sexta-feira, março 15, 2013

Mas afinal, quem é o dono do hardware?

Após resultados positivos nas investigações sobre a interface cérebro/máquina, o cientista Miguel Nicolélis vai além: em artigo publicado na “Cientific Reports” anuncia o sucesso na conexão entre cérebro/cérebro. O arco de benefícios iria desde aplicações médicas como reparos eletrônicos em tecidos cerebrais até o surgimento do primeiro “computador orgânico”, uma Internet formada por cérebros conectados em tempo real. Essas promessas tecnocientíficas adquirem um aspecto messiânico ao serem divulgadas pela mídia de forma descontextualizada e solta em uma espécie de vácuo das boas intenções. Mas quem financia a pesquisa? Qual o destino dessas descobertas ao transformarem-se em comodities em uma sociedade de mercado? Para além das aplicações pontuais, que tipo de paradigma ou modelo de individualidade as neurociências repercutem na cultura? E o principal: mas afinal, quem é o dono do hardware?


Nicolélis tem nobres intenções: ele quer fazer tetraplégicos andarem através da interface cérebro/máquina e tecidos cerebrais lesionados se reconstituírem através da tecnologia e plasticidade inerente às redes neuronais. Nicolélis se deixa fotografar com camisas discretamente abertas para que possamos perceber uma camisa verde e amarela por baixo. Ele faz questão de declarar que todo o know how tecnológico dos laboratórios da Universidade de Duke nos EUA foi trazido para o Instituto de Neurociência de Natal, Rio Grande do Norte. Nicolélis é um nacionalista, sinal do crescente protagonismo do Brasil no cenário internacional após anos de governo Lula e Dilma.

Os avanços tecnocientíficos parecem estar acima de qualquer juízo de valor ou crítica por serem o resultado prático do esforço coletivo do intelecto humano. Esses avanços fascinam pela potencial utilidade e benefícios que podem trazer ao gênero humano: quem poderá ser contra a possibilidade de paralíticos voltarem a andar e cérebros lesionados recuperarem suas funções?


Dentro do vácuo das boas
intenções o discurso de Nicolélis cai
no"Adapt or You're Toast" do
messianismo tecnológico dos
anos 1990.
Após apresentar resultados impactantes nas pesquisas sobre a interface cérebro/máquina, agora Nicolelis anuncia a interface cérebro/cérebro (através de dispositivos fora do organismo, pensamentos podem se codificados e decodificados por cérebros emissores e receptores) que, como sempre, promete um arco de benefícios que vai da medicina (reparos eletrônicos em tecidos cerebrais) à própria revolução das comunicações humanas através de “computadores orgânicos” que criariam uma Internet ligando cérebros e não mais máquinas - leia "Nicolelis: criamos uma outra forma de comunicação entre cérebros" .

A questão dessas benéficas promessas tecnocientíficas é que elas adquirem um aspecto messiânico ao serem divulgadas pelas mídias de forma descontextualizada e solta em uma espécie de vácuo das boas intenções. Se Karl Marx estiver correto ao afirmar que o mais importante na História não é o que os homens falam, mas os seus atos, deveríamos colocar a tecnociência e suas altruístas promessas dentro de um contexto bem concreto: quem financia a pesquisa? Qual o destino dessas descobertas ao transformarem-se em comodities em uma sociedade de mercado? Para além das aplicações pontuais, que tipo de paradigma ou modelo de individualidade as neurociências repercutem na cultura?

Sem as respostas a essas perguntas o discurso midiático de Nicolelis lembra o espírito “Adapt or You’re Toast” do messianismo de revoluções dos anos 1990 de livros como “Estrada para o Futuro” de Bill Gates em relação à Internet e a tecnologia digital.

DARPA: neurociências para a guerra


Os americanos costumam dizer que “não há almoço grátis”. E o exemplo da Universidade de Duke demonstra isso. Desde a II Guerra Mundial a universidade mantém laços com o governo federal: participou do V-12 Navy Training Program - formação e treinamento de oficiais da Marinha.

Em 2002 a universidade anunciou o fechamento de um contrato de 26 milhões de dólares com a DARPA (Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas em Defesa) para o desenvolvimento de investigações sobre a interface cérebro/máquina: “Incluem aparelhos como neuropróteses para pessoas paralisadas e neurobots controlados por sinais cerebrais a partir de um controlador humano. O principal investigador do projeto será o neurobiólogo Miguel Nicolélis” (leia: “DARPA to Support Development of Human Brain-Machine Interfaces”). Segundo Sharon Weinberg em artigo para a BBC Future “Assim como a Arpanet (precurssor militar da Internet) o experimento da rede cerebral com ratos da Universidade Duke foi financiado pela DARPA” – clique aqui para ler o artigo,

As aplicações médicas (neuropróteses para deficientes e auxílio nas cirurgias no cérebro) são a face pública do projeto que demonstra um interesse crescente do Pentágono em tudo que tenha a ver com o controle mental de veículos e neuropróteses.  Sob a rubrica “Cognição Aumentada” a DARPA tem levado a cabo uma série de pesquisas neurocientíficas cujo objetivo é o auxílio de combatente ao manter o cérebro de soldados alertas mesmo após dias sem dormir: “monitorar os sinais dos cérebros de soldados para reconhecer ameaças potenciais, mesmo antes de a mente se tornar consciente disso” - leia: Ten Extraordinary Pentagon Mind Experiments”.

