domingo, fevereiro 12, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
As décadas de 70 e 80 foram marcadas pela nostalgia em filmes como "Star Wars" ou "De Volta Para o Futuro". Ao contrário, "A Vida em Preto e Branco" (Pleasantville, 1998) desmistifica a nostalgia em uma década onde ela não era mais necessária por motivos ideológicos para Hollywood. Em um intrigante roteiro metalinguístico (repleto de analogias religiosas e bíblicas), um seriado em preto e branco da década de 1950 vai se tornando colorido na medida em que os personagens descobrem a sexualidade e o acaso.
Todo filme é um documento histórico sobre o imaginário,
sensibilidade ou ideologia de uma determinada época, uma expressão cultural de
tendências e acontecimentos econômicos ou políticos que acabam criando uma
agenda de temas considerados como pertinentes para a opinião pública. E sabemos
que a indústria hollywoodiana é a principal produtora desses documentos, verdadeiros sintomas do espírito de cada
época.
Dessa maneira, na década de 1980 do governo Ronald Reagan
quando as políticas neoliberais estavam sendo implantadas a fórceps, era
necessária uma produção cultural que elevasse o orgulho e autoestima
nacionalistas feridos pelas derrotas militares no Vietnã e crise do petróleo da
década de 1970.
Vemos nesse momento um conjunto de filmes nostálgicos (“De
Volta Para o Futuro” ou “Peg Sue: Seu Passado a Espera” são exemplos) onde os
valores e cultura da década de 1950 são resgatados como as verdadeiras raízes
que foram dolorosamente perdidas; ou ainda os filmes de retro-fantasia (“Star
Wars” ou a trilogia “Indiana Jones”) que resgatavam aventuras esquemáticas dos
quadrinhos e seriados das décadas de 1940-50.
Na década de 1990 vimos o triunfo das políticas neoliberais
e a Globalização sob o impulso da financeirização e microinformática comandados
pelos EUA do presidente democrata Bill Clinton. “A Vida em Preto e Branco”
(Pleasantville, 1998), dirigido e escrito por Gary Ross, é talvez o filme
representativo dessa década. Embora a narrativa retrate os anos 90 como tempos marcados pela ameaça de catástrofes climáticas, AIDS, fome e crise de valores
éticos e morais, o filme é anti-nostálgico. Não havia naquele momento qualquer
necessidade por nostalgia já que a Globalização e a revolução digital eram
discursos messiânicos que prometiam o melhor dos futuros.
Embora o núcleo da narrativa seja um sitcom da década de
1950 chamado “Pleasantville”, Gary Ross faz uma autêntica desconstrução do
imaginário e da nostalgia em torno de uma época considerada “dourada” para a
cultura norte-americana.
Nos anos 90 o famoso sitcom “Pleasantville” é representado
pelo canal a cabo TV Time para uma audiência cativa de fãs. Um desses devotados fãs é o adolescente “nerd”
David (Tobey Maguire) que tem um obsessivo interesse pela série e vive recluso
em casa sem namoradas ou vida social. Vivendo com sua mãe divorciada (Jane
Kaczmarek) tem muitas brigas com sua irmã gêmea Jennifer (Reese Whitherspoon).
Ela é o contrário de David: popular e com vida sexual intensa.
Numa dessas brigas entre os irmãos, ela quer assistir a MTV
com seu namorado, justamente quando está para começar a “Maratona PleasantVille”.
Eles brigam pelo controle remoto até quebrá-lo. Um estranho e misterioso técnico
de TV (Don Knotts) surge com um novo controle remoto, um poderoso equipamento
de alta tecnologia que acidentalmente os teletransporta para dentro da série “Pleasantville”.
Lá eles transformam-se em personagens da série, como filhos do vendedor George
Parker (William H. Macy) e sua esposa Betty (Joan Allen).
Como "Bud" e "Mary Sue," eles passam a
viver numa residência em preto-e-branco em um típico subúrbio norte-americano
onde não existe sexo e a temperatura está sempre nos 22 graus. Lá a vida é
sempre prazerosa, os livros não têm palavras, os banheiros não têm vasos
sanitários, marido e mulher dormem em camas separadas, o time de basquete da
escola sempre ganha e ninguém jamais questiona nada. Não há acaso ou acidentes.
