As representações da
vida pós-morte no cinema são um verdadeiro sismógrafo do que se passa entre os
vivos aqui na Terra. As sucessivas mudanças das representações cinematográficas
do céu e da morte ao longo das décadas parecem refletir ansiedades culturais,
avanços tecnológicos e importantes fatos históricos. Ao fazer um cruzamento do
conto “Os Fantasmas de Scrooge” de Charles Dickens com a chamada “Teoria dos
Seis Graus de Separação” o filme “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu” (Five
People You Meet In Heaven, 2004) comprova essa tese ao nos apresentar um
cenário pós-morte onde pessoas criam seus próprios “céus”, como fossem anjos
decaídos imersos em si mesmos. Seria o reflexo da virtualização atual do eu no
ciberespaço onde avatares se transformam em espécies de divindades criadoras?
As representações do cinema
sobre a existência pós-morte revelam muitas mais as mazelas da vida terrena do
que qualquer verdade extra-corpórea. Como nenhum cineasta conseguiu voltar da
morte com takes para um documentário sobre a vida após a morte, o tema acabou
tornando-se um espelho das ansiedades culturais, avanços tecnológicos e crises
religiosas e espirituais de cada época.
Apesar das representações do
céu, da morte, e da existência pós-vida se alterarem de acordo com o imaginário
de cada época, uma fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas
narrativas e variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum
espaço intermediário entre a Terra e o céu, limbo, ante-sala celestial ou a
própria plenitude celeste etc.) e é
submetido a algum tipo de julgamento (revê sua própria vida, mentores ou
entidades superioras o julgam, retorna para a vida para uma “segunda chance”
etc.).
O filme “As Cinco Pessoas Que Você
Encontra no Céu”, produzido originalmente para a TV e baseado no best-seller
homônimo de Mitch Albom, não foge a essa regra. Sintonizado com os tempos
atuais de reciclagens e pastiches, o filme é o resultado de um mix das diversas
versões de “Os Fantasmas de Scrooge” (filmes baseados no conto “A Christmas
Carol” de Charles Dickens onde um velho avarento e desgostoso com a vida recebe
a visita de três fantasmas que mostrarão a ele o valor dos bons sentimentos
morais) e a teoria dos seis graus de separação do psicólogo S. Milgram de 1967
de que no mundo atual são necessários apenas seis laços de amizade para que
duas pessoas quaisquer estejam ligadas. Hoje alguns pesquisadores defendem que
esse número teria caído para cinco.
A narrativa do filme acompanha a
vida de Eddie “Manutenção” (John Voight), um técnico do parque de diversões
Ruby Pier. Ele é um ex-combatente da II Guerra Mundial que forçosamente
abandonou o sonho de fazer uma faculdade de Engenharia por conta dos problemas
de relacionamento com seu pai e um ferimento na perna durante a guerra. Herdou
o emprego no parque do seu pai e lá permaneceu durante toda a vida, amargo,
triste e viúvo enquanto arrasta sua perna entre os brinquedos do Ruby Pier que
mantém em perfeito estado.
Tudo se mantém igual na sua
solitária rotina até que um dos novos brinquedos (um elevador que simula queda
livre que Eddie mantinha uma premonitória desconfiança) quebra e ameaça matar
uma menina. Eddie tenta salvá-la e morre esmagado pelo elevador. Eddie desperta
em um outro lugar que parece ser o Ruby Pier, mas algo está diferente: ele não
sente mais a perna e está com mais vitalidade e energia. Eddie compreende que
morreu e acredita que está no “céu”. Neste lugar ele encontrará cinco pessoas
que, de alguma forma fizeram parte da sua vida, desde pessoas mais óbvias (seu pai
e sua esposa) como personagens que ele sequer se dava conta da conexão.
Fazendo lembrar o argumento do
filme “Amor Além da Vida” (What Dreams May Come, 1998), não há exatamente um
céu, mas diversos “céus”: cada personagem que ele encontra criou seu próprio
céu com sua imaginação e preferências pessoais que teve em vida – sua esposa,
por exemplo, vive em um céu que é formado por festas de casamentos que nunca
terminam.
Mas, paradoxalmente, apesar
desse solipsismo de pessoas que estão aparentemente isoladas em suas próprias
ilusões, todos eles terão uma lição a ensinar para Eddie. Depois da lição
ensinada e da “iluminação” de Eddie, cada um sente-se hábil a reencarnar. Esse
parece ser o estranho ato falho do filme: como conciliar essa contradição entre
as ilusões onde cada um vive imerso no seu próprio “céu” e uma inexplicável compreensão
da totalidade da existência que todos parecem possuir? De que maneira todos
pretendem ensinar a Eddie de que nada na existência é desperdício e que cada
pequeno gesto conta em uma contabilidade cósmica se cada um dos espíritos está
imerso em uma ilusão pessoal? Se a iluminação espiritual é um movimento de
transcendência do próprio ego, como a mensagem principal do filme vem de
personagens que fazem exatamente o contrário?
Pós-morte no cinema
Para compreendermos esse
estranho ato falho, precisamos estudar a trajetória das representações da vida
pós-morte no cinema. A pesquisadora norte-americana Amanda Shapiro em sua tese
“You Only Live Twice: The Representation of the Afterlife in Film” (Miami
University, 2011) apresenta um interessante inventário por décadas da produção
cinematográfica sobre o tema. O resultado é esse:
Década
|
Filmes
|
Década
|
Filmes
|
1930s
|
8
|
1970s
|
4
|
1940s
|
11
|
1980s
|
17
|
1950s
|
7
|
1990s
|
38
|
1960s
|
6
|
2000s
|
60
|
A autora vai definir as
representações da vida pós-morte em um espectro amplo que vai da morte do
protagonista à presença de fantasmas ou anjos (o “sobrenatural” ou o
“paranormal”) entre os vivos que, de alguma forma, vai submetê-los a um
julgamento ou provação sob o risco da morte.
