Um filme que assombrou a infância desse humilde blogueiro. Assistido
décadas depois, o filme de terror sci fi “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The
Brain That Wouldn’t Die, 1962) comprova ser uma verdadeira cápsula do tempo: mostra uma
Hollywood onde a herança cultural europeia ainda estava presente na crítica
à ética do progresso científico – a consciência ou “alma” não se localiza
exclusivamente no cérebro (ecos da psicologia Gestalt e da Fenomenologia), o
que torna a experiência do protagonista (o transplante da cabeça de sua noiva)
moralmente abominável. Bem diferente da atualidade, onde a agenda tecnognóstica
na Ciência crê numa consciência descorporificada que poderia ser traduzida
em bytes e aspirar à eternidade.
Assistindo ao filme Close To God
(analisado pelo Cinegnose – clique aqui), e principalmente pelo seu
desfecho, esse humilde blogueiro não poderia deixar de lembrar do filme O Cérebro Que Não Queria Morrer (The Brain That Woudn’t Die, 1962) que
assombrou a minha infância: uma cabeça que é mantida viva em um sinistro
laboratório por fios, elétrodos e um misterioso soro - assista ao filme completo abaixo.
Na época não consegui assistir ao final do filme que passava na TV:
quando a monstruosa criatura (um experimento mal sucedido do cientista) escapou
de um armário para matar a todos, saí correndo para o banheiro com uma baita
dor de barriga de medo! Close To God
fez-me lembrar do filme daquela sequência final a qual não consegui assistir.
Quarenta e cinco anos depois (o filme passou na TV brasileira no início dos
anos 1970) esse blogueiro resolveu rever o filme e, finalmente, encarar a
sequência final.
O filme é uma verdadeira cápsula do tempo de uma época onde thrillers
psicológicos se misturavam com sci-fi sobre estranhas criaturas e o medo do
progresso científico acelerado pelo impacto dos primeiros transplantes de órgão
humanos. Essa atmosfera criou um fértil campo para filmes hoje cultuados.
Visto em perspectiva, O Cérebro
Que Não Queria Morrer é uma pérola cinematográfica por nos anos 1960 por levantar questões que atormentavam as
pesquisas em Inteligência Artificial desde aqueles tempos: mas afinal, o que é
a consciência humana? Ela reside unicamente no cérebro, podendo o restante do
corpo ser eliminado? Ou o corpo na sua totalidade tem consciência e, por tanto,
alma?
Uma questão na época complexa e cheia de sutilezas e que hoje, com o
imaginário tecnognóstico que motiva as neurociências e IA, tudo parece ser
resolvido com o projeto das Cartografias da Mente: a consciência poderia ser
traduzida em bytes e, num futuro próximo, poderíamos fazer um upload final do
nosso Eu para uma rede bioeletrônica, conquistando a vida eterna. Filmes como Transcendence ou The Machine vem seguidamente abordando essa agenda tecnocientífica
atual – filmes também analisados pelo Cinegnose – clique aqui e aqui.
Além disso esse cult dos anos 1960 faz um irônico comentário sobre a
erotização da indústria do entretenimento e a transformação da mulher em um
boneco erótico consumista: onde mais um cientista procuraria um novo corpo para
a cabeça da sua noiva? Em boates com shows eróticos e concursos de modelos.
O Filme
Para aqueles que não estão familiarizados com o filme, O Cérebro Que Não Queria Morrer
acompanha um cirurgião (Dr. Bill) que já há algum tempo vem fazendo secretamente
experiências em manter partes de corpos vivas mesmo depois de mortas, até
tentar fazer um novo ser. Uma dessas experiências mal sucedidas vive trancada em um
armário no laboratório em um porão de uma casa rural do seu pai, Dr.
Cortner.
O filme começa com uma cirurgia feita em conjunto com seu pai. Numa
manobra cirúrgica ousada, sob a desconfiança do Dr. Cortner, Dr. Bill
ressuscita um paciente dado como morto com sua técnica de choques diretamente
aplicados no cérebro. Após uma discussão
sobre ética científica com seu pai, Bill leva sua noiva Jan Compton rumo à casa
de campo onde está seu laboratório.
No caminho sofrem um acidente e o carro despenca num barranco,
decapitando Jan e incinerando o restante do corpo. Desesperado, Bill enrola a cabeça
da sua noiva no paletó e corre para o seu laboratório que está próximo.
Ajudado pelo seu assistente, Bill coloca a cabeça de Jan em uma bandeja cheia
de um revolucionário soro e conectada a fios e elétrodos. Bill ressuscita a
cabeça até que ele possa encontrar um novo corpo para ela ser transplantada.
