Qual a relação entre rodas, bicicleta e aviões? O pesquisador canadense
Marshall McLuhan (1911-1980) em seu livro clássico “Os Meios de Comunicação
como extensões do Homem” faz interessantes interconexões históricas entre esses
três meios técnicos e seus desdobramentos culturais como o cinema e a invenção
de um veículo com rodas in line como o meio que conduzirá à aviação.
Dos insights do pesquisador canadense podemos descobrir secretas conexões entre
a invenção da roda, o cinema e as bicicletas na história da cultura. Mais do
que isso, descobrimos a base tecnológica de todo o imaginário de iluminação
espiritual e transcendência que a bicicleta passa a construir na cultura pop a
partir do pós-guerra.
No
capítulo “Roda, Bicicleta e Avião”, McLuhan narra a trajetória dos veículos de
tração por arrasto (trenó, esqui etc.) até a tecnologia da roda. Foi necessário
muito esforço mental e abstração para separar os movimentos recíprocos com as
mãos, do movimento livre das rodas. Os efeitos das carroças de quatro rodas
sobre a vida urbana foram extraordinários: desenvolvimento das cidades,
separação entre a vida urbana e rural etc. Com as ferrovias e estradas a força
configuradora das rodas ganha ainda mais força, até a atual era da informação diminuir
o seu poder de moldar as relações humanas.
Mas as
rodas deixaram dois importantes legados para a atualidade: o cinema e a
bicicleta. A câmera e o projetor do cinema são significativos por serem
constituídos por um conjunto sutil de rodas: enrolar o mundo em um carretel
para depois desenrolá-lo na tela. Com a convergência tecnológica, testemunhamos
mais um subproduto da era das rodas desaparecendo com a obsolescência do
dispositivo cinematográfico: o fim dos rolos de filmes e o início da projeção
de filmes digitais diretamente em streaming.
Mas foi
o alinhamento das rodas em tandem que
as elevou ao plano do equilíbrio aerodinâmico, trazendo maior intensidade e
velocidade. Não foi por acaso que os irmãos Wright eram mecânicos de bikes e
que os primeiros aeroplanos pareciam mais com bicicletas. A aerodinâmica, o
equilíbrio, a velocidade que quebra a resistência do ar e a condição de
suspensão que o ciclista experimenta em deslocamento criaram a conexão com os
veículos aéreos.
Sincronicamente,
as rodas alinhadas no dispositivo cinematográfico também estão presentes na
bicicleta. Não é à toa que o cinema tão bem representou a evolução do
imaginário das bikes na cultura do século XX, de signo da racionalidade do
mecanismo na modernidade, passando pela poética realista da sua importância
como meio de transporte barato até as conotações mais espirituais ou
metafísicas decorrentes da experiência de suspensão que o veículo cria para o
usuário. A mesma experiência que levou ao insight da invenção do avião.
"Transformar a vida em impulso"
A bicicleta surge em 1817 na
Alemanha pelas mãos do Barão Karl Von Drais que inventou seu laufmaschine (máquina de correr),
patenteado por ele como “velocípede” e apelidado posteriormente como “dandy
horse”.
A
primeira bicicleta por propulsão mecânica foi construída pelo escocês
Kirpratick MacMillan em 1839: um projeto de tração traseira usando pedais
conectados por barras de uma manivela traseira semelhante à transmissão de uma
locomotiva a vapor.
Mas é
em 1885 que John Starley cria a chamada “bicicleta de segurança” com a
dianteira dirigível e uma unidade com corrente para a roda traseira, dando
conforto, rapidez e segurança.
Bicicleta: um importante papel no movimento feminista |
Na
frase de Wilard já está o registro da experiência de suspensão, impulso,
deslocamento acima do solo e liberdade, longe dos tempos das primeiras
“máquinas de correr” impulsionadas pelos pés no chão. O simbolismo da bicicleta
começa a abandonar o campo imaginário maquínico para criar um imaginário mais
espiritual da liberdade e suspensão.
Em postagem anterior fizemos uma
relação entre essa experiência de suspensão da bicicleta e o estado alterado de
consciência da suspensão que propiciaria estados gnósticos de iluminação
espiritual (veja links abaixo): a bicicleta é mais do
que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política.
Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma,
técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica.
A
bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente,
engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo
“shhhhhh” do contato do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma
“liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e
movimento, seja pelo esgotamento físico. Montar na bicicleta e se deslocar
velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo
e do mecanismo anulando a atividade racional/mental.
Por exemplo, a música “Bike” do Pink Floyd de 1967 associa a experiência de andar com uma bicicleta munida de cesta e campainha a ouvir uma melodia com rimas e ressonâncias que surgem do mecanismo da bike, e convida a mulher amada a escutá-la. É um exemplo dessa representação espiritual e transcendente da bicicleta na cultura pop de pós-guerra.
Acompanhe o trajeto da construção do imaginário das bikes no cinema nessas dez cenas selecionadas:
1 – A Saída dos Operários da Fábrica (1895)
Nesse filme projetado na primeira exibição pública de apresentação do invento vemos operários saindo de uma fábrica em Lyon, França. Operários com suas bicicletas, montados ou desmontados saem junto com os pedestres. A bicicleta ainda dentro do seu significado moderno como “máquina de correr”, integrada ao cotidiano fabril e à racionalidade contemporânea.
