quarta-feira, fevereiro 08, 2012

Uma Mercadoria Chamada Cometa Halley

Vinte e seis anos depois do último grande fenômeno astronômico (a passagem do cometa Halley pela imediações da Terra cercado mensagens "new age" de paz, boas novas e otimismo), agora as notícias sobre a suposta visita de um misterioso corpo celeste com diversos nomes para as mais variadas crenças (Nibiru, Planeta X, Hercólobus, Marduk, planeta “Chupão” etc.) vem acompanhado de previsões apocalípticas. Por que essa mudança de sensibillidade e simbolismos em relação a fenômenos celestes? Talvez a resposta esteja na mercantilização dos fenômenos celestes pela indústria do entretenimento.


Após o último post sobre o filme “Another Earth” (veja links abaixo), lembrei-me de um artigo de minha autoria de priscas eras, do tempo em que era repórter de Economia no Jornal “A Tribuna de Santos”, lá pelos idos de 1986. 

Apesar de trabalhar na época em uma editoria de assuntos tão áridos, meu verdadeiro interesse era mesmo pela área cultural. Numa dessas puladas de cerca dos limites da editoria, consegui emplacar um artigo no suplemento de cultura do jornal, um texto que refletia sobre a histeria mercadológica que envolvia um fenômeno astronômico de importância naquele ano: a passagem do cometa Halley que de tão próximo da Terra seria visível a olho nu.

O que chamou a atenção naquele ano foi a onda de produtos e mensagens das mais diversas áreas (desde Astrologia e Espiritualismo até Moda, Turismo e HQs) que, em linhas gerais, associavam ao fenômeno astronômico prenúncios de boas novas, otimismo, renovação e saúde para a espécie humana. O que tornou o cometa Halley um fenômeno de “New Age” (movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar autoajuda, psicologia motivacional, parapsicologia, esoterismo e física quântica).

Curioso, pois se em toda a História a passagem de corpos celestes era interpretado como prenúncio de guerras, pestes e cataclismos (e na última passagem do Halley em 1910 não foi diferente – chegou-se a falar que o gás da calda do cometa envenenaria a atmosfera da Terra, criando um onda de pânico), em 1986 o cometa se transfigurou em arauto de novas e promissoras eras.

Mas por que 26 anos depois as notícias sobre a passagem de um misterioso corpo celeste com diversas nomeações (Nibiru, Planeta X, Hercólobus, Marduk, planeta “Chupão” etc.) é  marcada por profecias apocalípticas? 

Lendo aquele artigo de 1986 pode-se arriscar uma tese: naquela época em que o movimento ecumênico da New Age crescia, o cometa Halley foi investido de um simbolismo que ajudou a expandir a consciência da “Nova Era” que seria um dos pilares ideológicos da Globalização pós-queda do Muro de Berlin em 1989.

Como desenvolvemos em postagem anterior sobre o filme “2012” (veja links abaixo), a onda de recentes filmes-catástrofes sobre eventos astronômicos ou climáticos corresponderia à necessidade da New Age ter a sua própria Escatologia: assim como as religiões tradicionais têm cada qual seu Apocalipse ou Juízo Final, o ecumenismo da chamada Nova Era também passaria a ter uma espécie de “base teológica” para se constituir na nova religião sem pátria, global, feita a partir do pastiche dos restos das religiões do passado. 

Abaixo transcrevo o artigo de 1986 “Uma Mercadoria Chamada Halley”. É um pouco longo, mas acho que vale a pena.


UMA MERCADORIA CHAMADA HALLEY
Wilson Roberto Vieira Ferreira
(Jornal "A Tribuna de Santos", 14/03/1986)

Halley... olhe para cima! Ele está chegando e prometendo um verdadeiro show nas áreas mais díspares da cultura de massas, tais como astrologia, astronomia, turismo, moda, HQs, samba-enredo de escola de samba etc. O que fascina no cometa Halley? Tudo, menos o próprio cometa em si enquanto fenômeno astronômico. A mercadoria Halley vai se constituindo numa invenção para atender às expectativas de cada público que quer ver nele aquilo que melhor lhe convém: astronomia, o lado científico; astrologia, o místico e onírico e assim por diante. Do fenômeno celeste Halley há muito tempo perdeu-se uma linguagem inconsciente e simbólica que disseminava medo e terror.

Do pomposo espetáculo científico-visual da astronomia aos bons presságios para todos profetizados pelos astrólogos de plantão de revistas femininas e jornais, da ciência ao mito construído em torno do Halley, existe algo em comum: a produção de uma imagem ou aura de saúde, bem-estar, enfim de um otimismo pasteurizado e mágico, sem maiores explicações. Diferente de hoje as pessoas acreditavam que os cometas traziam guerras, peste, tragédias, ou seja, todo um conjunto de fatos que iriam mudar a vida para pior.

