O plot “cabana na floresta” acabou se tornando um subgênero do terror: jovens vão para um lugar remoto em busca de festa e bebedeiras. E lá encontram demônios ancestrais ou serial killers. Mas isso está mudando por uma marca geracional dos millennials: a convivência com a rápida evolução tecnológica digital – agora, nas cabanas e florestas jovens encontrarão anomalias temporais, paradoxos quânticos ou loops espaço-tempo, armadilhas que ameaçam a vida dos protagonistas. “Lake Artifact” (2019) é um exemplo: múltiplas linhas de tempo se encontram em uma região remota na floresta. O pesadelo é que cada decisão ou correção de curso daquele grupo de jovens pode criar novas linhas de tempo, novos loops e novas prisões temporais: ser o único sobrevivente é a condição para escapar dessa anomalia. O tema recorrente no cinema do tempo como ameaça é o sintoma de um conflito dessa geração: através de dispositivos móveis como smartphones estamos abandonando o espaço para vivermos no tempo através do ciberespaço. Filme sugerido pelo nosso leitor Alexandre Von Keuken.
Quando vamos para o campo ou alguma praia longe dos grandes centros urbanos, a primeira coisa com que nos preocupamos é se há sinal no celular, algum wi-fi por perto ou se temos pacote de dados – isso que dizer que não mais habitamos apenas o espaço, mas também vivemos no tempo: o ciberespaço, uma espécie de “nuvem” onipresente de informações que nos dá o dom da ubiquidade, abandonando as limitações espaciais e corporais.
Ficar com a cara afundada na tela do smartphone, esquecendo do entorno mesmo em festas ou conversas com amigos, ou o fenômeno de dupla tela gerando dispersão da atenção são alguns efeitos dessa nossa migração cognitiva para o ciberespaço, criando aquilo que o pesquisador francês Paul Virilio chamava de inércia polar: enquanto o corpo está estático, a mente experimenta a velocidade e ubiquidade.
Essa é a marca geracional dos millennials ou “Y”, uma geração que viveu (a partir de 1980) um acelerado desenvolvimento tecnológico digital. É curioso ver dentro do subgênero “cabana na floresta” a transição temática com a chegada dos millennials. Nos anos 1980-90 tínhamos demônios, serial killers, vírus ou mortos vivos populando cabanas em floresta remotas e ameaçando jovens que apenas procuram festas, sexo e bebidas.
Já nesse século, filmes como O Segredo da Cabana (2011), Resolution (2012), Don’t Blink (2014), deram o novo tom que tende agora para o sci-fi e o fantástico: mistérios e paradoxos temporais sempre de natureza quântica e relativística, transformando os filmes em desconstruções do subgênero.
Porém, mais do que isso, revela um sintoma geracional: o choque entre o espaço e o tempo, o centro do problema da nossa relação cotidiana com o ciberespaço. Nesses filmes, a presença do smartphone e outras mídias digitais torna-se decisivo ao revelar uma questão – o tempo e o espaço começam a funcionar de forma anômala, apenas para lentamente um se virar contra o outro.
Por isso os filmes se transforam cada vez mais em desafiadores jogos mentais para o espectador.
É o caso do filme independente Lake Artifact (2019), escrito e dirigido por Bruce Wemple, que mais uma vez renova o subgênero com um vertiginoso mix de Stephen King, Além da Imaginação e Black Mirror – estradas se transformam em círculos, figuras estranhas são vistas à noite, fotos de passados que não aconteceram (pelo menos na atual linha de tempo). Não há demônios ou serial killers rondando um grupo de jovens que querem apenas dar uma festa – apenas anomalias temporais que podem estar a associadas a uma misteriosa seita que procurava naquela região o segredo da vida eterna.
O Filme
O desafio começa para o espectador com um prólogo duplo que abre o filme: Paradox Lake, 1953, vemos um homem perseguir outro através da floresta e espancá-lo até a morte com um pé de cabra. Ele captura tudo com a câmera. Em seguida, deixa a câmera gravá-lo deitado nos trilhos enquanto um trem aproxima-se. Salta para os dias atuais, quando uma equipe de filmagem (apenas ouvimos as perguntas em off) conduz entrevistas sobre a ligação entre desaparecimentos de pessoas na e a existência de seitas na região. Terminando a entrevista com um especialista em história de seitas afirmando: "Em outubro de 1953 houve um banho de sangue".