Tudo é clichê e repetição.
Mas como personagens provenientes do mundo dos anos 90,
quebram o equilíbrio daquele universo: quando
começam a exprimir seus próprios sentimentos e emoções, eles começam a
interferir diretamente na vida dos moradores locais modificando-a. Então o
seriado, que é em branco e preto, vai ganhando outras cores e os moradores
acabam percebendo a "anomalia" que está ocorrendo.
Ao vislumbrarem novas
coisas e acontecimentos como a chuva que era desconhecida pelos habitantes e os
sentimentos como paixão, desejo e sonhos, a vida dos moradores vai mudando
junto com o acréscimo de novas cores.
Desejos reprimidos vêm à superfície e buracos vão aparecendo no estilo de vida
dos anos 50. Os habitantes de Plesantville vão mudando suas vidas por meio de
estranhas e fascinantes formas, mas, também, conhecerão o lado escuro de tão
agradável comunidade (grupos conservadores e intolerantes que vão lançar mão
inclusive da violência para manter o status
quo em preto e branco).
Bíblia e Cores
Muitos críticos apontam semelhanças entre “A Vida em preto e
Branco” e “Show de Truman” lançado naquele mesmo ano. Em ambos os filmes os
protagonistas estão imersos em um mundo fabricado (respectivamente, de raios
catódicos e cenográfico) e com forte carga de nostalgia (respectivamente, a “inocência”
dos valores da década de 1950 e a idealização publicitária da vida da classe
média na cidade “fake” de Seahaven). Nos dois filmes, os personagens vão romper
com a ilusão da inocência. Só que enquanto em “Show de Truman” o protagonista
vai se libertar ao construir uma consciência meta e descobrir que todos os
elementos do seu ambiente são cenários controlados à distância, em “A Vida em
preto e Branco” Gary Ross vai lançar mão de variadas analogias bíblicas,
principalmente a da perda do Paraíso descrito pelo Gênesis.
Por exemplo, a
Alameda dos Namorados é o primeiro lugar em Pleasantville a ficar totalmente
colorido e é claramente associada ao Paraíso bíblico destruído pelo “pecado”. Lá,
os jovens descobrem a sexualidade no banco de trás dos carros, tomam banho no
lago totalmente nus. Através da inocência, como serem ficcionais, experimentam
fascinados o totalmente novo, com o olhar ingênuo da primeira vez. O mesmo
ocorre com David. Nunca havia conseguido um encontro com uma garota na sua vida
real. Pela primeira vez tem um encontro amoroso. Embora seja do mundo real,
experimenta a mesma situação dos seres ficcionais: a ingenuidade da primeira
vez. A composição dos planos sugere uma analogia com um paraíso, algo como o Jardim
do Éden. O simbolismo confirma-se com a oferta dos frutos proibidos a David,
proibidos por serem coloridos.
A namorada de
David, Christin, quer saber como é o mundo fora de Pleasantville. Fascinada,
ouve a descrição de David e responde excitada: “uma noite dessas uns jovens
vieram nadar aqui sem roupa nenhuma”. Em seguida oferece uma porção de
blueberries e come uma com olhar lânguido para David. Fala que há muitas outras
frutas naquele jardim. Ela levanta e corre ao encontro de uma árvore, tendo uma
enorme lua cheia ao fundo. A mão retira uma maça do galho, revelando, mais uma
vez, a enorme lua cheia. Com o olhar extático, oferece a maçã a David.
Mais tarde, o Sr.
Técnico de TV (uma espécie de Demiurgo que tenta manter a “inocência” daquele
universo televisivo) reaparece para David num monitor para acusar David de ter
comido o fruto proibido. Apresente um vídeo-tape como prova e o expulsa daquele
lugar: “você não merece estar nesse paraíso”. As imagens têm forte analogia com
o simbolismo bíblico do fruto proibido no Paraíso, associado ao simbolismo
místico da Lua – símbolo da feminilidade. Como símbolo da fecundidade está
associada às águas que provocam o início da criação. Coincidência ou não, a
próxima sequência é a da “chuva autêntica” em Pleasantville que marcará o ápice
das transformações na cidade.
