O ano é 1966, o olho do furacão de uma série de transformações
comportamentais, culturais e políticas que estavam ocorrendo no mundo em meio à
Guerra Fria e a corrida espacial. O rebelde diretor John Frankenheimer faz o
filme “O Segundo Rosto” (Seconds) que será o precursor no cinema de narrativas
sobre protagonistas (em geral na meia-idade) que despertam do sonho americano e
descobrem a mediocridade da vida e dos valores – “Beleza Americana” (1999) e “Vidas
Em Jogo” (1997) são alguns exemplos posteriores. Mais do que um filme sobre a identidade (ou a perda dela),
o filme toca em um tema potencialmente gnóstico: se a vida social está baseada
no artificialismo de papéis e expectativas dos outros (ou do Outro), quem
afinal somos nós? A reposta poderá estar em uma perigosa jornada interior que
pode se transformar em pesadelo.
Diretor: John Frankenheimer
Plot: Arthur
Hamilton é um rico banqueiro. Ele estudou na Universidade certa, associou-se às
fraternidades certas, casou-se com a mulher certa. No entanto, quando chega na
meia-idade sente que algo está faltando. Se sente frustrado e vazio. Um
misterioso telefonema de um antigo colega dos tempos de faculdade quebra a
rotina. Arthur recebe um endereço e se junta a uma espécie de sociedade secreta
que lhe promete uma nova identidade e uma nova vida depois de meses de
tratamento com super-nutrição, exercícios físicos e a mais sofisticada cirurgia
plástica para transformá-lo em outra pessoa. Em uma sessão de hipnose Arthur
descobre aquilo que na verdade ele sempre quis ser: um artista. Mas há um
problema: ele deverá simular a sua morte e jamais retornará a sua antiga
existência. Poderá nessa segunda chance descobrir quem ele realmente é?
Consertar erros do passado? Ou tudo é um grande golpe para roubar sua fortuna?
Por que está “Em
Observação”?: “O Segundo Rosto” é um sombrio antecessor de filmes sobre
protagonistas da classe média norte-americana que despertam para a mediocridade
dos valores e sonhos da sociedade de consumo como “Middle Age Crazy” (1980), “Beleza
Americana” (1999) ou mesmo “Vidas em Jogo” (1997) onde o protagonista cai vítima
de um roler play game bancado por uma misteriosa empresa de entretenimentos cujo
objetivo é despertá-lo para a mediocridade da sua vida. O ano de “Segundo Rosto”
é 1966. Esse filme até hoje é perturbador e chocante que mostra um Rock Hudson
bem diferente dos galãs de boa estampa e canastrão que sempre representou. O
filme estava sintonizado com uma época que estava no olho do furação de uma
série de transformações culturais, comportamentais e políticas – o auge da
Guerra Fria e da corrida espacial. É curioso ver Rock Hudson interpretando um
personagem bêbado, perdido, atônito e fraco se desmontando.
O filme tem potenciais temas gnósticos como a identidade (ou
a perda da identidade), conspirações de uma sociedade secreta demiúrgica e a
apresentação da própria vida social como um constructu, onde as relações e a
própria realidade é uma elaboração artificial com algum propósito sinistro.
Mas “O Segundo Rosto” parece explorar um tema ainda mais
profundamente gnóstico: se a sociedade e as relações humanas são um mero
constructu a partir de papéis e artifícios, quem somos nós? O que queremos da
vida? Somos felizes ou apenas fazemos aquilo que os outros esperam de nós?
Quando saberemos que somos felizes? O que significa ser verdadeiramente livre?
Se encontrarmos a liberdade, será que estaremos realmente tão liberados quanto
pensamos ou apenas nos foi permitido trocar um conjunto de restrições por
outro?
As respostas a esses questionamentos somente encontraríamos
dentro de nós, em uma jornada interior que, muitas vezes, pode se transformar
em pesadelo. Esse parece o ponto central do filme “O Segundo Rosto”.
O que esperar?: John Frankenheimer era considerado
nessa época uma grande revelação ao lado de outros diretores como Arthur Penn e
John Cassavetes. O cinema norte-americano passava por um terremoto, assim como
o cinema europeu era subvertido por jovens cineastas como Goddard, Truffault ou
ainda com o pós-neo-realismo de Fellini e Visconti. A crítica falava de
Frankenheimer como um diretor rebelde de um filme anticapitalista onde a
narrativa assume uma atmosfera de fábula com muitas imagens simbólicas com a
lógica onírica dos sonhos e pesadelos. Os fotogramas de divulgação do filme (e
o próprio pôster promocional) com planos deformados em lente grande angular
lembram alguma coisa entre “Alice no País das Maravilhas” e “Psicose”.
Segundo o crítico Scott Tobias, “O filme ‘O Segundo Rosto’
deforma e distende as janelas da percepção até o espectador se sentir imerso e
encharcado de suor em um pesadelo”.