Vinte e seis anos depois do último grande fenômeno astronômico (a passagem do cometa Halley pela imediações da Terra cercado mensagens "new age" de paz, boas novas e otimismo), agora as notícias sobre a suposta visita de um misterioso corpo celeste com diversos nomes para as mais variadas crenças (Nibiru, Planeta X, Hercólobus, Marduk, planeta “Chupão” etc.) vem acompanhado de previsões apocalípticas. Por que essa mudança de sensibillidade e simbolismos em relação a fenômenos celestes? Talvez a resposta esteja na mercantilização dos fenômenos celestes pela indústria do entretenimento.
Após o último post sobre o filme “Another Earth” (veja links abaixo), lembrei-me de um artigo de minha autoria de priscas eras, do tempo em que era repórter de Economia no
Jornal “A Tribuna de Santos”, lá pelos idos de 1986.
Apesar de trabalhar na época em uma
editoria de assuntos tão áridos, meu verdadeiro interesse era mesmo pela área
cultural. Numa dessas puladas de cerca dos limites da editoria, consegui
emplacar um artigo no suplemento de cultura do jornal, um texto que refletia
sobre a histeria mercadológica que envolvia um fenômeno astronômico de
importância naquele ano: a passagem do cometa Halley que de tão próximo da
Terra seria visível a olho nu.
O que chamou a atenção naquele ano foi a onda de produtos e
mensagens das mais diversas áreas (desde Astrologia e Espiritualismo até Moda,
Turismo e HQs) que, em linhas gerais, associavam ao fenômeno astronômico prenúncios de
boas novas, otimismo, renovação e saúde para a espécie humana. O que tornou o
cometa Halley um fenômeno de “New Age” (movimento espiritual buscando
a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar autoajuda, psicologia motivacional,
parapsicologia, esoterismo e física quântica).
Curioso, pois se em toda a História a passagem de corpos
celestes era interpretado como prenúncio de guerras, pestes e cataclismos (e na
última passagem do Halley em 1910 não foi diferente – chegou-se a falar que o
gás da calda do cometa envenenaria a atmosfera da Terra, criando um onda de
pânico), em 1986 o cometa se transfigurou em arauto de novas e promissoras
eras.
Mas por que 26 anos depois as notícias sobre a passagem de
um misterioso corpo celeste com diversas nomeações (Nibiru, Planeta X,
Hercólobus, Marduk, planeta “Chupão” etc.) é marcada por profecias apocalípticas?
Lendo aquele artigo de 1986 pode-se arriscar uma tese:
naquela época em que o movimento ecumênico da New Age crescia, o cometa Halley
foi investido de um simbolismo que ajudou a expandir a consciência da “Nova
Era” que seria um dos pilares ideológicos da Globalização pós-queda do Muro de
Berlin em 1989.
Como desenvolvemos em postagem anterior sobre o filme
“2012” (veja links abaixo), a onda de recentes filmes-catástrofes sobre eventos astronômicos ou
climáticos corresponderia à necessidade da New Age ter a sua própria
Escatologia: assim como as religiões tradicionais têm cada qual seu Apocalipse
ou Juízo Final, o ecumenismo da chamada Nova Era também passaria a ter uma
espécie de “base teológica” para se constituir na nova religião sem pátria,
global, feita a partir do pastiche dos restos das religiões do passado.
Abaixo transcrevo o artigo de 1986 “Uma Mercadoria Chamada
Halley”. É um pouco longo, mas acho que vale a pena.
UMA MERCADORIA CHAMADA HALLEY
Wilson Roberto Vieira Ferreira
(Jornal "A Tribuna de Santos", 14/03/1986)
Halley... olhe para
cima! Ele está chegando e prometendo um verdadeiro show nas áreas mais díspares
da cultura de massas, tais como astrologia, astronomia, turismo, moda, HQs,
samba-enredo de escola de samba etc. O que fascina no cometa Halley? Tudo,
menos o próprio cometa em si enquanto fenômeno astronômico. A mercadoria Halley
vai se constituindo numa invenção para atender às expectativas de cada público
que quer ver nele aquilo que melhor lhe convém: astronomia, o lado científico;
astrologia, o místico e onírico e assim por diante. Do fenômeno celeste Halley
há muito tempo perdeu-se uma linguagem inconsciente e simbólica que disseminava
medo e terror.
Do pomposo espetáculo científico-visual da astronomia aos
bons presságios para todos profetizados pelos astrólogos de plantão de revistas
femininas e jornais, da ciência ao mito construído em torno do Halley, existe
algo em comum: a produção de uma imagem ou aura de saúde, bem-estar, enfim de
um otimismo pasteurizado e mágico, sem maiores explicações. Diferente de hoje
as pessoas acreditavam que os cometas traziam guerras, peste, tragédias, ou
seja, todo um conjunto de fatos que iriam mudar a vida para pior.
Ainda hoje podemos encontrar muitas pessoas que, ao dar uma
topada no pé da mesa, amaldiçoam o cometa como o responsável. Supertição?
