Em tempos de atmosfera politicamente mais leve, certamente o resgate
por ativistas de 178 cães de um instituto de pesquisas farmacêuticas em São
Roque (SP) seria relegado pelas redações da grande mídia aos blocos noticiosos
de notícias diversas. Mas o suposto descontrole das lideranças que viram
ativistas quebrando portões, depredando e levando os cães para, depois,
receberem a “ajuda” de black blocks elevou o evento à pauta nacional, para ser
submetido ao script da engenharia das bombas semióticas: “era uma vez uma
manifestação pacífica e...” Mas aqui temos uma novidade: a exploração da
relação mágica e mítica que nós temos com os animais, relação didaticamente mostrada no
filme “As Aventuras de Pi”.
Primeiramente quero me desculpar
com os leitores desse humilde blogueiro pela insistência sobre o tema bombas
semióticas. Para quem se dedica à pesquisa em meios e processos audiovisuais é
impossível ficar indiferente à atmosfera cada vez mais saturada e pesada
semioticamente – e por consequência politicamente. No futuro, pesquisadores
certamente irão transformar os acontecimentos pelos quais passamos em objetos
de dissertações e teses. Essa parece ser a miséria das ciências da comunicação:
só conseguimos entender os acontecimentos a
posteriori, isto é, interpretamos depois os acontecimentos como fenômenos filosóficos,
psicológicos ou sociológicos. Nada conseguimos compreende-los no momento, no “aqui
e agora” dos eventos, quando eles são acontecimentos
comunicacionais.
Nesse momento, representado pela
metáfora do “gigante que despertou”, uma histeria das manifestações toma conta
da agenda midiática: incêndio no Itamaraty, agressão a jornalistas, pedidos de
intervenção militar, protestos dos médicos contra a “escravidão de médicos
cubanos”, planos detalhe de carros virados e incendiados, Batmans Black Block
do bem e uma infindável série de eventos iconicamente anabolizados pela mídia.
Depois
de um ano sendo investigado pelo Ministério Público sobre denúncias de maus-tratos
de animais pelo Instituto Royal em São Roque (SP), ativistas se acorrentaram
aos portões do instituto o que, na madrugada do dia 18/11, resultou na invasão
e resgate de 178 cães da raça beagle.
Certamente,
se fosse noutros tempos menos carregados politicamente, esse episódio seria
visto nas reuniões de pauta dos “aquários” da grande mídia como um fait divers (“fato diverso”, no jargão
jornalístico) e teria sido pautado para blocos de notícias de variedades, assim
como, por exemplo, notícias sobre ativistas que invadem passarelas de moda
contra desfile de casacos de pele de animais.
São Paulo Fashion Week: fosse hoje, protesto contra racismo na Avenida Paulista contaria com black blocks, depredações e muita mídia |
Fosse
hoje, as modelos (recrutadas por uma agência de modelos negras) que desfilaram
em protesto na Avenida Paulista em março contra o estilista Ronaldo Fraga
acusado de racismo no São Paulo Fashion Week, certamente seriam vistas pela
mídia como “manifestantes” e teríamos imagens de “black blocks” e “anonymous”
quebrando vitrinas de lojas e bancos. E veríamos a narrativa midiática
recorrente para todas as manifestações: “começou como pacífica, mas depois vândalos
se infiltraram...”
Com o
resgate dos cães beagles do Instituto Royal não foi diferente. A cobertura
midiática seguiu rigidamente o mesmo padrão semiótico de saturação de
significados retóricos e semiológicos, o que faz acreditarmos na existência de
um modus operandi linguístico em
ação, tão sistemático que é impossível não acreditarmos em uma intencionalidade.
Nas
últimas postagens (veja links abaixo) viemos denominando esse modus operandi como “bomba semiótica”,
sugerindo com esse conceito uma intencionalidade cada vez mais evidente por
trás de uma guerrilha semiológica que estaria sendo articulada nesse momento na
mídia.
Pois bem, nesse episódio sobre
supostos maus-tratos no instituto de pesquisas farmacêuticas em São Roque, além
dos tradicionais mecanismos retóricos e semiológicos, encontramos uma novidade que
certamente a promoveu como “bomba semiótica”: a mitologia (no sentido dado pelo
semiólogo francês Roland Barthes) do cão ser o melhor amigo do homem e, por
isso, tocar os nossos corações.
O modus operandi
Script retórico –
(a) Beagles, bonitos cãezinhos
de estimação, típicos das classes médias. E sendo resgatados por personagens
que nas edições das coberturas midiáticas receberam um especial destaque:
mulheres, igualmente de classe média. Apesar de décadas de movimento feminista
e afirmação definitiva das mulheres na sociedade, elas ainda na mídia são
símbolos de fragilidade. Em situações de perigo, então, assume um significado
poderoso (muito explorado em filmes de ação). Elas receberam o destaque nas
edições das imagens de resgate no meio da madrugada.