"Amor Além da Vida", 1998 - a representação do pós-morte plástica e solipsista |
Para Shapiro, enquanto na
década de 1930 as narrativas são sobre experimentos científicos que dão errado
como Frankstein (1931), nas década de 1940 temos a preocupação básica com a II
Guerra Mundial: nas existência pós-vida vemos soldados aliados sendo
recompensados no céu pelo seu esforço e sacrifício: Beyond Christmas (1940), A
Guy Named Joe (1943), A
Matter of Life and Death (Stairway
to Heaven 1946). Mesmo
nos filmes onde a guerra não é o tema como Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven
Can Wait (1943), Cabin
in the Sky (1943), Angel
on My Shoulder (1946), The
Ghost and Mrs. Muir (1947),
and Sunset Boulevard (1949) demonstrariam que o aumento da produção de
filmes sobre o tema nessa década viria do impacto na cultura pelos milhares de
mortes nos campos de batalha.
Nas três décadas posteriores acompanhamos um
decréscimo de filmes sobre o tema. É a época do crescimento da sociedade de
consumo e da opulência econômica pós-guerra onde a discussão de temas
metafísicos dá lugar ao hedonismo, comédias e sci fi sobre monstros e invasões
da Terra por outros planetas como expressões da paranoia da Guerra Fria.
A partir da década de 1980 vemos um novo boom de produção de filmes sobre o tema
vida após a morte cujo ápice está no início desse século: Amor
Além da Vida (1998), After
Life (1998, Japão),
O
Sexto Sentido (1999), American
Beauty (1999),
What Lies Beneath (2000), Dogma
(1999), Gladiator
(2000), Final
Destination (2000), Um
Olhar do Paraíso (2009),
After
Life (refilmagem, 2009, EUA),
A Nightmare
on Elm Street (remake, 2010),
Charlie
St. Cloud (2010), Enter
the Void (2009), Devil
(2010), e Hereafter
(2010).
Shapiro relaciona esse
súbito crescimento à ansiedade cultural e tecnológica produzida pelo final de
milênio e a insegurança ao entrarmos em um mundo radicalmente novo moldado pela
Internet (talvez o filme “Matrix” de
1999 seja a expressão máxima disso e todos os filmes catástrofes sobre o fim do
mundo nos anos 1990). Os atentados de 11 de setembro nos EUA e o fim da Guerra
Fria substituída por uma ameaça viral e invisível que é o “terrorismo
internacional” somente teria reforçado essa preocupação existencial com a morte
e o “céu”.
Porém, é marcante que a
partir do filme “Amor Além da Vida” a representação da existência pós-morte
passou a ser mais “plástica” e solipsista: os céus são criados por projeções
psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos.
Anjos caídos
Nas primeiras décadas do
século XX temos uma representação do céu a partir do espaço clássico com nuvens
e anjos tocando harpas. Em 1941, “Here Comes Mr. Jordan”
mostra um céu organizado, hierarquizado e burocrático quando um homem é
arrancado acidentalmente dessa vida em um acidente de avião. O porteiro do céu
percebe o erro e tem que se reportar a seus superiores para solucionar o
problema da chegada prematura do protagonista. O “céu” parece ser o reflexo da
fase do capitalismo naquele momento: grandes cidades e concentração do capital
em gigantescas fábricas e escritórios.
A partir da década de
1980 temos a expansão do capitalismo de acumulação flexível, terceirizado, o
crescimento da financeirização e o desenvolvimento da Internet e tecnologias
virtuais e de simulação. Para autores como Erick Felinto, o que caracterizaria
a nova subjetividade desse novo ambiente econômico e tecnológico seria o “sujeito
pneumático” (do grego “pneuma”, “espírito” ou alma”), um anjo caído, desejoso
em criar seu próprio mundo para assim poder contornar as recusas que este lhe
impõe. Anjos solipsistas, imersos em si mesmos em ambientes virtuais altamente
plásticos e moldáveis habitados por avatares e com a possibilidade de criação
do próprio cibermundo pessoal.
Por isso, o “céu” único
para onde todos vão para serem julgados, hoje foi substituído por “céus”
pessoais de acordo com suas vontades, caprichos e pesadelos.
É notório que em duas
horas de “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu” a palavra “Deus” só é dita
duas vezes. Tal entidade divina passa a ser desnecessária em um céu que parece
se transformar em um inferno pessoal de formas-pensamento que materializam
nossas projeções. Certa vez o escritor Stephen King disse que o inferno é a
repetição. Deve ter razão, como profeticamente o grupo de rock Talking Headas
anteviu na música “Heaven”:
“Todos estão tentando chegar no bar/ O nome do bar é chamado Céu/ a banda do Céu toca minha música favorita/ O Céu é o lugar onde nada acontece/ Quando esse beijo terminar/ ele irá começar de novo/ Ele não será nada diferente/ ele será exatamente o mesmo/ É difícil imaginar que nada mais / Poderia ser tão excitante, poderia ser tão divertido”.
Ficha Técnica
- Título: Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu
- Diretor: Lloyd Kramer
- Roteiro: Mitch Albom (roteiro e livro)
- Elenco: Jon Voight, Ellen Burstyn, Jeff Daniels
- Produção: Hallmark Entertainment, Five People Productions Inc.
- Distribuição: Lions Gate Films Home Entertainment, ABC Television
- Ano: 2004
- País: EUA
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