sexta-feira, setembro 09, 2022

'O Grande Hotel Budapeste': lapsos de civilização no matadouro que conhecemos como humanidade


No cinema, o imaginário em tornos dos hotéis os torna intrinsecamente estranhos. De Norman Bates em “Psicose” a Jack Torrance de “O Iluminado”, esse imaginário parece traduzir uma ambiguidade desse serviço entre o turismo e os negócios: são lugares transitórios, mas também um lugar que, por um tempo, podemos chamar de lar. Wes Anderson brinca com esse imaginário em “O Grande Hotel Budapeste” (2014): um hotel decrépito entre as montanhas, mas que teve seus tempos aristocráticos de opulência. Com sua linguagem irônica e cenas densamente compostas, com aventuras que mais lembram as HQs de “Tintim”, Wes Anderson nos conta um tema sério e sombrio: como a guerra total nazista destruiu uma bela e frágil civilização da Europa Central, trazendo uma modernidade que alterou drasticamente os hotéis e o turismo – de “lapsos de civilização no matadouro bárbaro que conhecemos como humanidade” a filiais padronizadas e despersonalizadas de grandes cartéis internacionais de turismo.

Hotéis são inerentemente estranhos. Ao lado de aeroportos, terminais rodoviários, estações de trem e, por que não, até rodovias, são lugares de passagem. Cruzamos com pessoas que na maioria das vezes nunca mais veremos na vida. São estruturas de prestação de serviços que devem sempre estar lá, embora permaneçamos nesses lugares por horas ou poucos dias.

Mas os hotéis são diferentes. Afinal, são domicílios temporários. Um lugar que podemos chamar de lar por um tempo limitado, junto com amigos ou familiares. Mas, mesmo assim, compartilhamos nossa experiência com pessoas que nunca conheceremos.

Isso talvez explique por que vemos tantos filmes sobre hotéis misteriosos, decadentes, seja habitado por fantasmas, assassinos, pequenos escroques ou golpistas. Nesses lugares em que nunca conheceremos o outro, só podem despertar em nós a distância e suspeita. Por fim, foi exatamente essa a origem da crônica policial e a literatura de mistérios com detetives e suspeitos.

O Grande Hotel Budapeste (2014), de Wes Anderson, é mais uma produção que envolve a maioria desses tropos do imaginário dos hotéis, em particular a decadência e decrepitude, ao lado da nostalgia e romantismo dos tempos em que os hotéis eram “um lapso de civilização no matadouro bárbaro que conhecemos como humanidade” – frase que citada duas vezes e que é a chave de compreensão do filme. E não mais uma unidade sem personalidade em alguma rede hoteleira internacional.



Todo esse material é desenvolvido dentro do estilo padrão que conhecemos de Wes Anderson: tomadas meticulosamente compostas (com objetos e personagens simetricamente dispostos e sempre com deslocamentos horizontais de câmera), imagens que lembram aqueles globos transparentes com flocos que emulam neve, cenografia e figurino meticulosamente planejado transmitindo as sensações sinestésicas de cada textura de uma poltrona, papel de parede ou a flor em uma lapela.

Mesmo nas sequências de ação, Wes Anderson revela ser um dos últimos artesão do cinema: a força pictórica da antiga magia do stop-motion e efeitos práticos, sempre resistindo aos efeitos CGI. O que resulta num estilo único, peculiar, reforçado pelos personagens excêntricos tomados por uma espécie de melancolia maluca, mas muitas vezes comovente. Mesmo nas situações de humor. Wes Anderson é capaz de contar histórias sombrias (principalmente nesse filme, no período entre guerra da ascensão do nazismo – à beira da barbárie) através de situações bobas e divertidas.

Esteticamente, o filme equivale cinematograficamente a um doce de Mandl’s – um doce onipresente no filme, de iguaria servida no Hotel Budapeste a esconderijo de ferramentas que ajudará o protagonista a fugir da penitenciária na qual foi injustamente preso.

O humor, ironia e as camadas de metalinguagem (a narrativa é um flashback dentro de outro flashback que se refere a mais outro flashback) são embalagens de algo mais profundo: aquele hotel decrépito oculta um outro mundo que existiu – uma modernidade passada de estações ferroviárias, telegramas, malas artesanais, aristocratas preguiçosos, mensageiros (ou “lobby boys”) discretos, tudo envolvido pela pintura, poesia e psicanálise.