Prefiro crer que este medo é simbólico e fazia parte de uma linguagem cotidiana
rechaçada pela cultura de massas para dar lugar à florida linguagem da
propaganda. Hoje a mercadoria Halley atende às expectativas do consumidor que
correspondem a um espírito de época individualista e narcisista que procura
afastar qualquer sentimento que ponha em perigo o Eu realçado pelas miçangas da
cultura de massas. A princípio parece ser difícil crer que um simples cometa no
céu traga tantas complicações. Porém, já temos a primeira pista para
compreendermos a questão: por que no passado (pelo menos na sua última passagem
por nossas imediações em 1910) o cometa ou qualquer fenômeno celeste era
acompanhado pelo medo e terror e hoje, por um otimismo pasteurizado?
Só supertições?
Hoje os astrônomos nos ensinam que os cometas não passam de
bólidos de gelo recheados de granito e metal. Usam a expressão “não passam de”
como resposta às crendices e supertições que envolviam o fenômeno no passado.
Será que aquelas crenças eram apenas supertições tolas de gente ignorante e
graças à ciência conseguimos superar aquele estágio? A ciência liquida rápido
demais o problema ao querer interpretar aquelas crenças ao pé da letra.
O terror e o medo que envolviam os fenômenos celestes não se
devia à ignorância popular, mas representavam a expressão de uma dimensão dos indivíduos
no cotidiano. Explico. O terror e o medo não eram emoções brutas, mas
simbólicas, uma fala que expressava o inominável, o misterioso e o imprevisível
no cotidiano. O cometa era apenas um suporte material para expressar esta fala.
Procurando explicar melhor, o medo não era tanto pelo cometa, mas pelas
questões cotidianas que ele suscitava – o conjunto de sensações, sentimentos e
percepções que hoje a cultura de massas despreza, jogando no lixo sob o rótulo
de “baixo astral”.
E o que é esta dimensão desconhecida no cotidiano? Como o
próprio nome diz, é aquele conjunto de fatos que fogem de uma nomeação, a uma
explicação lógica e previsão seguras: morte, guerras, assassinato, violência,
angústia, perversão, solidão, melancolia, sexualidade, desejo, suicídio, ou
seja, toda aquela dimensão que constitui o subterrâneo do dia-a-dia. Eros e
Thanatos, pulsão de vida e de morte, toda a dimensão do cotidiano habitada por
demônios, maus espíritos, bruxas, perversões da carne e toda uma simbologia que
tem a ver com a gênese e destino humanos.
Festa e Melancolia
A festa é um bom exemplo desta natureza ambígua do
cotidiano. O leitor já andou pela rua e pelos bares num final de madrugada de
sábado ou domingo? É evidente a sensação de “fim de feira” que se experimenta:
melancolia, músicas mais lentas ou “down”: blues, sambas de fossa etc. Por que
essa melancolia após a excitação e alegria? O cansaço físico ou a tristeza pelo
final da festa é uma explicação que não satisfaz, se tomarmos esse conjunto de
fatos e a própria festa como simbólicos.
Segundo Henri Lefebvre (LEFEBVRE, Henri, El Cotidiano em El Mundo Moderno. Madrid: Alianza editorial, 1980),
num mundo fugidio em que o trabalho burocratizado e fragmentado perde qualquer
sentido para o indivíduo (assim como o próprio lazer e cultura
mercantilizados), na medida em que ele não consegue apropriar-se de seu ser
natural (corpo, desejo, tempo e espaço expropriados pela velocidade e
administração do tempo e espaço cotidianos) a única oportunidade de apropriação
ou busca de uma emoção sentido e marca está nas festas. Por isso ela seria
marcada por dois elementos dramáticos: a violência (contra o próprio corpo por
meio do álcool ou desequilíbrio alimentar) e sexualidade, talvez verdadeiras
situações-limites nas quais o indivíduo parece recuperar o que lhe foi roubado
pela vida. O mal-estar viria terminado o efeito de catarse ou espetáculo.
Outro exemplo? Qual a imagem do Carnaval construída pelos
veículos de comunicação? Vibração e alegria espontâneas e gratuitas, fonte de
saúde e lazer. Sendo o carnaval, como toda festa na modernidade, também
assentado nessa ambiguidade, esta imagem torna-se difícil de ser sustentada por
inteiro. Além daqueles elementos apontados pelo francês Lefebvre – violência
(no carnaval simbolizada por bisnagas, martelos de plástico, bambuchas etc.) e
sexualidade, encontramos uma intenção nas pessoas em fugir à solidão e
monotonia do cotidiano, descobrindo novas pessoas, experimentando novas
situações. Porém, sempre uma apropriação fugaz, como tudo no cotidiano moderno.
Terminada a excitação sobrevém o mal-estar difuso e
inexplicável que nunca aflora à consciência do indivíduo, a não ser como
impressões confusas e pouco claras. Este nexo festa/dor encontraremos nas
próprias origens das festas na cultura ocidental: a tragédia grega. Misto de
alegria e sensação trágica em torno de uma representação teatral, o público
(coro) saia fora de si mesmo numa espécie de efeito alucinógeno proporcionado
pelo clímax dos cânticos e rituais, a fim de se integrarem de volta à natureza
e superar a dor que representa a individuação ou a socialização.
