Dos primeiros espaços sensoriais multimídia das discotecas dos anos 70 ao cinema 3D da atualidade, acompanhamos diante dos nossos sentidos a materialização tecnológica de toda uma dimensão mística e sagrada: a materialização dos simbolismos arquetípicos da espécie diante dos nossos sentidos por meio da convergência das mídias através das tecnologias digitais. Se no passado era necessário a ascese e disciplina espiritual para vivenciar essa dimensão metafísica, hoje as tecnologias sensorias prometem um atalho. Qual o destino da milenar aspiração mística e religiosa por transcendência num ambiente altamente tecnologizado sob o controle de grandes corporações?
Em uma aula da
disciplina Comunicação Visual na Universidade Anhembi Morumbi discutia com meus
alunos as referências visuais de cada década. Em relação aos anos 70,
apresentava as referências visuais da Disco Music: moda, comportamento e,
principalmente, os espaços multi-sensorias que eram as discotecas. Luzes
estroboscópicas, pistas de dança com luzes em movimento criando formas
geométricas randômicas, gelo seco etc. Em termos de comportamento, sabemos que,
ao longo das décadas as drogas acompanham cada tendência dentro da cultura pop.
Na era da Disco Music acompanhamos a decadência das drogas lisérgicas e a
ascensão das drogas "speed" como a cocaína. Diante de tanto estímulo
sensorial, o importante era ficar ligado e dançar a noite inteira.
Um aluno levantou uma consideração importante: em ambientes como a discoteca já não eram mais necessárias as drogas lisérgicas: os aparatos multisensorias já reproduziam os efeitos das viagens dos ácidos. Portanto, o mais importante era se manter ligado para estender a “viagem” promovida pela tecnologias sensoriais.
Discoteca nos anos 1970: as primeiras tecnologias sensoriais multimídias: a possibilidade de comercialização do Sagrado |
Essa talvez seja a
questão crucial para entendermos o porquê da decadência das drogas lisérgicas e
a ascensão das drogas “speed” (da cocaína ao ecstasy) que acompanhou as
sucessivas tendências em moda e comportamento das últimas décadas. E mais do
que isso. Nesta questão está embutida outra: se no estado alterado de
consciência do lisérgico já estava presente a possibilidade de experiências
místicas ou religiosas, será que a motivação secreta das tecnologias sensoriais
e multimídia não seria a da materialização dessa possibilidade de uma forma
mercantilizada e controlada? Em outras palavras: a virtualização das
experiências místicas e religiosas através de uma catarse tecnológica
multimídia.
No final de sua vida
o neurocientista norte-americano Thimoty Leary (considerado o guru do LSD nos
anos 60) já acreditava que os softwares dos computadores iriam substituir o LSD
como meio indutor a estados alterados de consciência. Para ele, a
televirtualidade era a palavra chave: com capacete e luvas de velcro, smart
drugs na cabeça e programas que convertam na tela as ideias presentes
no cérebro teríamos a libertação psíquica onde cada indivíduo criaria sua
própria realidade.
Não é mera
coincidência acompanharmos o crescimento das smart drugs paralelo
ao desenvolvimento das tecnologias computacionais e virtuais, dos espaços
multisensoriais de entretenimento (das danceterias habituais às raves) e da
música eletrônica cujos artistas fazem constantes associações entre o som,
transe e esoterismo new age.
Essa parece ser a
essência da tecnognose: por meio do desenvolvimento de uma tecnologia que busca
aprimorar a derradeira interface (as conexões entre as redes neuronais e redes
eletrônicas), criar uma espécie de atalho para a aspiração sagrada por transcendência.
Sob o pretexto de que as tecnologias oferecem um canal mais “limpo” e menos
“químico” do que as drogas lisérgicas, a tecnognose cria as condições para o
solipsismo (onde cada indivíduo cria seu próprio horizonte narcísico de
experiências) e, ao mesmo tempo, favorece o controle por meio de sistemas de
vigilância.
Essa ambição
tecnognóstica criaria um sujeito facilmente permeável definido pelos
pesquisadores como fractal: conectado virtualmente (e no futuro
neurologicamente) às redes digitais passa a se adaptar mimeticamente ao entorno
para sobreviver. Tal qual o fracta da geometria
(objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais
semelhantes ao objeto original), é um sujeito que se torna um nódulo que apenas
ratifica o que lhe é externo.
Materialidade das Imagens
Todas as tecnologias
de produção de imagens, do cinema ao audiovisual, irão acompanhar esse
movimento de materialização da experiência do místico e do sagrado. Por
exemplo, no cinema acompanhamos uma profunda alteração no próprio dispositivo
cinematográfico.
Com a evolução dos
recursos digitais, croma key etc., progressivamente o cinema ou a própria
câmera estão se desconectando da realidade. Se no passado, o dispositivo
cinematográfico partia do objeto real (atores, cenografia, iluminação etc.),
hoje, cada vez mais, prescinde de um referencial “realista”. Todos os recursos
digitais de edição, montagem, efeitos especiais, na medida em que se
virtualizam, estão cada vez mais materializando o imaginário (mitologia, fantasias
etc.). O espectador tem, à sua frente, a transformação em imagens de todos os
mitos, sonhos e fantasias.
Recursos tecnológicos
aprimorados como o 3D ajudam a materializar todo um universo arquetípico do
nosso inconsciente coletivo. Se no passado, era necessário a ascese, a
disciplina da meditação, o domínio de técnicas e filosofias herméticas ou a
indução a experiências místicas por meio de drogas pesadas, agora tudo o que
buscávamos por meio desses instrumentos se materializa diante de nossos olhos
numa tela.
Enquanto nossos
corpos jazem inertes na poltrona confortável de um multiplex, nossos olhos veem
a materialização das nossas aspirações arquetípicas.
O destino do Sagrado e da transcendência
No final da vida Thimoty Leary via nos computadores o substituto das experiências lisérgicas químicas |
Portanto, qual o
destino de toda a dimensão metafísica do sagrado e da transcendência num
contexto tecnológico multimídia? Se testemunhamos uma era neo-platônica onde
toda a metafísica se materializa não só para nossos olhos, mas,
cinestesicamente, para todos os sentidos, qual o destino da experiência do
místico e do sagrado?
Toda a euforia de
Thimoty Leary, que via nas tecnologias computacionais uma estrada de libertação
psíquica, o fazia desprezar um importante detalhe: as grandes corporações que,
afinal, detém o monopólio tecnológico do desenvolvimento e fabricação dos
softwares e hardwares.
Se o futuro do cinema
aponta para o fim do próprio suporte (a película) substituído por arquivos
digitais transmitidos em streaming para as salas de projeção
(realizando a convergência de todas as mídias às tecnologias computacionais),
temos, então, a perigosa tendência da concentração midiática em poucos gigantes
corporativos.
Na medida em que todo
o material simbólico arquetípico (sonhos ou aspirações por transcendência da
espécie) for materializado para fins de pura catarse ou entretenimento a
transcendência se perderá na imanência: o controle político e social das
grandes corporações. Ou, colocado de outra forma: se as drogas pesadas e
lisérgicas podiam produzir não a transcendência ou iluminação, mas a
dependência e auto-destruição, da mesma forma a materialização das imagens pode
criar uma progressiva dependência viciosa de formas de entretenimento
patrocinadas por um sistema sócio-político que a própria motivação mística e
sagrada procurava transcender.
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