Apesar
de flertar com temas místicos e espirituais não ortodoxos, Hollywood ainda precisa
manter as convenções dos gêneros cinematográficos. Um dos exemplos dessa
dualidade vivida pelo cinema comercial é o filme “O Advogado do Diabo” (Devil’s
Advocate, 1997) onde o diretor Taylor Hackford tenta inserir uma visão mais
matizada e ambígua da figura do Diabo em meio aos tradicionais clichês
satânicos reforçados por efeitos de computação gráfica. Através da inesquecível
performance de Al Pacino, o filme nos apresenta uma sutil visão do Diabo como uma figura prometeica, um anjo caído e condenado pelo
Criador por ter apresentado ao homem o fruto do conhecimento.
O ano é 1997. Na segunda metade dessa década Hollywood
vive uma espécie de guinada metafísica. Desde “Dead Man” (1995) do diretor Jim
Jarmusch, um western místico onde as religiões institucionalizadas são ridicularizadas,
roteiristas e produtores começam a flertar com temas e abordagens místicas ou
espirituais não ortodoxas, tal como o gnosticismo. Nesse ano estão em produção
“Show de Truman” e “Cidade das Sombras” (que serão lançados no ano seguinte) e o
filme “Matrix” está sendo gestado pelos irmãos Waschowski. Esses filmes
fazem parte de uma tendência cinematográfica da época repletas de temas,
arquétipos e simbolismos religiosos, mas com uma abordagem mística e gnóstica.
Também, nesse ano é lançado o filme “O Advogado do
Diabo” dirigido por Taylor Hackford, adaptação do livro de Andrew Neiderman. Se
no livro há uma ambiguidade fundamental em relação ao personagem principal (não
sabemos se ele é um louco ou a própria encarnação do Diabo, ambiguidade resolvida
no monólogo final), no filme percebe-se uma ambiguidade de outra natureza: o
conflito entre as convenções do gênero terror/suspense imposta pelos produtores
em apresentar o Diabo na tradicional visão judaico-cristã e a adaptação ao
livro que procura apresentar esse personagem de uma forma mais matizada –
uma visão alternativa
do Diabo, própria da literatura do Romantismo que o via como uma figura
prometeica, um anjo caído e condenado pelo Criador por ter apresentado ao homem
o fruto do conhecimento.
Mas antes, vamos relembrar o plot do filme. Kevin
Lomax (Keanu Reeves) é um jovem advogado da Flórida cuja visão dos tribunais
não é a de um espaço de justiça, mas de luta: é ganhar ou perder. E ele nunca
perde, criando uma fama de invencibilidade entre os advogados e juízes locais.
Sua vaidade e ambição chama a atenção de John Milton (Al Pacino), um advogado
dono de uma grande firma de advocacia global sediada em Manhattan. Ele é o
Diabo em pessoa, dessa vez vindo à Terra como um advogado (“é a profissão do
século XXI”, justifica-se a certa altura) e assiste à performance de Kevin em
um tribunal para, depois de mais uma vitória, seduzi-lo com fama e poder.
Convida-o, junto com sua esposa, a morar em Nova York em um luxuoso apartamento
e fazer parte da sua empresa como seu aprendiz e braço direito.
A cena do primeiro encontro
entre Milton e Kevin na cobertura de um arranha céu em Nova York é de um visual
impactante. Com seus olhos agitados e língua ferina, Milton faz a promessa de
ter o mundo aos seus pés (para o Diabo, a vaidade é o pecado que mais lhe agrada
no homem). Cena fundamental na narrativa, pois faz lembrar a forma como o Diabo
tenta Jesus no deserto relatado pela Bíblia: “Então o diabo o transportou à
cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do tempo” (Mateus 4:6).
O jovem advogado está impressionado. Assim, num
primeiro momento, é sua esposa Mary Ann (Charlize Theron), que não acredita
quando Milton oferece-lhes um luxuoso apartamento de três quartos na Quinta
Avenida. Apenas a sua mãe, sempre citando a Bíblia a respeito de Sodoma,
Gomorra e outras palavras-chave que surgem na mente quando Manhattan é
mencionada, tem suas sérias dúvida. Na medida que o filme avança, as suspeitas
da sua mãe parecem se tornar cada vez mais sólidas.
Lomax se torna obcecado com seu trabalho, ignorando
sua esposa e aproximando-se uma mulher sexy no escritório (Connie Nielsen). E a
esposa, obcecada por ter um bebê, começa a se desfazer psicologicamente. Ela
tem a primeira visão sobrenatural do filme, quando vê um demônio se
materializar no rosto e no corpo de um vizinho (Tamara Tunie). Logo ela implorará
para voltarem à Gainesville, sua cidade
natal na Flórida.