A Fala dos cometas,
dráculas...
Assim como o cometa surgindo de forma imprevisível, rasgando
o céu noturno, da mesma maneira manifesta-se essa dimensão desconhecida do
cotidiano. É interessante a associação simbólica que esta fala antiga dos
fenômenos celestes realizava: cometa/noite – inominável/subterrâneo. Vale
lembrar que a literatura clássica de terror fazia idêntica associação entre o
impulso sexual, natureza, emoções – inexplicável/seres fantásticos, monstros –
noite e terror. A produção simbólica desta literatura sempre associava os
impulsos naturais humanos com seres da noite incontroláveis e ameaçadores como
Drácula (sexo e perversão sado-masoquista realizados por meio do sangue), Frankenstein
(o medo do homem diante da sua própria criação e do futuro) etc.
Cometas, dráculas e frankensteins materializavam essa fala
inconsciente e alucinada de nossos antepassados. Parece difícil acreditar que
sensações ou questões cotidianas despertassem tanto medo, quando hoje a
astronomia desmistifica aquelas supertições e a psicologia aparentemente dá
cabo às nossas ansiedades por meio de terapias bioenergéticas, como se tudo não
passasse de um problema do indivíduo solitário e não do indivíduo imerso em
estruturas antropológicas e histórico-sociais do cotidiano.
Por que o cometa
sorri?
Pois bem, descobrimos que o medo pelo cometa no passado não
era apenas supertição, mas uma elaborada produção simbólica e, por isso,
refletindo uma faceta subterrânea da existência. Então, por que hoje o cometa
parece sorrir prometendo um espetáculo?
Ao contrário de 1910, o cometa Halley não aparece para nós
em seu estado bruto, ou seja, como puro fenômeno astronômico, mas como
mercadoria. Como mercadoria ele é produzido especialmente para ser vendida e
consumida com um rótulo, uma imagem atraente que promova o turismo, revistas,
telescópios, sapatos, iogurtes etc.
Colocado isso pergunto: por que as pessoas compram
mercadorias? O bom senso diria: para serem satisfeitas necessidades tais como
lazer, alimentação, conforto, ou seja, valores
de uso. Mas é apenas uma aparência, as mercadorias não atendem apenas a
necessidades naturais, pois, caso isso fosse verdade, as mercadorias não seriam
vendidas com a intensidade ideal para a reprodução ótima do capital e dos seus
lucros.
As mercadorias têm uma outra dimensão, atraente, que oferecem
como uma dádiva fantasias, símbolos, aventuras, magia e todo um mundo ideal que
não existe no dia-a-dia. Este é o seu valor
simbólico e comprando você também adquire a ideia de otimismo, saúde e alegria. Se, como vimos, o cotidiano é
dotado daquela ambiguidade antropológica, a imagem da mercadoria a elimina da
consciência dos consumidores ao oferecer um mundo limpo de problemas e a
oportunidade com que se identificar, pegar e se apaixonar. A mercadoria é seu objeto-paixão.
Halley, cachorros, tartarugas...
Para Baudrillard (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Perspectiva, 1973), esta tendência a
transformar tudo em objetos atingiria até os animais domésticos. Gatos,
cachorros e tartarugas seriam espelhos perfeitos que emitem o que o dono
deseje, verdadeiros depositários de afeto. Por isso são privados de sexo,
apesar de vivos. Incomodam quando demonstram suas necessidades vitais,
iniciativa própria ou animalidade.
Fazendo paralelo com esta ideia polêmica, a mercadoria Halley conteria o mesmo
mecanismo: limpo de pulsão de morte, simbolismo e ambivalência, o cometa Halley
nada comunica (ao contrário do passado), porque é produzido como objeto de
coleção privada e colocado ao mesmo nível dos demais objetos como uma pasta de
dentes, por exemplo.
Para completar o seu caráter de objeto-paixão, a publicidade
em torno do Halley transmite ao consumidor segurança e domínio, exatamente
qualidades das quais o cotidiano moderno das grandes cidades não é dotado. Se
no passado os fenômenos celestes transmitiam medo e terror (como vimos, porque
eles comunicavam às pessoas ansiedades e angústias que elas experimentavam no
dia-a-dia de trabalho e diversão), hoje eles são aparentemente dominados pelo
consumidor: telescópios, mapas celestes, uma avalancha de informações
científicas, horários programados para melhor observação etc. Graças a esse
prazer pela manipulação de um efeito de conhecimento, parece levar a crer que o
mistério foi finalmente afastado numa prática circunscrita ao espaço doméstico.
Porém, fora desse espaço doméstico artificial de manipulação de objetos sem
vida, de tranquilo consumo individual onde a subjetividade se realiza na maior
quietude, as questões de sempre do cotidiano continuam.
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