A ansiedade em corresponder a uma pauta pré-estabelecida fez uma
repórter da rádio CBN detonar precipitadamente uma bomba semiótica que estava
sendo montada na cobertura de uma greve dos estudantes no Departamento de
Letras da USP. Graças a uma “barrigada jornalística” (a repórter confundiu a
mensagem “Alemão no Campus” de uma professora do Departamento com uma mensagem
cifrada da malandragem ao enfrentar inimigos), a repórter expôs sem querer o
mecanismo de funcionamento e a técnica de montagem de mais uma das bombas
semióticas usadas na guerrilha semiológica midiática atual onde se pretende
criar uma atmosfera de caos e pré-insurgência que supostamente estaria
dominando o País. Além disso, foi criado um surpreendente evento sincrônico: um
acidente com uma bomba linguística em um espaço justamente dedicado ao estudo,
ensino e pesquisa da linguagem.
Uma repórter da rádio CBN foi vítima
de um acidente durante a montagem de uma bomba semiótica na gravação de uma
matéria, na USP, sobre a greve dos estudantes na manhã do dia 11 de outubro.
Ansiosa por corresponder à pauta já pré-estabelecida pelos seus editores-chefes
(criminalizar e desmoralizar as ações e discursos dos grevistas para
transformá-los em exemplares do caos e desordem que estaria dominando o País),
a repórter acabou dando uma “barrigada” (no jargão do Jornalismo, uma matéria
falsa ou errada publicada com o estardalhaço de uma grande novidade). O arquivo
foi prontamente retirado do ar pela emissora, reeditado e agora disponível sem
a “barrigada” que detonou precipitadamente a bomba semiótica. Esse é a íntegra
do áudio da matéria:
“Na Faculdade de Letras, grevistas montaram piquetes com cadeiras empilhadas para impedir o acesso às salas de aula. No interior do prédio, onde a gente conseguiu entrar, havia também um recado de uma das professoras, que dizia “Alemão no Campus”, uma referência ao termo dado nas favelas ao falar dos inimigos. Ela dizia também que os alunos deviam ficar atentos aos e-mails, para saber das próximas atividades.(...)”
Não é necessário muito esforço
dedutivo para interpretar que “Alemão no Campus” dentro do departamento de
Letras da FFLCH refere-se aos cursos extra-curriculares de língua alemã
oferecidos a públicos internos e externos, assim como outros cursos oferecidos
à comunidade acadêmica - “Italiano no Campus” ou “Francês no Campus”. E que os
e-mails aos quais a professora se referia nada tinham a ver com informações de
táticas de combate contra os “inimigos” ou “alemães”, mas sobre próximas datas
do curso.
Mas a ansiosa repórter a CBN
nessa simples barrigada colocou a nu todos os mecanismos de construção de uma
bomba semiótica (manipulação midiática onde se utilizam as mais sofisticadas
ferramentas semiológicas e retóricas) que nos últimos tempos a grande mídia vem
detonando, travestida em informação, com o objetivo político de construir junto
à opinião pública a percepção de que a Nação estaria em um momento de
pré-insurgência civil, caos e baderna.
A pauta: edição e mentira |
Na verdade, a guerrilha
semiótica empreendida pela grande mídia tem como objetivo principal manter a
opinião pública em permanente estado de tensão desde irrupção das grandes
manifestações de rua de junho. Como se as manifestações não apenas tivessem
continuado, mas tivessem se transformado em manifestações genéricas (não importa
se contra o poder municipal, estadual, federal, contra uma entidade privada ou
autarquia), apenas “manifestações”, índices de um país que estaria à beira do
abismo.
A ansiedade da repórter em
corresponder à pauta determinada pelos seus superiores acabou revelando como se
articulam o nível retórico e semiológico na montagem das bombas semióticas em
geral.
Nível retórico
Em jornalismo, a pauta é o que rege o trabalho do repórter
orientando-o na edição: quais fontes devem ser buscadas, perguntas a serem
feitas, “hipóteses” que devem ser necessariamente comprovadas etc. No momento
atual de pesada atmosfera política onde a própria mídia admite explicitamente
ser a única oposição política consistente ao atual governo, as pautas se
revestem de importância fundamental para os repórteres conseguirem colher
signos (frases, declarações, eventos etc) que possam ser reduzidos a índices
que comprovem as “hipóteses” elaboradas nas reuniões de pauta.
