quinta-feira, janeiro 23, 2020

O perigoso atalho espiritual na Internet no filme "Contato Visceral"


Além de teorias conspiratórias e fake news, a Internet com seu sites e fóruns de discussões é fértil em ocultismo, esoterismo, seitas e rituais neopagãos. É como se oferecesse um atalho para a “iluminação”. Porém, sem ascese. A tal ponto que, vulneráveis, não conseguiríamos distinguir entre a Luz e as Trevas. O filme Netflix “Contato Visceral” (“Wounds”, 2019) parte desse traço particular da geração dos millennials. Um bartender encontra um smartphone esquecido por um grupo de universitários. Seu conteúdo com estranhas fotos e mensagens de texto despertará a curiosidade de Will que o conduzirá a um abismo envolvendo supostos rituais gnósticos de sacrifício par abrir portais para a divindade. Em “Contato Visceral” a Internet pode se transformar numa toca de coelho. E às vezes, descer por essa toca torna-se perigoso. Filme sugerido pelo nosso incansável colaborador Felipe Resende.

O ciberespaço tem um appeal particular pelo Gnosticismo: criou o “tecnognosticismo”, uma inesperada conjunção histórica entre misticismo e tecnologia – um pacto estabelecido entre o homem e a tecnociência visando a ultrapassagem das limitações do orgânico e corporal para a construção de um ser híbrido, pós-humano. A informática, telecomunicações e telemática alimentam esse sonho neognóstico ou pós-biológico de desvincular-se das limitações espaciais e temporais que sempre foram ligadas à condição orgânica.
Aficionados pela Internet e cercados pelos grandes avanços e estímulos tecnológicos, a geração dos millennials (a faixa das pessoas que nasceram entre 1980 e 1996) é aquela que certamente mais incorporou ao seu cotidiano esse sonho neognóstico – por trás de cada blog, perfil criado nas redes sociais ou aplicativo desenvolvido está por trás o drive místico do pós-humano e da hibridização.
Não é por menos que a Internet se transformou em um importante instrumento de divulgação de ideias neo-pagãs, magia, misticismo e esoterismo através de sites, comunidades, fóruns de discussão – o meio digital é a mídia perfeita para essas discussões: é a própria realização tecnológica dos ideais milenares de transcendência das limitações da carne – finitude, espaço, corpo.
A questão é que temos um misticismo sem ascese. Milhares e milhares de usuários começam a se interessar por magia e misticismo com o mesmo espírito que manipula um aplicativo: está em busca de um atalho, transcendência “delivery express”, como se consultasse um guia, um manual – sem desenvolvimento espiritual, disciplina ética ou moral ou conhecimento.



E se nessa busca por transcendência da carne inadvertidamente abrirmos estranhos portais – e se no lugar da Luz encontrarmos as Trevas, já que sem a ascese, não conseguimos distinguir um do outro?
Essa é a origem geracional do drama de terror Contato Visceral (Wounds, 2019): um balconista de um bar em New Orleans encontra no chão um celular deixado por um grupo de jovens universitários, alunos da mais conhecida universidade do Estado de Luisiana: a Universidade Tulane. O conteúdo encontrado no aparelho (fotos e conversas) conduzirá o incauto bartender para coisas perturbadoras e misteriosas, abrirá portas que jamais conseguirá fechar.


Dirigido e escrito por Babak Anvari, o filme já abre com uma epígrafe de Joseph Conrad do livro “Heart of Darkness”: “Sussurrou para ele coisas sobre si mesmo que não conhecia, coisas que não concebia. E o suspiro provou ser fascinantemente irresistível. E ecoou alto dentro dele porque estava oco por dentro”. Com uma epígrafe dessa, boa coisa não deveremos esperar para o protagonista.
Amante de tecnologias, Babak Anvari se inspirou nesse fenômeno do misticismo encontrado na Internet: “Desde a era da Internet, há tantas teias sombrias e coisas aparecendo na rede que as pessoas acabam tendo acesso a muitas imagens e informações estranhas que anteriormente não podiam ter acesso. É quase uma toca de coelho. E às vezes, descer por essa toca torna-se perigoso”, explicou Babak Anvari em entrevista – clique aqui.
Como o leitor facilmente perceberá, Anvari parte de referências literárias e conematográficas facilmente reconhecíveis como os seres híbridos de HP Lovercraft, o horror corporal dos pesadelos de Cronenberg e o horror surreal de William Burroughs. 
Mas Contato Visceral possui o principal elemento que origina o horror: a fraqueza humana que permite a entrada do Mal – uma fraqueza geral (seja de caráter, vontade ou ausência de esperança) que torna sempre o protagonista vulnerável ao pesadelo que se desenrola na sua vida.


