Ao contar a história da transição do cinema mudo para o falado, ironicamente por meio da estética em preto e brancob e sem som, o filme "The Artist" (indicado ao Oscar de melhor filme) faz diversas referências ao mais famoso resistente à sonorização: Charlie Chaplin. Ele acreditava que tal inovação destruiria a "abstração cômica" forma que, segundo ele, universalizaria o cinema. Mas havia uma dimensão política por trás dessa resistência: atacado pelas elites culturais na década de 1920 pelo "baixo nível" dos seus filmes voltados para trabalhadores, imigrantes e desempregados via na sonorização o enquadramento político e moral decisivo dos cinema pelos grandes estúdios: "os ricos compram o barulho", denunciava.
Ao assistir ao filme "The Artist" (que concorrerá ao Oscar de Melhor Filme, Ator, Roteiro, entre outras indicações) não há como não deixar de lembrar de Charlie Chaplin pelas diversas referências que a narrativa faz, principalmente as sequências do protagonista empobrecido vagando pelas ruas com o fiel terrier Uggie o acompanhando. As referências a Chaplin são propositais já que, assim como ele, o protagonista George Valentim resiste o quanto pode à tecnologia da sonorização dos filmes. Mas se em "The Artist" a resistência de Valentim é por narcisismo e orgulho (quintessência do galã dos filmes mudos), na História real a resistência de Chaplin foi principalmente por motivos estéticos e políticos.
Isso ficou claro nas informações expostas ao público em uma mostra chamada "Chaplin e sua Imagem" no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no ano passado. Com 200 fotografias, cartazes, documentos inéditos a Mostra apresentava a trajetória dos 54 anos de carreira do cineasta inglês Charlie Chaplin, desde os primeiros filmes pela Keystone de Nova York em 1914. Caminhando pelas quatro salas cedidas pelo Instituto para a Mostra, logo de cara fomos surpreendidos com a gênese do personagem Carlitos nos estúdios da Keystone: mais rude, agressivo e amargo, bem diferente da imagem do “adorável vagabundo”, idealista, romântico e nobre dos filmes da fase da United Artists (1919 a 1939).
No meio do trajeto, encontramos todo um painel dedicado ao filme “Luzes da Cidade”, um filme ainda mudo realizado quatro anos após o primeiro filme sonorizado da história (“The Jazz Singer”, 1927). Chaplin era um grande resistente à introdução do som no cinema e “Luzes da Cidade” foi uma resposta com uma produção de interessantes aperfeiçoamentos técnicos, tornando-o um dos dez melhores filmes na história do cinema para diretores como Orson Welles e Stanley Kubrick.
Dentro desse painel referente a esse filme e à
resistência de Chaplin à sincronização sonora das falas no cinema encontramos
esse interessante texto que transcreve seu depoimento à época:
“O silêncio - algo que não pode ser comprado - quantos de nós saberíamos defrontá-lo? Os ricos compram o barulho. No entanto, nosso espírito se realiza quando estamos mergulhados no silêncio natural - esse silêncio que jamais recusa aqueles que o procuram. O som aniquila a grande beleza do silêncio (...) Não creio que minha voz possa contribuir com as minhas comédias. Pelo contrário, ela destruiria a ilusão que venho tentando criar, a ilusão de uma pequena silhueta que simboliza a graça... não uma pessoa real, mas uma ideia bem humorada, uma abstração cômica” (Chaplin contre le filme parlant, Cinée, 15 de julho de 1929).
Muitos críticos na época acreditavam que a
sonorização do cinema seria uma regressão estética. Primeiro porque acreditavam
que depois de Griffith e Eisenstein o cinema já havia adquirido uma autonomia estética
ao construir uma narrativa própria, visual. O som faria regredir o cinema ao
“teatro filmado”. Segundo, que o cinema era dotado de uma riqueza formal tão
grande que deveria ser libertado da obrigação de contar histórias. Essa
discussão demonstrava que o cinema tinha nascido dividido entre a vocação
documental e realismo dos Lumiere e o ilusionismo e formalismo de Méliès com os
seus delírios barrocos e trucagens em “Viagem à Lua”(Le Voyage dans La Lune,
1902).
Para Chaplin, a questão tinha um caráter mais
humanista: ele temia no cinema falado as pretensões universalistas do
meio fossem perdidas. Achava que a linguagem visual era universal, rompendo com
as restrições linguísticas dos idiomas. O que ele denominava de “abstração
cômica” era a busca de uma linguagem universal baseada na comédia corporal e
nas gags visuais, um humor que transcendesse a própria linguagem.
Porém, havia algo mais na desconfiança de Chaplin em
relação à sonorização do cinema. Quando afirmou que “os milionários compram o
barulho” ele vislumbrou uma dimensão sócio-política: por trás do advento da
sincronização das falas estava o início da concentração econômico-financeira
dos grandes estúdios, o rígido controle centralizado da linha de produção (e
principalmente dos roteiristas) que a nova tecnologia traria e o enquadramento
moral e temático dos filmes que culminou com o chamado “Código Hays” em 1934.