Personagens femininos especialmente destacados pela cobertura |
(b) Quem é o culpado? No atual ambiente
político denso, culpar a “indústria farmacêutica” ou um “instituto” que até
então a opinião pública desconhecia não obtém o efeito de indignação. É
necessário buscar o inimigo em um órgão público. Por exemplo, a primeira cobertura
do Jornal Hoje tentou aproximar a responsabilidade à ANVISA (Agência Nacional
de Vigilância Sanitária), órgão regulador do Ministério da Saúde, que emitiu
comunicado de desmentido durante o telejornal – a bomba semiótica explodiu no
colo do JH ao vivo. O que obrigou os apresentadores da bancada do JH a
pronunciar o desmentido no final daquela edição.
Mais tarde, no Jornal Nacional,
foi ao ar matéria que ainda não conseguia o culpado pretendido – que deve ser
necessariamente o governo federal. Apenas falou-se em “leis” e “legislação”. Até
que no “Fantástico” de 20/10 longa matéria onde finalmente a emissora consegue
encontrar por onde: o CONCEA (Conselho Nacional de Controle da Experimentação
Animal do Ministério da Ciência e Tecnologia) .
O coordenador do CONCEA fala que
o Brasil “tem regras rígidas de vigilância”. E é mostrada prontamente a impactante
imagem de um cão andando desnorteado entre fezes e confinado em uma pequena
baia de laboratório e com as costas tosadas... A imagem em corte dramaticamente
seco retoricamente condena o coordenador do CONCEA.
(c) Na manhã do dia seguinte do
resgate dos cães, eis que surgem os black blocks sob a justificativa de
proteger os manifestantes (por que eles não aparecem também em retomadas de
posse para defender famílias em luta contra a polícia de choque nas
periferias?). Clichês de imagens de carros da polícia depredados, fumaça e
incêndios. E as tradicionais imagens aéreas mostrando a extensão dos estragos.
Era uma vez uma manifestação pacífica... e aí os vândalos apareceram.
Script semiológico -
(a) O objetivo em sustentar o
script das manifestações é mostrar que
desde as grandes manifestações de rua de
junho, o País se encontra em estado de pré-insurgência civil, imerso no caos
porque o governo é fraco. Por isso, para criar um índice forte da instabilidade
nacional repete-se a imagem da bandeira nacional perdida no meio dos
confrontos: a bandeira como escudo, desfraldada no meio do conflito, ou abandonada,
pisoteada, esfarrapada, esquecida. As imagens dos protestos capricham nas
imagens da bandeira nacional em meio ao confronto com a polícia - veja imagens acima.
(b) Mais índices de insegurança,
dessa vez criminógenos, com depoimentos de pessoas que não querem se
identificar, dando depoimentos em contra-luz ou de costas com a voz alterada
por filtros. Imagens de ativistas encapuzados para reforçar ainda mais uma
atmosfera assustadora de crime organizado - veja imagens acima.
Cães: Mito e Fetichismo
A
introdução da matéria do Fantástico de 20/10 foi uma aula perfeita de sincromisticismo utilizado
como ferramenta semiótica para capturar o espectador na constelação de
arquétipos que transformam o cão em animal mítico: cães, santos e religião.
“Na tradição católica São Roque é padroeiro dos inválidos e protetor de epidemias, porque dedicou a vida a cuidar dos leprosos da Idade Média. Contaminado pela doença se isolou em um bosque e se não fosse um cãozinho teria morrido de fome. O cãozinho todo dia levava pão para ele (...) isso demonstra como a nossa relação com os cães é intensa é isso foi demonstrado justamente na cidade de... São Roque”, falam em jogral os apresentadores Renata Vasconcelos e Tadeu Schmidt.
Estratégia
retórica para reforçar uma relação mítica com o arquétipo do cão que, como toda
relação mágica, é invertida e fetichista. Magistralmente essa relação é
mostrada no filme “As Aventuras de Pi” (The Life of Pi, 2012) onde o protagonista leva um pedaço de carne para o
tigre-de-bengala Richard Parker preso em uma jaula no zoo da família. Ele
acredita que o tigre possui uma alma e que virá docilmente comer a carne em
suas mãos. Quando o tigre já está ameaçadoramente próximo, seu pai o arranca de
frente de jaula e diz enfurecido: “Acha que esse tigre é um amigo? Ele é um
animal, não um boneco!”. “Animais têm alma, eu vi nos olhos dele”, responde Pi
chorando. “Animais não pensam como nós... Quando olha nos olhos dele você vê
suas emoções refletindo de volta, nada mais!”, dispara o pai.
A
novidade dessa bomba semiótica é acrescentar às camadas retórica e semiológica,
mais uma: a mítica e sincromística – o homem projeta imaginariamente nos
animais suas próprias mazelas. Se nos revoltamos contra o sacrifício de animais
pela indústria cosmética, na verdade nos revoltamos pelo próprio vazio de
sentido nas mortes: narcisismo e individualismo. O resgate dos animais é a
expiação de uma má consciência pela espécie humana: enquanto houver mercado
para o narcisismo cosmético, animais continuarão a morrer.
Através
da simpática figura dos beagles, a bomba semiótica dos cães de laboratório
utiliza essa relação mítica e fetichista que temos com os animais para chamar a
atenção dos espectadores para os índices de um País que estaria sob o descontrole
e anomia generalizadas. E tudo embalado por imagens de mulheres e cães típicos
das classes médias, as mais vulneráveis aos estilhaços dessa bomba.
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