Depois de apresentar as batas
fritas transgênicas do McDonald’s (“Super Size me”, 2004) que jamais deterioram
e denunciar a procedência suspeita da carne dos hambúrgueres da rede de fast food
forçando-a a fazer uma massiva campanha mostrando como seus sanduíches estão
mais “verdes”, o diretor Morgan Spurlock escolhe outro alvo: o marketing
subliminar. Mais precisamente o chamado “product placement”, como a publicidade
insere produtos nas cenas de filmes e produtos audiovisuais. Em uma sequência
de “Homem de Ferro” (Iron Man, 2008) vemos o personagem Tony Stark dirigindo
velozmente um Audi conversível; ou em “Homen Aranha” vemos o protagonista Peter
Parker cruzando uma avenida de Nova York tendo ao fundo letreiros e outdoors de
diversos produtos.
“The Greatest Movie Ever Sold”
faz ao mesmo tempo um documentário e uma sátira de como os filmes
hollywoodianos deixaram de ser patrocinados para serem, agora, vendidos a
investidores para que se tornem vitrines de produtos e marcas. É o Santo Graal
do marketing: a co-promoção. A produção de “Homem de Ferro”, por exemplo, foi
associada a 14 marcas. Elas tornam-se co-produtoras e última palavra na
aprovação até em questões artísticas como roteiro e narrativa que, aliás, têm
que inventar sequências para a exposição das marcas parceiras.
A premissa do documentário é
essa: Spurlock quer saber mais sobre o mundo da publicidade, marketing e gestão
de marcas. Porém, fazer um documentário tradicional seria a maneira menos
eficaz para abrir as cuidadosamente fechadas portas das empresas dessa área.
Para conseguir realmente penetrar nesses mecanismos, decide fazer um
documentário totalmente metalinguístico: transformar as imagens da própria produção
do filme – a campanha para obter financiamento para o documentário, oferecendo
aos potenciais anunciantes “product placement” – em tema do próprio filme. O
resultado é uma hilária comédia desconstrutivista, onde o espectador acompanha
um roteiro dentro de um roteiro.
Nem Ralph Nader resistiu ao "product placement" |
Por exemplo, em certa altura é
entrevistado o ícone político e legendário defensor dos consumidores Ralph
Nader. Ele afirma que a única forma de fugir da Publicidade no mundo moderno é
nos sonhos enquanto dormimos. Então habilmente Spurlock insere um momento de
colocação de produto enquanto Nader faz uma tirada contra o “product
placement”. Spurlock faz com que o veterano militante político morda a isca e
demonstre interesse pelo produto. Esse é o ponto alto do tom metalinguístico
que surpreende Nader e, ao mesmo tempo, demonstra ser uma triste revelação: a
Publicidade se converteu em uma força mais poderosa do que a própria Política.
Spurlock consegue levantar 10
milhões de dólares em colocação de produtos. Os anunciantes acreditaram que o
valor experimental e crítico de “The Greatest Movie Ever Sold” daria
“personalidade” a suas marcas. O diretor assegura ao final que as 20 marcas
presentes não opinaram no momento da edição final do filme.
O tema em si talvez não seja
nenhuma novidade, mas a sua abordagem sim: se o “product placement” é uma
tática discreta e subliminar de tal forma que não pareça publicidade, o que
aconteceria se as marcas e produtos fossem expostas de forma tão desavergonhada
em um filme?
A contradição da Publicidade
Em um depoimento de Michael
Levine (Levine Communications Office) feita a Spurlock ele afirma que “vivemos
em um mundo onde há um cordão umbilical entre a fama e a credibilidade.
Visibilidade é igual a credibilidade. No mundo em que vivemos não podes ser
crível se não és visível”.
Proposta de Spurlock: tornar explícita a tática do "product placement" |
Esse é o mote irônico de “The
Greatest Movie Ever Sold”: o diretor quis pregar uma peça nos anunciantes ao
mostrar inserções de produtos explícitas e nada subliminares – por exemplo, Spurlock
confeccionou uma série de ternos com seus anunciantes estampados ao melhor
estilo dos macacões de pilotos de fórmula 1 para suas participações em talk
shows na TV. Ou ainda mais bizarro: todos os especialistas convidados são entrevistados
em uma rede de fast food patrocinadora do documentário...
