomam conta. Ele é arrepiante em sua depravação e em sua capacidade de mentir e virar os eventos para que se adequem à sua narrativa.

Adolescentes furiosos e cheios de tesão é o caldo perfeito para Zac se tornar o líder um regime totalitário – combina hedonismo (comida e sexo à vontade para os seus seguidores) e medo. Zac cria um estado paranoico para conseguir adesão pelo medo: na falta de comunistas ou RAVs (russos, árabes e vilões em geral) à disposição, Zac cria o fantasma imaginário de um monstro alienígena que entrou na espaçonave, capaz de se apossar da mente de qualquer um. A consequência é previsível no âmbito da psicologia de massas: gera paranoia, suspeitas, delações e perseguições.




Rousseau e a ideologia Elon Musk – Spoilers à frente

A missão para salvar a humanidade parece caminhar a passos acelerados para o fim, comandados pelos impulsos autodestrutivos da natureza humana. 

Até que Christopher e Sela terão o mesmo insight que Jean Jacques Rousseau teve (1712-1778; um dos grandes filósofos que contribuíram para a ideia do Estado moderno como organizador da sociedade civil). A questão que Rousseau colocava era a seguinte: como preservar a liberdade natural do homem e, ao mesmo tempo, garantir a segurança e bem-estar de todos? Somente através de um contrato social, vivendo na corda bamba da soberania da sociedade e da soberania da vontade coletiva. O homem deve deixar de ser escravo das suas necessidades (a “corrupção do coração”) que provocaria a desigualdade pela destruição da piedade natural e da Justiça, colocando a sociedade em estado de guerra.

Voyagers caminha para um desenlace iluminista no qual o hedonismo e o regime do terror serão substituídos pelo bem-estar coletivo. 

Porém, há a questão gnóstica, com a qual o filme não se preocupa: afinal, aqueles pobres garotos não pediram para estar ali. Nasceram na ilusão e na mentira, manipuladas geneticamente, em ambientes controlados na Terra para que não tivessem consciência das suas próprias origens. Para finalmente serem confinados numa espaçonave e despachados para um planeta distante, mantidos bioquimicamente sob controle. 

Voyagers é mais um filme dentro daquilo que podemos chamar de ideologia Elon Musk: o planeta está à beira da extinção, restando à iniciativa privada a missão de salvar a humanidade. Mesmo que os métodos sejam manipuladores e amorais. Mas, sabemos, essa é a verdadeira face do Capital.


 

Ficha Técnica 

Título: Voyagers

Diretor: Neil Burger

Roteiro: Neil Burger

Elenco: Colin Farrel, Tye Sheridan, Lily-Rose Depp, Fionn Whitehead

Produção: AGC Studios, Fibonacci Films

Distribuição:  Lionsgate

Ano: 2021

País: EUA/Reino Unido

 

 

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