Após resultados positivos nas investigações sobre a interface
cérebro/máquina, o cientista Miguel Nicolélis vai além: em artigo publicado na “Cientific
Reports” anuncia o sucesso na conexão entre cérebro/cérebro. O arco de benefícios
iria desde aplicações médicas como reparos eletrônicos em tecidos cerebrais até
o surgimento do primeiro “computador orgânico”, uma Internet formada por
cérebros conectados em tempo real. Essas promessas tecnocientíficas adquirem um
aspecto messiânico ao serem divulgadas pela mídia de forma descontextualizada e
solta em uma espécie de vácuo das boas intenções. Mas quem financia a pesquisa?
Qual o destino dessas descobertas ao transformarem-se em comodities em uma sociedade de mercado? Para além das
aplicações pontuais, que tipo de paradigma ou modelo de individualidade as
neurociências repercutem na cultura? E o principal: mas afinal, quem é o dono do hardware?
Nicolélis tem nobres intenções:
ele quer fazer tetraplégicos andarem através da interface cérebro/máquina e tecidos
cerebrais lesionados se reconstituírem através da tecnologia e plasticidade inerente
às redes neuronais. Nicolélis se deixa fotografar com camisas discretamente
abertas para que possamos perceber uma camisa verde e amarela por baixo. Ele
faz questão de declarar que todo o know
how tecnológico dos laboratórios da Universidade de Duke nos EUA foi
trazido para o Instituto de Neurociência de Natal, Rio Grande do Norte.
Nicolélis é um nacionalista, sinal do crescente protagonismo do Brasil no
cenário internacional após anos de governo Lula e Dilma.
Os avanços tecnocientíficos
parecem estar acima de qualquer juízo de valor ou crítica por serem o resultado
prático do esforço coletivo do intelecto humano. Esses avanços fascinam pela
potencial utilidade e benefícios que podem trazer ao gênero humano: quem poderá
ser contra a possibilidade de paralíticos voltarem a andar e cérebros
lesionados recuperarem suas funções?
Dentro do vácuo das boas intenções o discurso de Nicolélis cai no"Adapt or You're Toast" do messianismo tecnológico dos anos 1990. |
Após apresentar resultados
impactantes nas pesquisas sobre a interface cérebro/máquina, agora Nicolelis
anuncia a interface cérebro/cérebro (através de dispositivos fora do organismo,
pensamentos podem se codificados e decodificados por cérebros emissores e
receptores) que, como sempre, promete um arco de benefícios que vai da medicina
(reparos eletrônicos em tecidos cerebrais) à própria revolução das comunicações
humanas através de “computadores orgânicos” que criariam uma Internet ligando
cérebros e não mais máquinas - leia "Nicolelis: criamos uma outra forma de comunicação entre cérebros" .
A questão dessas benéficas
promessas tecnocientíficas é que elas adquirem um aspecto messiânico ao serem
divulgadas pelas mídias de forma descontextualizada e solta em uma espécie de
vácuo das boas intenções. Se Karl Marx estiver correto ao afirmar que o mais
importante na História não é o que os homens falam, mas os seus atos,
deveríamos colocar a tecnociência e suas altruístas promessas dentro de um
contexto bem concreto: quem financia a pesquisa? Qual o destino dessas
descobertas ao transformarem-se em comodities em uma sociedade de mercado? Para
além das aplicações pontuais, que tipo de paradigma ou modelo de
individualidade as neurociências repercutem na cultura?
Sem as respostas a essas
perguntas o discurso midiático de Nicolelis lembra o espírito “Adapt or You’re
Toast” do messianismo de revoluções dos anos 1990 de livros como “Estrada para
o Futuro” de Bill Gates em relação à Internet e a tecnologia digital.
DARPA: neurociências para a guerra
Os americanos costumam dizer que
“não há almoço grátis”. E o exemplo da Universidade de Duke demonstra isso.
Desde a II Guerra Mundial a universidade mantém laços com o governo federal:
participou do V-12 Navy Training Program - formação e treinamento de oficiais
da Marinha.
Em 2002 a universidade anunciou o
fechamento de um contrato de 26 milhões de dólares com a DARPA (Agência de
Projetos de Pesquisas Avançadas em Defesa) para o desenvolvimento de
investigações sobre a interface cérebro/máquina: “Incluem aparelhos como
neuropróteses para pessoas paralisadas e neurobots controlados por sinais
cerebrais a partir de um controlador humano. O principal investigador do
projeto será o neurobiólogo Miguel Nicolélis” (leia: “DARPA to Support Development of Human
Brain-Machine Interfaces”). Segundo Sharon Weinberg em artigo para a
BBC Future “Assim como a Arpanet (precurssor militar da Internet) o experimento
da rede cerebral com ratos da Universidade Duke foi financiado pela DARPA” – clique
aqui para ler o artigo,
As aplicações médicas
(neuropróteses para deficientes e auxílio nas cirurgias no cérebro) são a face
pública do projeto que demonstra um interesse crescente do Pentágono em tudo
que tenha a ver com o controle mental de veículos e neuropróteses. Sob a rubrica “Cognição Aumentada” a DARPA tem
levado a cabo uma série de pesquisas neurocientíficas cujo objetivo é o auxílio
de combatente ao manter o cérebro de soldados alertas mesmo após dias sem
dormir: “monitorar os sinais dos cérebros de soldados para reconhecer ameaças
potenciais, mesmo antes de a mente se tornar consciente disso” - leia: “Ten Extraordinary Pentagon Mind
Experiments”.