O caráter satânico é interpretado por Pacino com
prazer e alegria. Reeves, em contraste, é sóbrio e sério - o homem reto, porém
dividido entre a ambição e vaidade e a necessidade em se dedicar à sua esposa e
a vida conjugal.
Com o desenrolar do filme, logo saberemos que o
Diabo/Milton tem um sério plano de natureza cósmica que envolve a sua batalha
contra Deus, e Kevin Lomax tem um papel chave nesses sinistros planos. “Adoro
as paixões e os defeitos humanos. Eu sou talvez o último humanista. O século XX
foi inteiramente meu. E estou apenas esquentando!”, diz Milton entre suas
melhores linhas de diálogo.
O Diabo e o Romantismo
Assistindo ao
“Advogado do Diabo”, fica claro a oposição entre os clichês hollywoodianos
sobre o demônio (reforçado com muitos efeitos de computação gráfica) e uma
visão ambígua e mais matizada, ao estilo da literatura do Romantismo do século
XVIII-XIX.
Figuras como Lord Byron, Baudelaire, Goethe,
Giosuè Carducci entre outros ofereceram a visão do Diabo como uma figura
romântica do pensamento independente, do prazer e defensor do progresso e do
desenvolvimento do potencial humano.
Essa caracterização do Romantismo é extraída de uma interpretação alternativa
da mitologia judaico-cristã: Satanás é um anjo caído que foi expulso do céu por
seu orgulho e por ter dado o dom do conhecimento para o homem. Dessa maneira a
figura bíblica de Satanás aproxima-se bastante da figura mitológica de Prometheus
- que foi punido por Zeus por dar ao homem o dom de fogo.
Por isso a
literatura romântica é considerada como mais um dos renascimentos do
gnosticismo ao longo da História. Os antigos gnósticos inverteram a narrativa
hebraica da Criação, vendo a divindade como um deus menor, um Demiurgo egoísta
que queria que o homem permanecesse ignorante das suas origens divinas no
Pleroma. No Paraíso, a serpente teria, na verdade, dado secretamente ao homem o
conhecimento da divindade, sendo depois ambos punidos pelo Demiurgo. Essa
relação gnóstica entre o Diabo e conhecimento fica claro nesses versos do poeta
romântico francês Baudellaire:
Glória e louvor a ti, Satã, lá nas alturas do Céu,onde reinaste, e nas furnas escuras do Inferno, onde vencido, sonhas silencioso. Sob a Árvore da Ciência, um dia, que o repouso minha alma encontre em ti quando na tua testa seus ramos expandir qual novo templo em festa. (BAUDELAIRE, Charles. “A Ladainha de Satã”, in: Flores do Mal)
A ambiguidade de “O Advogado do Diabo”
Por que Satanás vem ao mundo como advogado? O
escritório de advocacia de John Milton tem um objetivo bem claro revelado ao
longo do filme: absolver sistematicamente todos os corruptos do mundo “até que
o cheiro da merda chegue até lá em cima onde Deus se encontra”, diz Milton no
monólogo final. Seu discurso não é delirante. Tem uma lógica interna própria
daquele que pretende explicitar todo o Mal presente no mundo diante de um Deus,
segundo ele, indiferente que apenhas olha e ri de tudo.
É uma lógica irônica onde o Diabo através das
chicanas jurídicas permitidas pelo sistema pretende revelar o Mal não apenas
presente no ser humano, mas que faz parte da própria Criação. A imperfeição do
próprio cosmos divino. A ambição e vaidade de Kevin Lomax, um advogado caipira
com forte sotaque sulista, é apenas um pobre diabo perdido nesse mundo. John
Milton pretende utilizá-lo em um projeto muito maior que é esgotar a Criação
pelo excesso, através do paroxismo da lógica do sistema.
Esse é o Diabo do Romantismo sutilmente presente no
filme, por baixo de camadas e mais camadas de efeitos especiais que transformam
a poderosa corporação de Milton em uma espécie de sucursal do Inferno cristão -
certamente um clichê imposto pelas convenções do gênero hollywoodiano.
Ficha Técnica
- Título: O Advogado do Diabo
- Diretor: Taylor Hackford
- Roteiro: Jonathan Lemkin baseado no livro de Andrew Neiderman
- Elenco: Al Pacino, Keanu Reeves, Charlize Theron, Jeffrey Jones
- Produção: Warner Bros., Regency Enterprises
- Distribuição: Warner Bros. Entertainment
- Ano: 1997
- País: EUA