A
função do nível retórico da bomba semiótica e saturar semiologicamente esses
índices para que se tornem “motivados” – na conceituação da linguística, um
signo motivado é aquele que guarda uma relação de pregnância com o objeto
representado, isto é, uma relação natural e inconfundível, tal como a fumaça em
relação ao fogo ou a fotografia em relação ao objeto fotografado.
A
retórica vai saturar ou forçar essa motivação, dando o caráter ideológico ou
propagandístico ao discurso. Para a ansiosa repórter, o aviso “Alemão no Campus”
só poderia ter uma relação com a linguagem da malandragem do morro, favelas e
periferias urbanas. Em uma linguagem radiofônica, o signo ideal para a criação
de uma imagem mental perfeita nos ouvintes da rádio CBN: a bandidagem descendo
o morro e invadindo o asfalto da classe média.
O termo
“favela”, usado na locução, cria um signo genérico e sem mais qualquer significado
sociológico ou geográfico (morro, periferia urbana etc.): é a “favela” onde
estão os inimigos internos imaginários dos ouvintes da CBN, de onde surgem as
hordas bárbaras que querem destruir a ordem dos cidadãos de bem – no caso, os
estudantes da USP.
Mas essa estratégia retórica
guarda ainda outro personagem: o professor. Como símbolo de sacerdócio, pureza
e elevação no imaginário social, como aquele que lida com uma atividade
intelectual e “superiora”, ele pode ser facilmente convertido em escândalo ao
mostrá-lo envolvido em práticas corruptas ou “baixas”: quem proferiu a suposta
mensagem de aviso sobre os inimigos no campus, segundo a ansiosa repórter, teria
sido uma professora do Departamento de Letras.
Com isso, a imagem mental do
ouvinte da CBN está completa: professores corruptos da USP envolvidos em
táticas de guerrilha ajudando bárbaros favelados infiltrados em uma instituição
pública. Uau! Perfeito! A construção de uma “paisagem sonora” ideal, ainda
reforçada pelo tom de voz agudo e ansioso da repórter – confira o áudio abaixo. Seu tom de voz exasperado teria sido proposital para criar uma atmosfera de tensão ou apenas índice da ansiedade incontida da repórter em
corresponder aos seus superiores da CBN e que fez a bomba semiótica disparar
antes do tempo?
Nível semiológico
Aqui
está o núcleo da bomba, a delicada operação semiológica de transformação do
símbolo em índice, de converter aquilo que é arbitrário ou significado por
convenção em signo motivado. “Alemão no Campus” é uma mensagem interna da
comunidade acadêmica, composta por signos cujos significados são estabelecidos por
convenção, isto é, são determinados por uma espécie de acordo linguístico,
entre emissores e receptores de um espaço bem específico.
Determinada
que estava pela pauta que conduzia (a necessidade de encontrar em um movimento
reivindicatório interno da USP índices que confirmassem a hipótese da
criminalização e do clima de pré-insurgência civil que supostamente se encontra
o País), a ansiosa repórter da CBN empreendeu uma arriscada operação
semiológica: transformar uma mensagem cifrada e específica em um sinal evidente
de uma criminosa organização por trás do caos e desordem.
Vimos
em postagens anteriores (veja links abaixo) que essa operação semiológica é o
núcleo de todas as bombas semióticas: por exemplo, converter a bandeira
nacional (símbolo de união nacional) em índice de violência e caos ao
destacá-la queimada, rasgada ou pisoteada.
A
arriscada operação semiológica da repórter resultou em um salto fatal: faltou a
verossimilhança, efeito de realidade fundamental para que tudo funcionasse.
Porém,
há um incrível evento sincromístico nesse episódio: uma bomba semiótica explode
acidentalmente nas mãos de uma repórter em pleno Departamento de Letras, isto
é, uma operação linguística terrorista falha no próprio local onde a linguagem
é o objeto científico de estudo, ensino e pesquisa. No mínimo, o evento pode se
transformar em ótimo estudo de caso para iniciantes no mundo semiológico e
semiótico de Ferdinand Saussure e Charles Peirce.