segunda-feira, março 28, 2016

Em "O Cérebro Que Não Queria Morrer" o pesadelo da ciência tecnognóstica


Um filme que assombrou a infância desse humilde blogueiro. Assistido décadas depois, o filme de terror sci fi “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962) comprova ser uma verdadeira cápsula do tempo: mostra uma Hollywood onde a herança cultural europeia ainda estava presente na crítica à ética do progresso científico – a consciência ou “alma” não se localiza exclusivamente no cérebro (ecos da psicologia Gestalt e da Fenomenologia), o que torna a experiência do protagonista (o transplante da cabeça de sua noiva) moralmente abominável. Bem diferente da atualidade, onde a agenda tecnognóstica na Ciência crê numa consciência descorporificada que poderia ser traduzida em bytes e aspirar à eternidade.

Assistindo ao filme Close To God (analisado pelo Cinegnose – clique aqui), e principalmente pelo seu desfecho, esse humilde blogueiro não poderia deixar de lembrar do filme O Cérebro Que Não Queria Morrer (The Brain That Woudn’t Die, 1962) que assombrou a minha infância: uma cabeça que é mantida viva em um sinistro laboratório por fios, elétrodos e um misterioso soro - assista ao filme completo abaixo.

Na época não consegui assistir ao final do filme que passava na TV: quando a monstruosa criatura (um experimento mal sucedido do cientista) escapou de um armário para matar a todos, saí correndo para o banheiro com uma baita dor de barriga de medo! Close To God fez-me lembrar do filme daquela sequência final a qual não consegui assistir. Quarenta e cinco anos depois (o filme passou na TV brasileira no início dos anos 1970) esse blogueiro resolveu rever o filme e, finalmente, encarar a sequência final.


O filme é uma verdadeira cápsula do tempo de uma época onde thrillers psicológicos se misturavam com sci-fi sobre estranhas criaturas e o medo do progresso científico acelerado pelo impacto dos primeiros transplantes de órgão humanos. Essa atmosfera criou um fértil campo para filmes hoje cultuados.

Visto em perspectiva, O Cérebro Que Não Queria Morrer é uma pérola cinematográfica por nos anos 1960  por levantar questões que atormentavam as pesquisas em Inteligência Artificial desde aqueles tempos: mas afinal, o que é a consciência humana? Ela reside unicamente no cérebro, podendo o restante do corpo ser eliminado? Ou o corpo na sua totalidade tem consciência e, por tanto, alma?

Uma questão na época complexa e cheia de sutilezas e que hoje, com o imaginário tecnognóstico que motiva as neurociências e IA, tudo parece ser resolvido com o projeto das Cartografias da Mente: a consciência poderia ser traduzida em bytes e, num futuro próximo, poderíamos fazer um upload final do nosso Eu para uma rede bioeletrônica, conquistando a vida eterna. Filmes como Transcendence ou The Machine vem seguidamente abordando essa agenda tecnocientífica atual – filmes também analisados pelo Cinegnose – clique aqui e aqui.

Além disso esse cult dos anos 1960 faz um irônico comentário sobre a erotização da indústria do entretenimento e a transformação da mulher em um boneco erótico consumista: onde mais um cientista procuraria um novo corpo para a cabeça da sua noiva? Em boates com shows eróticos e concursos de modelos.

O Filme


Para aqueles que não estão familiarizados com o filme, O Cérebro Que Não Queria Morrer acompanha um cirurgião (Dr. Bill) que já há algum tempo vem fazendo secretamente experiências em manter partes de corpos vivas mesmo depois de mortas, até tentar fazer um novo ser. Uma dessas  experiências mal sucedidas vive trancada em um armário no laboratório em um porão de uma casa rural do seu pai, Dr. Cortner.

O filme começa com uma cirurgia feita em conjunto com seu pai. Numa manobra cirúrgica ousada, sob a desconfiança do Dr. Cortner, Dr. Bill ressuscita um paciente dado como morto com sua técnica de choques diretamente aplicados no cérebro.  Após uma discussão sobre ética científica com seu pai, Bill leva sua noiva Jan Compton rumo à casa de campo onde está seu laboratório.


No caminho sofrem um acidente e o carro despenca num barranco, decapitando Jan e incinerando o restante do corpo. Desesperado, Bill enrola a cabeça da sua noiva no paletó e corre para o seu laboratório que está próximo. Ajudado pelo seu assistente, Bill coloca a cabeça de Jan em uma bandeja cheia de um revolucionário soro e conectada a fios e elétrodos. Bill ressuscita a cabeça até que ele possa encontrar um novo corpo para ela ser transplantada.