O Filme

Will (Armie Hammer) trabalha em um bar em New Orleans chamado Rosie’s onde parece ser o único lugar que tem algum controle sobre a sua vida. É uma espécie de bar degradado, sujo, com uma frequência suspeita e baratas por todos os lados.
Will é um cara que diz que se formou na faculdade a partir do momento que a abandonou – e abandonou a própria vida. Leva uma vida vazia, sem propósito, do bar para casa, bebendo com os clientes. Will é a pessoa oca da epígrafe de John Conrad. Confunde cinismo com caráter. Só falta esperarmos a conclusão da frase do “Coração das Trevas” ao longo da narrativa.
Sua namorada Carrie (Dakota Johnson) divide sua casa com ele. Ela é doutoranda na universidade e está na redação final da sua tese. Will não tem nada a dizer, a não ser ter ciúmes do professor...
Até que em uma noite acontece uma briga no Rosie’s: seu amigo ex-combatente no Iraque, Eric (Brad William Henke), leva uma garrafada no rosto, assustando um grupo de estudantes da universidade que estavam em outra mesa. Na pressa, um deles deixa para trás um smartphone. 
Will leva o aparelho para casa. Curioso, consegue desbloquear o celular e começa a receber mensagens de texto perturbadoras e fotos com cabeças decapitadas, pessoas mortas e dentes ensanguentados no chão de algum lugar.
“Eu acho que algo está comigo... não deveríamos ter mexido com esse livro”, diz uma das mensagens. A partir desse momento, Will passa a ser seguido por um carro negro, enquanto Carrie se interessa pelo assunto e passa a pesquisar na Internet, em busca dos mortos daquelas fotos relacionado com o nome Garret, o nome do usuário do smartphone.


Mais do que pesquisar, Carrie acaba encontrando aquilo que aquele grupo de garotos inocentes estavam mexendo – a descoberta de um livro chamado “The Translation of Wounds” (“A Tradução das Feridas”) no qual descreveria um antigo ritual gnóstico de sacrifício humano no qual as feridas se transformam em portais – e algo de maligno teria vindo através dele. Carrie encontra em fóruns o tal de “Garret” que descreve um túnel que ameaça possuir a própria tela do laptop, ameaçando possui-la.
Enquanto a narrativa se desenrola, um subplot se desenvolve: Will demonstra ser um fracasso como amigo e parceiro de Carrie – as visões e o pesadelo que ronda o casal deterioram ainda mais a relação até Will ter apenas na sua vida as bebidas do bar e uma amante chamada Alicia (Zazie Beetz) que não mais o quer.
Ou seja, Will provará ser o “vazo” perfeito para abrigar o Mal, o novo “pacote de carne”.

Millenials e baratas – Alerta de Spoilers à frente

“Malditos millennials!”, é a frase críptica vociferada por Will a certa altura do filme. Basicamente Will descobre que, misturando curiosidade com burrice, garotos brincaram com um livro antigo sobre feridas humanas que supostamente abririam portais para outras dimensões. E tudo o que Garret conseguiu foi a descoberta de um propósito mais sinistro do mundo astral.


Claro, é um livro gnóstico fictício. Porém, lidando com um elemento verdadeiro gnóstico: o Gnosticismo era um conjunto sincrético de crenças religiosas, esotéricas e ocultas que postulava (entre outras coisas) que a matéria era uma prisão criada por um Demiurgo para nos aprisionar e que a salvação poderia ser obtida através do conhecimento (gnosis) através de rituais secretos que liberariam a “centelha divina” dentro de nós. E permitindo ao espírito alcançar a divindade – o Pleroma.
Claro que para millennials, a própria Internet seria a expressão disso, criando crentes tão ocos, sem ascese, permitindo que pessoas ao invés de encontrarem a Luz, se conectem com o próprio Mal que nos aprisiona nesse mundo.
E também encontrar baratas, muitas baratas! – o filme mostra cenas que nos fazem lembrar daquele filme trash e grunge dos anos 1990 chamado Joe e as Baratas (Joe’s Apartment, 1996) no qual as baratas assumem o comando da vida do protagonista.
A barata contém a própria simbologia da resiliência, sobrevivência e adaptação e ao mesmo tempo representa um conjunto de significados associados ao Mal: pestilência, escuridão, aversão, sujeira. É a própria capacidade adaptativa do Mal que busca “vasos” para se proliferar nesse mundo.
O final deixa tudo vago, aberto e aparentemente sem propósito. Parece que Contato Visceral deliberadamente deixa muitas perguntas sem repostas para nos incentivar a fazermos pesquisas pelo Google – um livro gnóstico antigo que sugere ser real, baratas, rituais gnósticos... se for pesquisar, cuidado para não encontrar aquela animação de um túnel que hipnotiza Carrie.



Ficha Técnica 

Título: Contato Visceral (Wounds)
Diretor: Babaki Anvari
Roteiro: Babaki Anvari
Elenco: Armie Hammer, Zazie Beetz, Brad William Henke, Dakota Johnson, Kerry Cahill 
Produção: Annapuma Pictures, Aza Films
Distribuição: Netflix
Ano: 2019
País: EUA

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