sexta-feira, março 08, 2013

Quem você vai encontrar depois de morrer?


As representações da vida pós-morte no cinema são um verdadeiro sismógrafo do que se passa entre os vivos aqui na Terra. As sucessivas mudanças das representações cinematográficas do céu e da morte ao longo das décadas parecem refletir ansiedades culturais, avanços tecnológicos e importantes fatos históricos. Ao fazer um cruzamento do conto “Os Fantasmas de Scrooge” de Charles Dickens com a chamada “Teoria dos Seis Graus de Separação” o filme “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu” (Five People You Meet In Heaven, 2004) comprova essa tese ao nos apresentar um cenário pós-morte onde pessoas criam seus próprios “céus”, como fossem anjos decaídos imersos em si mesmos. Seria o reflexo da virtualização atual do eu no ciberespaço onde avatares se transformam em espécies de divindades criadoras?

As representações do cinema sobre a existência pós-morte revelam muitas mais as mazelas da vida terrena do que qualquer verdade extra-corpórea. Como nenhum cineasta conseguiu voltar da morte com takes para um documentário sobre a vida após a morte, o tema acabou tornando-se um espelho das ansiedades culturais, avanços tecnológicos e crises religiosas e espirituais de cada época.

Apesar das representações do céu, da morte, e da existência pós-vida se alterarem de acordo com o imaginário de cada época, uma fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas narrativas e variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum espaço intermediário entre a Terra e o céu, limbo, ante-sala celestial ou a própria plenitude celeste etc.)  e é submetido a algum tipo de julgamento (revê sua própria vida, mentores ou entidades superioras o julgam, retorna para a vida para uma “segunda chance” etc.).


O filme “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu”, produzido originalmente para a TV e baseado no best-seller homônimo de Mitch Albom, não foge a essa regra. Sintonizado com os tempos atuais de reciclagens e pastiches, o filme é o resultado de um mix das diversas versões de “Os Fantasmas de Scrooge” (filmes baseados no conto “A Christmas Carol” de Charles Dickens onde um velho avarento e desgostoso com a vida recebe a visita de três fantasmas que mostrarão a ele o valor dos bons sentimentos morais) e a teoria dos seis graus de separação do psicólogo S. Milgram de 1967 de que no mundo atual são necessários apenas seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas. Hoje alguns pesquisadores defendem que esse número teria caído para cinco.

A narrativa do filme acompanha a vida de Eddie “Manutenção” (John Voight), um técnico do parque de diversões Ruby Pier. Ele é um ex-combatente da II Guerra Mundial que forçosamente abandonou o sonho de fazer uma faculdade de Engenharia por conta dos problemas de relacionamento com seu pai e um ferimento na perna durante a guerra. Herdou o emprego no parque do seu pai e lá permaneceu durante toda a vida, amargo, triste e viúvo enquanto arrasta sua perna entre os brinquedos do Ruby Pier que mantém em perfeito estado.

Tudo se mantém igual na sua solitária rotina até que um dos novos brinquedos (um elevador que simula queda livre que Eddie mantinha uma premonitória desconfiança) quebra e ameaça matar uma menina. Eddie tenta salvá-la e morre esmagado pelo elevador. Eddie desperta em um outro lugar que parece ser o Ruby Pier, mas algo está diferente: ele não sente mais a perna e está com mais vitalidade e energia. Eddie compreende que morreu e acredita que está no “céu”. Neste lugar ele encontrará cinco pessoas que, de alguma forma fizeram parte da sua vida, desde pessoas mais óbvias (seu pai e sua esposa) como personagens que ele sequer se dava conta da conexão.

Fazendo lembrar o argumento do filme “Amor Além da Vida” (What Dreams May Come, 1998), não há exatamente um céu, mas diversos “céus”: cada personagem que ele encontra criou seu próprio céu com sua imaginação e preferências pessoais que teve em vida – sua esposa, por exemplo, vive em um céu que é formado por festas de casamentos que nunca terminam.

Mas, paradoxalmente, apesar desse solipsismo de pessoas que estão aparentemente isoladas em suas próprias ilusões, todos eles terão uma lição a ensinar para Eddie. Depois da lição ensinada e da “iluminação” de Eddie, cada um sente-se hábil a reencarnar. Esse parece ser o estranho ato falho do filme: como conciliar essa contradição entre as ilusões onde cada um vive imerso no seu próprio “céu” e uma inexplicável compreensão da totalidade da existência que todos parecem possuir? De que maneira todos pretendem ensinar a Eddie de que nada na existência é desperdício e que cada pequeno gesto conta em uma contabilidade cósmica se cada um dos espíritos está imerso em uma ilusão pessoal? Se a iluminação espiritual é um movimento de transcendência do próprio ego, como a mensagem principal do filme vem de personagens que fazem exatamente o contrário?

Pós-morte no cinema


Para compreendermos esse estranho ato falho, precisamos estudar a trajetória das representações da vida pós-morte no cinema. A pesquisadora norte-americana Amanda Shapiro em sua tese “You Only Live Twice: The Representation of the Afterlife in Film” (Miami University, 2011) apresenta um interessante inventário por décadas da produção cinematográfica sobre o tema. O resultado é esse:


Década
 Filmes
Década
Filmes
1930s
8
1970s
4
1940s
11
1980s
17
1950s
7
1990s
38
1960s
6
2000s
60


A autora vai definir as representações da vida pós-morte em um espectro amplo que vai da morte do protagonista à presença de fantasmas ou anjos (o “sobrenatural” ou o “paranormal”) entre os vivos que, de alguma forma, vai submetê-los a um julgamento ou provação sob o risco da morte.