Mas tudo que a cabeça deseja é morrer para não se tornar uma aberração em vida, assim como o monstro que tenta escapar do armário. Ela quer vingança depois de compreender a imoralidade das experiências do seu amante. Cheia de ódio, a cabeça vai procurar uma forma de vingança.

Gestalt, Fenomenologia e Consciência


O filme é ainda dos tempos em que Hollywood ecoava a herança cultural do velho continente europeu. Está claro no filme que a crítica ética feita ao delírio científico do Dr. Bill se fundamenta na ideia de que o homem não é uma simples soma ou subtração de partes – a consciência ou “alma” é a totalidade do corpo, numa integração completa espírito/matéria. Uma crítica à noção cientificista e cartesiana de que a consciência se localizaria exclusivamente em algum lugar do cérebro – por exemplo, o filósofo Descartes no século XVII acreditava estar localizada numa glândula do cérebro. Para ele, a única função do resto do corpo era manter o cérebro vivo.

A crítica ética do filme repercute tanto a psicologia Gestalt como a Fenomenologia da percepção do filósofo francês Merleau-Ponty. Para a Gestalt o Todo não é a soma das partes. Uma proposta epistemológica de que a realidade somente pode ser apreendida em uma única vez, em sua totalidade ou “Gestalt”.

Dessa forma, o corpo da Gestalt implica no reconhecimento do funcionamento integrado, de uma realidade co-construída mente e corpo.


Da mesma forma, a grande contribuição da fenomenologia do francês Merleau-Ponty no século XX foi estabelecer as bases cinestésicas da consciência e da percepção. Partindo de um princípio holístico, corpo e consciência estão relacionados e mutuamente engajados. A própria percepção de si mesmo e do ambiente depende do posicionamento corporal e da sua ação sobre os objetos. Consciência e experiência estão em um mesmo fenômeno e não são excludentes como encara o cogito cartesiano.

A consciência não é apenas a cabeça, mas as mãos que se tocam ou o pé que sente o chão. É compreensível o fenômeno da “mão fantasma” após o membro ser eventualmente amputado – dentro da lei de complementaridade (ou "fechamento") da mente, fantasmaticamente o membro é reconstituído para a gestalt corporal ser mantida intacta.

Bem diferente da atualidade onde a agenda tecnognóstica retorna à concepção cartesiana de consciência, não mais da forma bizarra onde cabeças ou cérebros eram mantidos vivos como no imaginário sci fi do passado, mas com a possibilidade da mente ser cartografada para ser traduzida como informação que pudesse ser estocada em hardwares.

Dessa forma, Hollywood vira as costas para o velho continente para se voltar à utopia tecnognóstica do Vale do Silício, repercutida na cinematografia desse início de século.

Em O Cérebro Que Não devia Morrer essa aberração da mente viver separado de uma existência corpórea é representada na transformação psíquica de Jan: antes afável e amorosa, torna-se vingativa e com poderes telepáticos capazes de controlar a criatura do armário para arquitetar sua vingança.

Ciência e perversão


Mas o que é realmente interessante nessa releitura do filme tantos anos depois é perceber o subtexto presente nas sequências onde o protagonista procura um corpo ideal para sua noiva-cabeça em shows eróticos e concursos de modelos.


Se metaforicamente tanto os espetáculos eróticos como os estéticos nos desfiles de modelos transformam seres humanos em objetos sem individualidade que entregam-se ao voyeurismo dos espectadores, no caso do olhar do Dr. Bill vai mais além: literalmente ele vê todos corpos como que estivessem sem cabeça. Apenas uma variedade de exemplares sem dignidade humana. Simples objetos para seu experimento científico, um exército industrial de reserva para reposição.

É curiosa essa aproximação que o filme faz entre a perversão voyeurista e a racionalidade científica do Dr. Bill, o que lembra todas as discussões de Adorno e da Escola de Frankfurt em torno da Indústria Cultural – o psiquismo humano, seus impulsos, desejos e perversões, cientificamente organizados na indústria do entretenimento sob a forma da mercadoria.

Esse é o perigo do progresso científico sem ética ou moral: de repente a Ciência torna-se um álibi para a satisfação de perversões, destrutividade e dominação. A luz da razão pode também produzir sombras.


Ficha Técnica


Título: O Cérebro Que Não Queria Morrer
Diretor: Joseph Green
Roteiro: Joseph Green baseado em estória original de Rax Carlton
Elenco:  Jason Evers, Virginia Leith, Anthony La Penna, Adele Lamont
Produção: Rex Carlton Productions
Distribuição: Gaiam Americas (DVD)
Ano: 1962
País: EUA

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