Mas tudo que a cabeça deseja é morrer para não se tornar uma aberração
em vida, assim como o monstro que tenta escapar do armário. Ela quer vingança
depois de compreender a imoralidade das experiências do seu amante. Cheia de
ódio, a cabeça vai procurar uma forma de vingança.
Gestalt, Fenomenologia e Consciência
O filme é ainda dos tempos em que Hollywood ecoava a herança cultural do
velho continente europeu. Está claro no filme que a crítica ética feita ao
delírio científico do Dr. Bill se fundamenta na ideia de que o homem não é uma
simples soma ou subtração de partes – a consciência ou “alma” é a totalidade do
corpo, numa integração completa espírito/matéria. Uma crítica à noção
cientificista e cartesiana de que a consciência se localizaria exclusivamente
em algum lugar do cérebro – por exemplo, o filósofo Descartes no século XVII
acreditava estar localizada numa glândula do cérebro. Para ele, a única função
do resto do corpo era manter o cérebro vivo.
A crítica ética do filme repercute tanto a psicologia Gestalt como a Fenomenologia
da percepção do filósofo francês Merleau-Ponty. Para a Gestalt o Todo não é a
soma das partes. Uma proposta epistemológica de que a realidade somente pode
ser apreendida em uma única vez, em sua totalidade ou “Gestalt”.
Dessa forma, o corpo da Gestalt implica no reconhecimento do
funcionamento integrado, de uma realidade co-construída mente e corpo.
Da mesma forma, a grande contribuição da fenomenologia do francês Merleau-Ponty no século
XX foi estabelecer as bases cinestésicas da consciência e da percepção.
Partindo de um princípio holístico, corpo e consciência estão relacionados e
mutuamente engajados. A própria percepção de si mesmo e do ambiente depende do
posicionamento corporal e da sua ação sobre os objetos. Consciência e
experiência estão em um mesmo fenômeno e não são excludentes como encara o
cogito cartesiano.
A consciência não é apenas a cabeça, mas as
mãos que se tocam ou o pé que sente o chão. É compreensível o fenômeno da “mão
fantasma” após o membro ser eventualmente amputado – dentro da lei de
complementaridade (ou "fechamento") da mente, fantasmaticamente o membro é reconstituído para a
gestalt corporal ser mantida intacta.
Bem diferente da atualidade onde a agenda
tecnognóstica retorna à concepção cartesiana de consciência, não mais da forma
bizarra onde cabeças ou cérebros eram mantidos vivos como no
imaginário sci fi do passado, mas com a possibilidade da mente ser cartografada
para ser traduzida como informação que pudesse ser estocada em hardwares.
Dessa forma, Hollywood vira as costas para
o velho continente para se voltar à utopia tecnognóstica do Vale do Silício,
repercutida na cinematografia desse início de século.
Em O Cérebro Que Não devia Morrer
essa aberração da mente viver separado de uma existência corpórea é
representada na transformação psíquica de Jan: antes afável e amorosa, torna-se
vingativa e com poderes telepáticos capazes de controlar a criatura do armário
para arquitetar sua vingança.
Ciência e perversão
Mas o que é realmente interessante nessa releitura do filme tantos anos
depois é perceber o subtexto presente nas sequências onde o protagonista
procura um corpo ideal para sua noiva-cabeça em shows eróticos e concursos de
modelos.
Se metaforicamente tanto os espetáculos eróticos como os estéticos nos
desfiles de modelos transformam seres humanos em objetos sem individualidade
que entregam-se ao voyeurismo dos espectadores, no caso do olhar do Dr. Bill
vai mais além: literalmente ele vê todos corpos como que estivessem sem cabeça.
Apenas uma variedade de exemplares sem dignidade humana. Simples objetos para
seu experimento científico, um exército industrial de reserva para reposição.
É curiosa essa aproximação que o filme faz entre a perversão voyeurista
e a racionalidade científica do Dr. Bill, o que lembra todas as discussões de
Adorno e da Escola de Frankfurt em torno da Indústria Cultural – o psiquismo
humano, seus impulsos, desejos e perversões, cientificamente organizados na
indústria do entretenimento sob a forma da mercadoria.
Esse é o perigo do progresso científico sem ética ou moral: de repente a
Ciência torna-se um álibi para a satisfação de perversões, destrutividade e
dominação. A luz da razão pode também produzir sombras.
Ficha Técnica |
Título: O
Cérebro Que Não Queria Morrer
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Diretor: Joseph Green
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Roteiro: Joseph Green baseado em estória original de Rax Carlton
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Elenco: Jason Evers, Virginia Leith,
Anthony La Penna, Adele Lamont
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Produção: Rex Carlton Productions
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Distribuição:
Gaiam Americas (DVD)
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Ano: 1962
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País: EUA
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