Ainda hoje podemos encontrar muitas pessoas que, ao dar uma topada no pé da mesa, amaldiçoam o cometa como o responsável. Supertição? Prefiro crer que este medo é simbólico e fazia parte de uma linguagem cotidiana rechaçada pela cultura de massas para dar lugar à florida linguagem da propaganda. Hoje a mercadoria Halley atende às expectativas do consumidor que correspondem a um espírito de época individualista e narcisista que procura afastar qualquer sentimento que ponha em perigo o Eu realçado pelas miçangas da cultura de massas. A princípio parece ser difícil crer que um simples cometa no céu traga tantas complicações. Porém, já temos a primeira pista para compreendermos a questão: por que no passado (pelo menos na sua última passagem por nossas imediações em 1910) o cometa ou qualquer fenômeno celeste era acompanhado pelo medo e terror e hoje, por um otimismo pasteurizado?

Só supertições?

Hoje os astrônomos nos ensinam que os cometas não passam de bólidos de gelo recheados de granito e metal. Usam a expressão “não passam de” como resposta às crendices e supertições que envolviam o fenômeno no passado. Será que aquelas crenças eram apenas supertições tolas de gente ignorante e graças à ciência conseguimos superar aquele estágio? A ciência liquida rápido demais o problema ao querer interpretar aquelas crenças ao pé da letra.

O terror e o medo que envolviam os fenômenos celestes não se devia à ignorância popular, mas representavam a expressão de uma dimensão dos indivíduos no cotidiano. Explico. O terror e o medo não eram emoções brutas, mas simbólicas, uma fala que expressava o inominável, o misterioso e o imprevisível no cotidiano. O cometa era apenas um suporte material para expressar esta fala. Procurando explicar melhor, o medo não era tanto pelo cometa, mas pelas questões cotidianas que ele suscitava – o conjunto de sensações, sentimentos e percepções que hoje a cultura de massas despreza, jogando no lixo sob o rótulo de “baixo astral”.

E o que é esta dimensão desconhecida no cotidiano? Como o próprio nome diz, é aquele conjunto de fatos que fogem de uma nomeação, a uma explicação lógica e previsão seguras: morte, guerras, assassinato, violência, angústia, perversão, solidão, melancolia, sexualidade, desejo, suicídio, ou seja, toda aquela dimensão que constitui o subterrâneo do dia-a-dia. Eros e Thanatos, pulsão de vida e de morte, toda a dimensão do cotidiano habitada por demônios, maus espíritos, bruxas, perversões da carne e toda uma simbologia que tem a ver com a gênese e destino humanos.

Festa e Melancolia

A festa é um bom exemplo desta natureza ambígua do cotidiano. O leitor já andou pela rua e pelos bares num final de madrugada de sábado ou domingo? É evidente a sensação de “fim de feira” que se experimenta: melancolia, músicas mais lentas ou “down”: blues, sambas de fossa etc. Por que essa melancolia após a excitação e alegria? O cansaço físico ou a tristeza pelo final da festa é uma explicação que não satisfaz, se tomarmos esse conjunto de fatos e a própria festa como simbólicos.

Segundo Henri Lefebvre (LEFEBVRE, Henri, El Cotidiano em El Mundo Moderno. Madrid: Alianza editorial, 1980), num mundo fugidio em que o trabalho burocratizado e fragmentado perde qualquer sentido para o indivíduo (assim como o próprio lazer e cultura mercantilizados), na medida em que ele não consegue apropriar-se de seu ser natural (corpo, desejo, tempo e espaço expropriados pela velocidade e administração do tempo e espaço cotidianos) a única oportunidade de apropriação ou busca de uma emoção sentido e marca está nas festas. Por isso ela seria marcada por dois elementos dramáticos: a violência (contra o próprio corpo por meio do álcool ou desequilíbrio alimentar) e sexualidade, talvez verdadeiras situações-limites nas quais o indivíduo parece recuperar o que lhe foi roubado pela vida. O mal-estar viria terminado o efeito de catarse ou espetáculo.

Outro exemplo? Qual a imagem do Carnaval construída pelos veículos de comunicação? Vibração e alegria espontâneas e gratuitas, fonte de saúde e lazer. Sendo o carnaval, como toda festa na modernidade, também assentado nessa ambiguidade, esta imagem torna-se difícil de ser sustentada por inteiro. Além daqueles elementos apontados pelo francês Lefebvre – violência (no carnaval simbolizada por bisnagas, martelos de plástico, bambuchas etc.) e sexualidade, encontramos uma intenção nas pessoas em fugir à solidão e monotonia do cotidiano, descobrindo novas pessoas, experimentando novas situações. Porém, sempre uma apropriação fugaz, como tudo no cotidiano moderno.

Terminada a excitação sobrevém o mal-estar difuso e inexplicável que nunca aflora à consciência do indivíduo, a não ser como impressões confusas e pouco claras. Este nexo festa/dor encontraremos nas próprias origens das festas na cultura ocidental: a tragédia grega. Misto de alegria e sensação trágica em torno de uma representação teatral, o público (coro) saia fora de si mesmo numa espécie de efeito alucinógeno proporcionado pelo clímax dos cânticos e rituais, a fim de se integrarem de volta à natureza e superar a dor que representa a individuação ou a socialização.