Esse interesse do Pentágono
pelas neurociências é ainda confirmado por notícias de que o presidente Barack
Obama poderá anunciar iniciativa que canalizará milhões de dólares para
pesquisas nesse campo das ciências do cérebro. Os milhões de dólares que
financiam as pesquisas de Duke lideradas por Nicolélis representam o interesse
na aplicação militar imediata em dispositivos de teleoperações (controle mental
de “drones”) com o mínimo de controvérsias possíveis sob o álibi das maravilhas
das aplicações na medicina.
Isso nos faz lembrar as
afirmações do pensador e urbanista francês Paul Virilio de que os projetos
tecnológicos e militares guiam a História. Para Virilio a guerra não é somente feita
de explosivos, mas comunicação, vetorização. Um estado de guerra permanente
pelo controle e monitoramento, dessa vez não mais apenas pelos códigos (guerras
de criptografias), mas agora dos próprios sinais cerebrais, a comunicação em
estado puro.
O projeto da DARPA, assim como
as investigações de Nicolelis, falam em equipamentos externos que controlam e
monitoram esse fluxo de dados entre cérebro/máquina e cérebro/cérebro. Mas quem
controlará o hardware? Todo esse discurso despolitizado e no interior de um
vácuo de boas intenções parece ignorar essa questão política fundamental.
O “paralítico
tecnologizado”
Em postagem anterior (veja links abaixo) afirmávamos
que não só o projeto de Nicolélis, como também toda essa convergência entre
neurociências, Cibernética, Inteligência Artificial, ciências computacionais,
ciências cognitivas e Teoria da informação corresponderia a uma particular
agenda tecnocientífica: o tecnognosticismo, um “drive” místico e messiânico que
direcionaria o desenvolvimento científico atual.
Por trás dessa abstração do
humano reduzido aos seus sinais cerebrais (eliminando as bases cinestésicas da
consciência e da percepção em abordagens holísticas corpo/mente que
notabilizaram a Filosofia e Psicologia do século passado) estaria o secular
desejo gnóstico da transcendência da própria carne e de suas limitações físicas
e existenciais. É a tecnologia como um “atalho para Satori” (irônica expressão
de Theodor Roszak), isto é, uma forma rápida de transcendência como nenhuma
religião, ascese ou epifania místico-religiosa conseguiu.
Mas voltando a Virilio, esse
desaparecimento ou hibridização do corpo representariam dois aspectos
fundamentais para entender essa agenda tecnocientífica: a mobilização da
sociedade para um permanente estado de guerra e a nova forma de controle e
engenharia social que se desenha no horizonte.
Celulares e Ipods: abandonar o espaço dos encontros presenciais para habitar o tempo |
Virilio argumenta que a
ideologia da guerra pura é a velocidade e logística. A aceleração da percepção
humana através dos transportes e redes de comunicação alcançam o estado
paradoxal dos “veículos estáticos” e a “inércia polar”: os polos de partida e
chegada se fundem no chamado tempo real chegando a uma condição humana de ser
tornar um “paralítico tecnológico”. A lei do menor esforço (tida para nós como
natural para a economia de energia corporal, mas, para Virilio, uma ideologia a
ser questionada) e o surgimento do ciberespaço fazem o homem abandonar a
geografia e o espaço para habitar o tempo. Pessoas que se encontram de forma
presencial em restaurantes e bares e passam o tempo inteiro curvadas sobre seus
celulares, Iphones e tablets demonstram esse anseio em habitar o tempo, ignorando
o espaço do encontro físico.
Para Virilio o futuro é o da
deficiência física como um paradigma de inércia corporal até o seu
desaparecimento. Por trás dessa “estética do desaparecimento” se esconderia um
novo regime de vigilância e controle: não mais o do panótico das câmeras de
vigilância. Esse regime ainda estava inserido no regime do controle dos corpos,
da repressão sexual, do controle dos transportes e da contenção dos corpos em
instituições totais como hospitais e presídios.
Cartografias e topografias da mente
A nova ordem que se desenha no
horizonte tentará reduzir o indivíduo aos seus sinais cerebrais onde, em tempo
real, se conectará com uma “Internet orgânica” ligando cérebros. Teríamos não
mais o paradigma do panótico, mas agora “Cartografias e Topografias da Mente”.
Acompanhamos na Internet o crescimento de instrumentos de mapeamentos ou
representações cartográficas de nossos pensamentos, hábitos, relacionamentos e
escolhas por meio de sites de redes sociais, softwares e projetos pessoais que
buscam elaborar verdadeiras “geografias interiores”. Há um esforço e incentivo
deliberado para que todos os usuários, espontaneamente, disponibilizem seus
dados pessoais ou apresentem, por conta própria, seus mapas mentais e
geografias pessoais. Temos uma série de exemplos como o “Inner Geographies
Project”, o “Lifestream” ou o “Life-Tracking”.
Isso sem falar nas redes sociais como Orkut
ou Facebook onde o timeline das interações oferece um precioso banco de dados
para um mapeamento de tendências de hábitos e comportamentos, como, por
exemplo, mostra uma notícia divulgada pela BBC Brasil “Facebook revela os
períodos que mais namoros terminam” onde o jornalista e especialista em
informação David McCandless e o designer Lee Bryon analisaram 10 mil mudanças
de status no site de relacionamentos. O Resultado foi um gráfico onde se
localizavam os picos das separações (clique aqui para ler a matéria).
Tudo isso é o esboço desse exílio da espécie
humana do espaço em direção ao tempo, a conexão da mente em tempo real.
Nicolélis é um dos arautos dessa nova ordem onde o messianismo e as boas
intenções evitam encarar essa simples questão: mas afinal, quem será o dono do
hardware?
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