"Amor Além da Vida", 1998 - a representação
do pós-morte plástica e solipsista
Para Shapiro, enquanto na década de 1930 as narrativas são sobre experimentos científicos que dão errado como Frankstein (1931), nas década de 1940 temos a preocupação básica com a II Guerra Mundial: nas existência pós-vida vemos soldados aliados sendo recompensados no céu pelo seu esforço e sacrifício: Beyond Christmas (1940), A Guy Named Joe (1943), A Matter of Life and Death (Stairway to Heaven 1946). Mesmo nos filmes onde a guerra não é o tema como Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven Can Wait (1943), Cabin in the Sky (1943), Angel on My Shoulder (1946), The Ghost and Mrs. Muir (1947), and Sunset Boulevard (1949) demonstrariam que o aumento da produção de filmes sobre o tema nessa década viria do impacto na cultura pelos milhares de mortes nos campos de batalha.

Nas três décadas posteriores acompanhamos um decréscimo de filmes sobre o tema. É a época do crescimento da sociedade de consumo e da opulência econômica pós-guerra onde a discussão de temas metafísicos dá lugar ao hedonismo, comédias e sci fi sobre monstros e invasões da Terra por outros planetas como expressões da paranoia da Guerra Fria.

A partir da década de 1980 vemos um novo boom de produção de filmes sobre o tema vida após a morte cujo ápice está no início desse século: Amor Além da Vida (1998), After Life (1998, Japão), O Sexto Sentido (1999), American Beauty (1999), What Lies Beneath (2000), Dogma (1999), Gladiator (2000), Final Destination (2000), Um Olhar do Paraíso (2009), After Life (refilmagem, 2009, EUA), A Nightmare on Elm Street (remake, 2010), Charlie St. Cloud (2010), Enter the Void (2009), Devil (2010), e Hereafter (2010).

Shapiro relaciona esse súbito crescimento à ansiedade cultural e tecnológica produzida pelo final de milênio e a insegurança ao entrarmos em um mundo radicalmente novo moldado pela Internet  (talvez o filme “Matrix” de 1999 seja a expressão máxima disso e todos os filmes catástrofes sobre o fim do mundo nos anos 1990). Os atentados de 11 de setembro nos EUA e o fim da Guerra Fria substituída por uma ameaça viral e invisível que é o “terrorismo internacional” somente teria reforçado essa preocupação existencial com a morte e o “céu”.

Porém, é marcante que a partir do filme “Amor Além da Vida” a representação da existência pós-morte passou a ser mais “plástica” e solipsista: os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos.

Anjos caídos


Nas primeiras décadas do século XX temos uma representação do céu a partir do espaço clássico com nuvens e anjos tocando harpas. Em 1941, “Here Comes Mr. Jordan” mostra um céu organizado, hierarquizado e burocrático quando um homem é arrancado acidentalmente dessa vida em um acidente de avião. O porteiro do céu percebe o erro e tem que se reportar a seus superiores para solucionar o problema da chegada prematura do protagonista. O “céu” parece ser o reflexo da fase do capitalismo naquele momento: grandes cidades e concentração do capital em gigantescas fábricas e escritórios.

A partir da década de 1980 temos a expansão do capitalismo de acumulação flexível, terceirizado, o crescimento da financeirização e o desenvolvimento da Internet e tecnologias virtuais e de simulação. Para autores como Erick Felinto, o que caracterizaria a nova subjetividade desse novo ambiente econômico e tecnológico seria o “sujeito pneumático” (do grego “pneuma”, “espírito” ou alma”), um anjo caído, desejoso em criar seu próprio mundo para assim poder contornar as recusas que este lhe impõe. Anjos solipsistas, imersos em si mesmos em ambientes virtuais altamente plásticos e moldáveis habitados por avatares e com a possibilidade de criação do próprio cibermundo pessoal.

Por isso, o “céu” único para onde todos vão para serem julgados, hoje foi substituído por “céus” pessoais de acordo com suas vontades, caprichos e pesadelos.

É notório que em duas horas de “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu” a palavra “Deus” só é dita duas vezes. Tal entidade divina passa a ser desnecessária em um céu que parece se transformar em um inferno pessoal de formas-pensamento que materializam nossas projeções. Certa vez o escritor Stephen King disse que o inferno é a repetição. Deve ter razão, como profeticamente o grupo de rock Talking Headas anteviu na música “Heaven”:
“Todos estão tentando chegar no bar/ O nome do bar é chamado Céu/ a banda do Céu toca minha música favorita/ O Céu é o lugar onde nada acontece/ Quando esse beijo terminar/ ele irá começar de novo/ Ele não será nada diferente/ ele será exatamente o mesmo/ É difícil imaginar que nada mais / Poderia ser tão excitante, poderia ser tão divertido”.

Ficha Técnica

  • Título: Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu
  • Diretor: Lloyd Kramer
  • Roteiro: Mitch Albom (roteiro e livro)
  • Elenco: Jon Voight, Ellen Burstyn, Jeff Daniels
  • Produção: Hallmark Entertainment, Five People Productions Inc.
  • Distribuição: Lions Gate Films Home Entertainment, ABC Television
  • Ano: 2004
  • País: EUA

 

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