Hoje a exposição publicitária
explícita torna-se aos olhos do espectador incômoda, ostensiva, desrespeitosa e
desacreditada. A Publicidade pertence à era das mídias de massas, padronização e
TVs abertas. Em uma época de canais fechados, Internet e mídias digitais o
velho formato do informe publicitário claramente distinto da parte editorial ou
de conteúdo soa como anacrônico, ruído, chatice de um velho mundo de “sorrisos
Colgate”, donas de casa felizes e homens bem sucedidos em carrões com mulheres
fatais.
Por isso a Publicidade cada vez
mais tentará se travestir em informação (por meio de assessoria de imprensa),
arte e estética (“product placement”), comunicação face-a-face ou em redes sociais
(flash mobs, virais e eventos) ou notícia (agenda setting, video releases para
telejornais). Daí o tema de “The Greatest Movie Ever Sold”: de tão onipresente
a Publicidade torna-se invisível e invasiva. Publicidade não autorizada.
A contradição da Publicidade
atual é ter que negar a si mesma; e seu paradoxo, tornar-se cada vez mais
invisível em um mundo de visibilidade.
A contradição do consumo
Mas há algo de mais profundo
nessa crise da era dos comerciais e da publicidade “autorizada”: a crise do
próprio mecanismo de racionalização do consumo.
Para o pensador francês Jean
Baudrillard em seu livro “Sociedade de Consumo” toda
a lógica de persuasão publicitária está numa espécie de alívio do sentimento de
culpa por meio de álibis sutilmente sugeridos ao consumidor para que ela possa
exercer livremente sua impulsividade e compulsividade. Da mesma fora que Não
cremos em Papai Noel, mas, ao menos, a sua figura nos serve com álibi para justificar
o consumismo natalino, nenhum consumidor crê em slogans, mas eles são ótimos
para justificar (para si mesmo e diante dos outros) como álibis nossos impulsos
consumistas.
Para
ele, o consumidor não é assim tão estúpido quanto pensa a teoria behaviorista
da repetição e condicionamento – “toda mentira repetida continuamente se torna
verdade”. Ele cria uma espécie de
permuta com o discurso publicitário: em troca de uma boa racionalização (ou
“Papai Noel”) que justifique o impulso consumista, ele oferece o poder de
compra.
Pois isso que parece estar em crise: as
racionalizações do tradicional discurso publicitário no formato “comercial” ou
“informe publicitário” estão explícitas ou estereotipadas demais para oferecer
uma racionalização obrigatoriamente discreta nessa barganha psíquica. A
promoção que justifica a compra por impulso (vou comprar, afinal estou
economizando) ou a rubrica “light” que serve de álibi para a gula já estão
desgastadas pela repetição, estereótipo e crise de credibilidade desses
“papais-noéis” até pelas informações críticas disponíveis em redes sociais, blogs
e portais noticiosos.
Agora os álibis ou racionalizações (os “papais-noéis”)
precisam ser mais discretos, antenados, descolados e modernos. Devem ter um ar
de engajamento (flash mobs), realista (eventos) ou relacionados com a ficção
por meio da arte e estética (product placement). Essa barganha psíquica é
necessária, pois apesar de toda pós-modernidade o mal estar e a culpa ainda permanecem
no psiquismo originado da percepção do desperdício, inutilidade e frivolidade
do consumismo. Racionalizações cada vez mais sutis e invisíveis são necessárias
para amenizar esse mal estar.
Spurlock propõe como saída tornar explícita essa
invisibilidade publicitária. Se a ela é inevitável, então que desnudada diante
de todos. Ou então, que saiamos caminhando à procura de um lugar livre das
mensagens publicitária. E de preferência que vá caminhando com os sapatos
Merrell, um dos anunciantes do filme.
Ficha Técnica
- Título: The Greatest Movie Ever Sold
- Diretor: Morgan Spurlock
- Roteiro: Jeremy Chilnick e Morgan Spurlock
- Entrevistados: JJ Abrams, Ralph Nader, Noam Choamsky, Paul Brennan, Quentin Tarantino, Donald Trump, Peter Berg
- Produção: Snoot Entertainment, Warrior Poets
- Distribuição: Sony Pictures Classics
- País: EUA
- Ano: 2011
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