A Fala dos cometas, dráculas...

Assim como o cometa surgindo de forma imprevisível, rasgando o céu noturno, da mesma maneira manifesta-se essa dimensão desconhecida do cotidiano. É interessante a associação simbólica que esta fala antiga dos fenômenos celestes realizava: cometa/noite – inominável/subterrâneo. Vale lembrar que a literatura clássica de terror fazia idêntica associação entre o impulso sexual, natureza, emoções – inexplicável/seres fantásticos, monstros – noite e terror. A produção simbólica desta literatura sempre associava os impulsos naturais humanos com seres da noite incontroláveis e ameaçadores como Drácula (sexo e perversão sado-masoquista realizados por meio do sangue), Frankenstein (o medo do homem diante da sua própria criação e do futuro) etc.
Cometas, dráculas e frankensteins materializavam essa fala inconsciente e alucinada de nossos antepassados. Parece difícil acreditar que sensações ou questões cotidianas despertassem tanto medo, quando hoje a astronomia desmistifica aquelas supertições e a psicologia aparentemente dá cabo às nossas ansiedades por meio de terapias bioenergéticas, como se tudo não passasse de um problema do indivíduo solitário e não do indivíduo imerso em estruturas antropológicas e histórico-sociais do cotidiano.

Por que o cometa sorri?

Pois bem, descobrimos que o medo pelo cometa no passado não era apenas supertição, mas uma elaborada produção simbólica e, por isso, refletindo uma faceta subterrânea da existência. Então, por que hoje o cometa parece sorrir prometendo um espetáculo?

Ao contrário de 1910, o cometa Halley não aparece para nós em seu estado bruto, ou seja, como puro fenômeno astronômico, mas como mercadoria. Como mercadoria ele é produzido especialmente para ser vendida e consumida com um rótulo, uma imagem atraente que promova o turismo, revistas, telescópios, sapatos, iogurtes etc.

Colocado isso pergunto: por que as pessoas compram mercadorias? O bom senso diria: para serem satisfeitas necessidades tais como lazer, alimentação, conforto, ou seja, valores de uso. Mas é apenas uma aparência, as mercadorias não atendem apenas a necessidades naturais, pois, caso isso fosse verdade, as mercadorias não seriam vendidas com a intensidade ideal para a reprodução ótima do capital e dos seus lucros.

As mercadorias têm uma outra dimensão, atraente, que oferecem como uma dádiva fantasias, símbolos, aventuras, magia e todo um mundo ideal que não existe no dia-a-dia. Este é o seu valor simbólico e comprando você também adquire a ideia de otimismo, saúde e alegria. Se, como vimos, o cotidiano é dotado daquela ambiguidade antropológica, a imagem da mercadoria a elimina da consciência dos consumidores ao oferecer um mundo limpo de problemas e a oportunidade com que se identificar, pegar e se apaixonar. A mercadoria é seu objeto-paixão.

Halley, cachorros, tartarugas...

Transformado em objeto-paixão, o cometa Halley atende a necessidade psíquica do consumidor incomodado pelo mal-estar do seu dia-a-dia. Ele quer apenas objetos, coisas mudas e surdas para serem apenas apropriadas, coisas que não o contradigam e que, pelo contrário, sejam um espelho doméstico narcisista diante do qual o consumidor se mire e veja nele aquilo que ele quer ver e não o que existe na realidade.

Para Baudrillard (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Perspectiva, 1973), esta tendência a transformar tudo em objetos atingiria até os animais domésticos. Gatos, cachorros e tartarugas seriam espelhos perfeitos que emitem o que o dono deseje, verdadeiros depositários de afeto. Por isso são privados de sexo, apesar de vivos. Incomodam quando demonstram suas necessidades vitais, iniciativa própria ou animalidade. Fazendo paralelo com esta ideia polêmica, a mercadoria Halley conteria o mesmo mecanismo: limpo de pulsão de morte, simbolismo e ambivalência, o cometa Halley nada comunica (ao contrário do passado), porque é produzido como objeto de coleção privada e colocado ao mesmo nível dos demais objetos como uma pasta de dentes, por exemplo.

Para completar o seu caráter de objeto-paixão, a publicidade em torno do Halley transmite ao consumidor segurança e domínio, exatamente qualidades das quais o cotidiano moderno das grandes cidades não é dotado. Se no passado os fenômenos celestes transmitiam medo e terror (como vimos, porque eles comunicavam às pessoas ansiedades e angústias que elas experimentavam no dia-a-dia de trabalho e diversão), hoje eles são aparentemente dominados pelo consumidor: telescópios, mapas celestes, uma avalancha de informações científicas, horários programados para melhor observação etc. Graças a esse prazer pela manipulação de um efeito de conhecimento, parece levar a crer que o mistério foi finalmente afastado numa prática circunscrita ao espaço doméstico. Porém, fora desse espaço doméstico artificial de manipulação de objetos sem vida, de tranquilo consumo individual onde a subjetividade se realiza na maior quietude, as questões de sempre do cotidiano continuam.


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