Chaplin:
o inimigo público número um
Em meados da década de 1920 o jornal “Detroit News”
estampava uma escandalosa manchete: “Pessoas de Baixo Nível Só Gostam de
Charles Chaplin e Mary Pickford, Diz Pastor”. Não é à toa. Na segunda década do
século vinte, o humor “slapstick” chega à maturidade e impacto com Chaplin,
Harold Loyd e Buster Keaton. As travessuras e anarquia do vagabundo provocador
atraíram a ira dos Reformistas da classe média. O chamado “humor-pastelão” era
nitidamente urbano, sempre girando em torno de operários, imigrantes
desempregados, gente que vivia no limite entre a legalidade e contravenção para
sobreviver.
Eram os heróis da classe trabalhadora. Como afirmava
Mack Sennett, os filmes ridicularizavam as elites e autoridades: “Eu gostava
sobretudo da redução da autoridade ao absurdo, da noção de que sexo podia ser
divertido e dos insultos ousados atirados contra a pretensão”, dizia sobre os
seus curtas da Keystone. No slapstick o herói é sempre perseguido, chutado,
molhado, surrado, desancado e maltratado. Expressava o cotidiano das mal
educadas e grosseiras classes baixas que lotavam os quentes e esfumaçados
Nickelodeons (salas de cinema cujo nome veio do preço popular das entradas, um
níquel).
Segundo estudos por cinéfilos de Nova York de 1911,
72% do público era da classe trabalhadora e aqueles que trabalhavam mais horas
eram os que mais frequentavam. Apenas 3% eram considerados de classes mais
abastadas.
“Nos cinemas, essa sensação democrática era
palpável. O cinema emancipou o poleiro e criou uma grande plateia, que era nada
mais, nada menos do que o povo sem distinção de classe", opinou a Motion Picture
World” E o articulista da publicação alertava: “os filmes tornar-se-ão cada vez
mais um poderoso fator no crescimento da consciência de classe” (Veja GABLER, Neal. Vida-O Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 52).
Pronto! Esse era o subtexto por trás do humor
anárquico de Chaplin e de toda sua geração que passou a preocupar as elites
culturais.
A
transformação da experiência cinematográfica
Apesar da experiência aparentemente dispersiva da plateia
nos Nickelodeons (trocavam carícias durante os filmes, comiam amendoins,
frutas, fumavam, andavam de lá para cá e berravam para a tela) pesquisadores
como o alemão Dieter Prokop e a sua “Sociologia do Filme” e o italiano Massimo
Canevacci com a “Antropologia do Cinema” convergem para a mesma conclusão: o
filme “slapstick”, através da gargalhada, trazia os desejos reprimidos diante
do sistema de dominação para o pré-consciente, podendo desenvolvê-las de forma
progressiva diante da realidade. A estética poderia servir de mediação com o
princípio de realidade para potencialmente conscientizar os desejos e trazer
reflexão.
Como bem percebeu Thomas Schatz no livro “O Gênio do
Sistema”, o cinema falado exigia um controle ainda mais rígido nas fases de
produção e roteirização, enquadrando cada vez mais a espontaneidade e o brilho
individual. Sem falar que, a partir da década de 1930 as classes populares são
expulsas dos cinemas seja pela depressão econômica ou pelo controle do
comportamento do público nas salas. As classes médias ascendem ao cinema e, por
motivos que discutimos em postagem anterior (veja links abaixo) elas passam
exigir maior “realismo” (som, cor, verossimilhança, etc).
Isso faz alterar radicalmente a experiência
cinematográfica. Na fala de Chaplin citada acima percebemos a sua desconfiança com
a transformação do conceito de “identificação”
do espectador com a ilusão do cinema e que se transformou progressivamente em “contraposição” como afirma Massimo Canevacci.
Se no filme “slapstick” de Chaplin o espectador identificava-se com o personagem do vagabundo e via no “happy end” característico desse gênero (os finais denominados “the last minute rescue” ou “a salvação no último instante”) como a possível redenção. “Com a sua adocicada ingenuidade, ele [o “happy end”] parecia preservar a utopia do perene restabelecimento da justiça e da felicidade” (CANEVACCI, Massimo. Antropologia do Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 149.).
A “ilusão” que Chaplin procurava é o elemento
projetivo presente na clássica identificação: projetar os desejos e sonhos do
espectador numa dimensão estética, utópica, onírica e, por isso mesmo, anárquica
em relação ao princípio de realidade.
Com o realismo trazido pelo som, cor e verossimilhança
dos roteiros, o espectador deverá se resignar cada vez mais com o fato de não
mais poder viver, nem mesmo no nível da evasão imaginária, seus desejos e
sonhos. Ao aproximar as imagens da tela à representação realista, aniquila toda
energia ou impulso utópico: quando o personagem cai, ele cai mesmo, sangra,
transpira, suja-se. Os carros não sobem mais escadarias nas loucas perseguições
do slapstick. Se isso ocorre nos filmes atuais é devido à performance e
habilidade do herói ou durabilidade da marca do veículo, claramente exposta no
merchandising.
Como “contraposição”, os sonhos não são mais
redimidos, mas denegados pelo controle rígido dos roteiros pelos sucessivos
códigos morais a partir do Código Hays: quem quebra a ordem (política,
institucional, moral, familiar etc.) tem que ser punido no final ou ao longo da
narrativa. Excessos de sonhos e felicidade têm que ser reduzidos em doses
homeopáticas para dar um aspecto mais “realista” à trama. Tudo para que, ao
acender as luzes do cinema, o espectador volte resignado para a realidade que o
aguarda.
Postagens Relacionadas