2 – Ladrões de Bicicletas (1948)
Clássico do neo-realismo italiano de Vitório de Sica onde numa Itália arrasada pela Segunda Guerra todos lutam para sobreviver em bairros operários em meio a ruas degradadas e ladrões de ocasião. No neo-realismo, cineastas decidem sair dos estúdios e filmar nas ruas com atores não profissionais para arrancar poesia de uma estética realista e documental. E a bicicleta surge aqui como signo principal da vida dura, como veículo barato e prático para tempos difíceis. Aqui, a bike se liberta do imaginário maquínico da modernidade para ser investida por um poético significado: como tábua de salvação em uma sociedade que afunda.
3 – Clube da Luta (1999)
Andar de bicicleta dentro de casa não é algo recomendável. Por isso a cena do filme Clube da Luta onde o personagem principal lê um livro para pacientes com câncer enquanto Tyler Durden anda de bicicleta pelos cômodos da casa ganha um grande significado: a bike como símbolo de inconformismo e revolta em um filme contra a sociedade consumista que prende as pessoas a objetos e trabalhos sem sentido.
4 – Cinema Paradiso (1988)
Forçado pelas
dificuldades econômicas de pós-guerra na Sicília, Toto é forçado a trabalhar na
igreja local, uma atividade que ele não ama tanto quanto sair com Alfredo,
proprietário do cinema local. Nesta cena, com a sua bicicleta Alfredo resgata o
menino do seu enfadonho trabalho religioso após o menino encenar um acidente. A
bicicleta é o veículo de libertação: da tediosa rotina para a fantasia e o
sonho do cinema.
5 - “Quicksilver – O Prazer de Ganhar” (1986)
Dentro do subgênero “desconstruindo o Yuppie” muito comum nessa
década (“Totalmente Selvagem”, 1986; “Depois de Horas”, 1985), Kevin Bacon faz
um especulador que perde tudo na Bolsa. Desencantado de tudo vai ganhar a vida
como bike courrier nas ruas de Nova
York. Através da bicicleta descobre a liberdade e o colorido das ruas, como
nessa sequência onde as acrobacias com uma bicicleta se encontram com a
breakdancing. Mais uma vez, bicicleta é o veículo da liberdade e novas
descobertas.
6 – “Os Goonies” (1985)
Um grupo de crianças que se autodenominam “Os Goonies” acham
um mapa que supostamente os levará ao tesouro de um pirata do século XVII. Isso
às vésperas de suas casas serem demolidas devido à expansão de um clube de
campo local. Eles têm um plano para salvar suas casas com o tesouro, mas para
isso terão que fugir dos adultos e do irmão mais velho com suas bicicletas. A
bicicleta como instrumento de fuga para aventuras e veículo para a descoberta
de um outro mundo que os fará crescer.
7 – “A Grande Farra dos Muppets” (The Great Muppet Caper, 1981)
Olhando essa sequência filmada
no Battersea Park, Londres, ficamos pensando: como eles fizeram isso? Quem se
importa, quando estão reunidos nessa sequência todos os sentidos que o cinema
atribui às bikes: liberdade, leveza, estado de suspensão, aventura e poesia. E
surrealismo: Miss Pig e Caco, o Sapo pedalando e cantando.
8 – “Vidas Sem Destino” (Gummo, 1997)
Aqui temos a sequência de bike
com as crianças mais assustadoras do cinema. “White trash” - ou Lixo
Branco, termo utilizado para pessoas brancas de baixíssimo estatuto social,
cultural e econômico. Um filme sobre a rotina dos moradores sem esperança de
uma cidade devastada por um tornado. Já não há mais adultos, e as crianças
vivem por si mesmas. Aqui, a bicicleta BMX (recorrente na década de 1980,
sempre associada à infância, aventura e audácia) está associada a jovens
niilistas e sem esperanças. O passeio de bike é para observar a cidade imunda e
desorganizada.
9 – “ET” (1982)
Talvez a mais emblemática cena de bicicleta
na história do cinema: o protagonista Eliot atravessado o céu montado na sua
BMX, tendo a Lua ao fundo e um pequeno alienígena em sua cesta. Temos a
representação icônica da experiência de suspensão que a bicicleta pode
proporcionar: o estado alterado de consciência de silêncio pelo esvaziamento da
mente na integração homem, máquina e natureza.
10 – Butch Cassidy and The Sundance Kid (1969)
Com certeza, a melhor sequência
com bicicleta da história do cinema, um perfeito vídeo-clip dentro do filme ao
som de “Raindrops Keep Fallin’ on my Head” cantada por B.J. Thomas. E também
uma sequência bem simbólica: a história da dupla de bandidos marca o fim da era
do romântico “velho oeste” e o início da modernidade. Cansados de serem
perseguidos pela polícia, eles fugirão para a Bolívia. É o fim de uma era, aqui
representada na sequência onde Butch Cassidy apresenta para Etta o símbolo do
futuro e da modernidade que está por vir: a bicicleta.
Por isso essa sequência é
esteticamente perfeita, mas ideologicamente regressiva em relação ao imaginário
libertário da bicicleta que estava sendo delineado no cinema desde o pós-guerra.
Ao se mostrar para Etta fazendo malabarismos na bike ela dá de encontro com uma
cerca, leva um tombo e depois é perseguido por um touro. Acidente premonitório
com relação ao futuro dos protagonistas e o fim de uma era romântica.