Esse interesse do Pentágono pelas neurociências é ainda confirmado por notícias de que o presidente Barack Obama poderá anunciar iniciativa que canalizará milhões de dólares para pesquisas nesse campo das ciências do cérebro. Os milhões de dólares que financiam as pesquisas de Duke lideradas por Nicolélis representam o interesse na aplicação militar imediata em dispositivos de teleoperações (controle mental de “drones”) com o mínimo de controvérsias possíveis sob o álibi das maravilhas das aplicações na medicina.

Isso nos faz lembrar as afirmações do pensador e urbanista francês Paul Virilio de que os projetos tecnológicos e militares guiam a História. Para Virilio a guerra não é somente feita de explosivos, mas comunicação, vetorização. Um estado de guerra permanente pelo controle e monitoramento, dessa vez não mais apenas pelos códigos (guerras de criptografias), mas agora dos próprios sinais cerebrais, a comunicação em estado puro.

O projeto da DARPA, assim como as investigações de Nicolelis, falam em equipamentos externos que controlam e monitoram esse fluxo de dados entre cérebro/máquina e cérebro/cérebro. Mas quem controlará o hardware? Todo esse discurso despolitizado e no interior de um vácuo de boas intenções parece ignorar essa questão política fundamental.

O “paralítico tecnologizado”

Em postagem anterior (veja links abaixo) afirmávamos que não só o projeto de Nicolélis, como também toda essa convergência entre neurociências, Cibernética, Inteligência Artificial, ciências computacionais, ciências cognitivas e Teoria da informação corresponderia a uma particular agenda tecnocientífica: o tecnognosticismo, um “drive” místico e messiânico que direcionaria o desenvolvimento científico atual.

Por trás dessa abstração do humano reduzido aos seus sinais cerebrais (eliminando as bases cinestésicas da consciência e da percepção em abordagens holísticas corpo/mente que notabilizaram a Filosofia e Psicologia do século passado) estaria o secular desejo gnóstico da transcendência da própria carne e de suas limitações físicas e existenciais. É a tecnologia como um “atalho para Satori” (irônica expressão de Theodor Roszak), isto é, uma forma rápida de transcendência como nenhuma religião, ascese ou epifania místico-religiosa conseguiu.

Mas voltando a Virilio, esse desaparecimento ou hibridização do corpo representariam dois aspectos fundamentais para entender essa agenda tecnocientífica: a mobilização da sociedade para um permanente estado de guerra e a nova forma de controle e engenharia social que se desenha no horizonte.

Celulares e Ipods: abandonar o espaço dos
encontros presenciais para habitar o tempo
Virilio argumenta que a ideologia da guerra pura é a velocidade e logística. A aceleração da percepção humana através dos transportes e redes de comunicação alcançam o estado paradoxal dos “veículos estáticos” e a “inércia polar”: os polos de partida e chegada se fundem no chamado tempo real chegando a uma condição humana de ser tornar um “paralítico tecnológico”. A lei do menor esforço (tida para nós como natural para a economia de energia corporal, mas, para Virilio, uma ideologia a ser questionada) e o surgimento do ciberespaço fazem o homem abandonar a geografia e o espaço para habitar o tempo. Pessoas que se encontram de forma presencial em restaurantes e bares e passam o tempo inteiro curvadas sobre seus celulares, Iphones e tablets demonstram esse anseio em habitar o tempo, ignorando o espaço do encontro físico.

Para Virilio o futuro é o da deficiência física como um paradigma de inércia corporal até o seu desaparecimento. Por trás dessa “estética do desaparecimento” se esconderia um novo regime de vigilância e controle: não mais o do panótico das câmeras de vigilância. Esse regime ainda estava inserido no regime do controle dos corpos, da repressão sexual, do controle dos transportes e da contenção dos corpos em instituições totais como hospitais e presídios.

Cartografias e topografias da mente


A nova ordem que se desenha no horizonte tentará reduzir o indivíduo aos seus sinais cerebrais onde, em tempo real, se conectará com uma “Internet orgânica” ligando cérebros. Teríamos não mais o paradigma do panótico, mas agora “Cartografias e Topografias da Mente”. Acompanhamos na Internet o crescimento de instrumentos de mapeamentos ou representações cartográficas de nossos pensamentos, hábitos, relacionamentos e escolhas por meio de sites de redes sociais, softwares e projetos pessoais que buscam elaborar verdadeiras “geografias interiores”. Há um esforço e incentivo deliberado para que todos os usuários, espontaneamente, disponibilizem seus dados pessoais ou apresentem, por conta própria, seus mapas mentais e geografias pessoais. Temos uma série de exemplos como o “Inner Geographies Project”, o “Lifestream” ou o “Life-Tracking”.

Isso sem falar nas redes sociais como Orkut ou Facebook onde o timeline das interações oferece um precioso banco de dados para um mapeamento de tendências de hábitos e comportamentos, como, por exemplo, mostra uma notícia divulgada pela BBC Brasil “Facebook revela os períodos que mais namoros terminam” onde o jornalista e especialista em informação David McCandless e o designer Lee Bryon analisaram 10 mil mudanças de status no site de relacionamentos. O Resultado foi um gráfico onde se localizavam os picos das separações (clique aqui para ler a matéria).

Tudo isso é o esboço desse exílio da espécie humana do espaço em direção ao tempo, a conexão da mente em tempo real. Nicolélis é um dos arautos dessa nova ordem onde o messianismo e as boas intenções evitam encarar essa simples questão: mas afinal, quem será o dono do hardware?

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