Saltamos para a estória principal: Kip (Chris Cimperman), Megan (Anna Shields), Grace (Catharine Daddario) e Thomas (Thomas Brazzle) saem para um fim de semana numa cabana na localidade do Paradox Lake. O carro deles quebra no caminho – tropo clássico nesse subgênero. Um caroneiro que está de passagem, também chamado Thomas (Dylan Grunn), ajuda a consertar o carro e é convidado a seguir com o grupo. O fato de ele ter nas mãos uma caixa de latas de cerveja é um bônus.
Claro que os sinais dos celulares desaparecem, criando o estranhamento do grupo em ter que se orientar com um mapa analógico tirado do porta-luvas do carro.
A primeira noite é uma explosão de alegria e bebedeira. De manhã, Kip sai para pegar comida e, mais importante, cerveja. De volta à cabana, as coisas estão começando a ficar estranhas. Uma foto do grupo, incluindo as de Thomas, é encontrada. Mas ninguém se lembra de ter tirado aquela foto. Ou quem poderia ter fotografado e tirado de uma impressora encontrada na cabana.
Outras fotos (em tons de Polaroid) misteriosamente impressas a partir da câmera de alguém, revelam figuras estranhas ao fundo. Será que estão sendo vigiados por alguém fora da cabana?
Para piorar, Kip ainda estranhamente não voltou. E para as coisas ficarem decisivamente mais estranhas, encontram um homem idoso (John Willoughby Noble) rodeando a cabana à noite, que afirma ser Kip... vindo do futuro.
No dia seguinte, o Kip que conhecemos finalmente retorna. Mas mudado...
Mundos paralelos – Alerta de Spoilers à frente
Há um pequeno interlúdio no meio do filme – aquela equipe de filmagem invisível que faz um documentário sobre aquela região em torno do Paradox Lake ouve a explicação do especialista de que ali existe uma espécie de intersecção entre diversas linhas do tempo.
Lake Artifact começa a entrar na hipótese dos “Muitos Mundos” ou “mundos Paralelos” baseada na Interpretação de Copenhagem de 1957 que considerava a mecânica quântica a partir do “colapso da função de onda”.
O melhor exemplo para explicar isso é a paradoxal experiência proposta pelo austríaco Schrödinger: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano.
De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas. Segundo o raciocínio, as duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade.
Ambas realidades existem simultaneamente dentro da caixa. Mas existe a chamada “decoerência quântica” que garante que essa situação “decaia” para um dos resultados: vivo ou morto. Isso impede que os “dois gatos” das situações diferentes interajam entre si.
Físicos como Howard Wiseman acreditam que cada situação diferente cria um universo particular, mundos paralelos em número infinito. Para ele, todos os estranhos fenômenos quânticos no mundo microfísico se explicariam pelo choque desses mundos paralelos.
O que Lake Artifact acrescenta é uma armadilha temporal que aprisionaria o espaço: cada mundo paralelo faz o grupo cair num loop. A única alternativa para escapar e matando todos, até que o sobrevivente consiga fazer a linha do tempo andar para frente.
O pesadelo é que cada decisão ou correção de curso pode criar novas linhas de tempo, novos loops e novas prisões.
Tanta pretensão faz o filme deixar muitas linhas explicativas soltas, tornando o conjunto confuso para o espectador – as linhas soltas continuam até nos créditos finais em que vemos uma espécie de making of das entrevistas daquele documentário paralelo ao plot principal, produzido por um grupo anônimo – pelo menos até certa altura do filme.
Para este Cinegnose, Lake Artifact é um exemplo de como os filmes podem ser considerados verdadeiros documentos primários para expressar através de imagens o imaginário e sensibilidades de uma determinada época – os filmes vão sempre além do seu conteúdo. A substituição dos demônios e serial killers por anomalias temporais nesse subgênero do terror, é o sintoma de um drama geracional: o conflito cotidiano entre espaço e tempo, corpo e ciberespaço.
Filme pode ser assistido na plataforma de torrent Stremio. Legendas em inglês. Ainda não há legendas em português disponíveis.
Ficha Técnica
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Título: Lake Artifact
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Diretor: Bruce Wemple
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Roteiro: Brice Wemple
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Elenco: Thomas Brazzle, Adrian Burke, Chris Cimperman, Catharine Daddario, Sheila Ball, Dylan Grunn
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Produção: 377 Films
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Distribuição: Midnight Releasing
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Ano: 2019
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País: EUA
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