Ao longo do filme
há diversas analogias bíblicas (e heréticas) como quando a mãe de Mary Sue
experimenta pela primeira vez um orgasmo começa a ver sua casa colorida e a
árvore do jardim da casa começa a pegar fogo (fato extraordinário pois não há combustão em
Pleasantville). A imagem é simbolicamente forte, numa clara referência
bíblica à forma como Deus se manifestava a Moisés: um arbusto que queimava, mas
nunca se consumia.
Preto e Branco versus colorido
Contraste entre as cores e o preto-e-branco é o ponto
central da narrativa do filme, esse contraste vai ser o ponto de partida de uma
série de aspectos que o filme explora. Porém há uma sutil diferença entre a cor
que surge no mundo ficcional de Pleasantville e a do mundo real dos anos 90: a
pigmentação em technicolor. À medida que os personagens da série vão
descobrindo as emoções e o inesperado dentro da previsível rotina da cidade televisiva,
eles vão adquirindo cores, porém e
tonalidade retro.
Simbolismos religiosos como a árvore que nunca se consome
A chegada de David e Jennifer a esse mundo vai criar
comportamentos disfuncionais aos padrões esquemáticos de Pleasantville. O
surgimento das cores vai ocorrer a partir de dois tipos de desvios. Primeiro, a
descoberta da sexualidade e das emoções que Jennifer vai provocar. E, segundo,
a quebra da rotina ou da ordem mecânica dos eventos provocada por David.
A cor pontuando essa meta-narrativa surge, por exemplo, na
hilária sequência do personagem Bill Johnson (Jeff Daniels), proprietário do
restaurante local. Sem querer, David altera a ordem das tarefas do restaurante.
Ao chegar tarde ao trabalho, encontra Bill estático, compulsivamente passando
um pano no balcão até desgastar a tinta. O personagem simplesmente não pode
começar as atividades enquanto David não chegar. Ou quando a produção de
cheaseburguers cessa porque David não colocou primeiro a alface no balcão da
cozinha. Sem conseguir lidar com o imprevisto, Bill entra num estado
paralisante, chegando, mais tarde, à conclusão de que tudo é que faz é uma
repetição sem sentido. A partir daí passa a interessar-se por arte (em
particular a modernista, pela imprevisibilidade de formas e cores), trazendo a
cor para o seu restaurante.
Mas há um mistério: por que todos estão tornando-se
coloridos, menos David e Jennifer apesar de serem eles os agentes de
transformação naquele mundo outrora sem cores? Descobre-se que a aquisição das
cores não decorre simplesmente em cometer um ato desviante em relação às normas
familiares esquemáticas das “soap operas” da década de 50. Mais do que isso, é
necessário um olhar espontâneo e ingênuo da descoberta, o olhar da primeira
vez, abrindo a consciência para a nova experiência. David e Jennifer somente
vão adquirir as cores quando experimentarem aquilo que lhes falta. Em Jennifer,
a leitura e a relação mais madura com a vida; e em David quando ele toma a
atitude de enfrentamento diante dos fatos da vida, saindo da sua redoma
confortável criada pelo culto ao conformismo e a previsibilidade da série.
Este é o subtexto por trás da estória narrada pelo filme:
David e Jennifer partem para essa viagem através da realidade virtual num mundo
ingênuo, pois precisam dessa ingenuidade (perdida nos caóticos e niilistas anos
90) para recuperarem um olhar da primeira vez que os faça introjetar uma
experiência real que abra a consciência.
Portanto, o roteiro de Gary Ross rompe com a ingênua nostalgia
retro ao propor uma via de dois sentidos entre as décadas de 1950 e 1990: se na
série televisiva do passado os personagens necessitam da perda da inocência
para terem um mundo colorido, nos anos 1990 necessitamos de uma especial forma
de inocência – o olhar da primeira vez que rompa com a banalização e o vazio.
Ficha Técnica
Título: A Vida em preto e Branco (Pleasantville)
Diretor:
Gary Ross
Roteiro:
Gary Ross
Elenco:
Tobey Maguire, Jeff Daniels, Joan Allen, Reese Witherspoon, William Macy, Don
Knoots
Produção:
New Line Cinema, Larger Than Life Productions
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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