Um mundo que a guerra total da Segunda Guerra Mundial (na verdade, a cabeça da ponte de uma nova modernidade centrada na velocidade, tecnologia e a desfiguração da cultura pelo capital global) destruiu, fazendo o Hotel Budapeste ser uma reminiscência perdida no meu das montanhas da Europa Central.

O Filme

O tempo todo estamos na fictícia República de Zubrowka, uma terra montanhosa que sofreu as marchas de sucessivos impérios – otomano, austro-húngaro, nazismo e soviético – para então ser apagada completamente – e a decrepitude do Hotel Budapeste é o simbolismo central. 

A história principal é ambientada na década de 1930. Mas há duas sequências iniciais que envolvem essa narrativa, que na verdade é um flashback dentro de um flashback

Começamos em 1985, sob um céu cinza do final do comunismo em uma cidade de cemitérios e estátuas. Um escritor envelhecido (Tom Wilkinson) enxota seu neto e se lembra da época em 1968, quando seu eu mais jovem (Jude Law) se hospedou no quase vazio Grande Hotel Budapeste e conheceu o seu elegante e enigmático proprietário, o Sr. Moustafa (F. Murray Abraham).



Por sua vez, Moustafa relembra seus primeiros dias no hotel, onde era um mero “lobby boy” conhecido como Zero (Tony Revolori) e o lugar era dominado por seu carismático concierge, M. Gustave, retratado por Ralph Fiennes com vivacidade e um engraçado bigode. Gustave é cortesão e soberano, um servo dedicado aos convidados e o governante caprichoso e principalmente benevolente da equipe. Ele corrige seus menores lapsos de comportamento e os ensina interminavelmente na hora das refeições. Ele é um amante da poesia e também das mulheres idosas que o chamam para suas suítes, e talvez de alguns homens também. De alguma forma, ele é um asceta e um sensualista, altamente disciplinado e, ao mesmo tempo, completamente irresponsável. Um homem completamente ridículo, mas, também ironicamente, “um lapso de civilização no matadouro bárbaro que conhecemos como humanidade”.

Na verdadeira década de 1930, lugares como a fictícia Zubrowka estavam à beira de uma barbárie inconcebível e um massacre sem precedentes impingido pela guerra total nazista. Uma bela e frágil civilização da Europa Central foi praticamente demolida, sobrevivendo principalmente como objeto fantasmagórico de saudades nostálgicas. E Wes Anderson abraça essa nostalgia, com seu estilo detalhista e simétrico – como que tentando dar ordem ao caos.

A trama principal gira em torno de uma elaborada aventura ao estilo dos quadrinhos de Tintim envolvendo uma pintura roubada e um clã de nobres vingativos de Zubrowkan. (Tilda Swinton interpreta a matriarca Madame Céline Desgoffe, Adrien Brody seu filho víbora e Willem Dafoe o temível assassino da família).

Madame Céline tem uma queda pelo concierge M. Gustave. Seu assassinato e o desaparecimento de uma valiosa pintura renascentista colocam Gustave e Zero fugindo dos policiais, liderados pelo Inspetor (Edward Norton) e Dmitri (Adrien Brody), filho implacável de Madame Céline, e seu capanga Jopling, um assassino todo vestido de preto performado de forma engraçada por Willem Dafoe, uma espécie de Dr. Strangelove cruel o suficiente para jogar um gato pela janela.



E ainda com direito a uma fuga maluca da prisão de Gustave e Zero, com a ajuda de um tatuado Harvey Keitel. Os personagens começam então a aparecer com uma imprevisibilidade frenética, incluindo Bill Murray, Owen Wilson e Jason Schwartzman como um trio de concierges malucos.

Wes Anderson não é um realista. Sua linguagem é formada por camadas de estilização e de uma obsessão em detalhes, simetrias e enquadramentos que obrigam os atores a performances mais contidas. O resultado é ironia, frivolidade e charme.

Porém, com um conteúdo politicamente pesado de um momento do século XX que foi o divisor de águas. Inclusive para o imaginário dos hotéis.

Na primeira modernidade, representada pelo momento opulento do Grande Hotel Budapeste, vemos uma estrutura hoteleira que ainda tentava emular palácios aristocráticos – embora na sua essência fossem locais transitórios, de passagem, ainda resistiam à descartabilidade, ao efêmero e ao artificial já presentes no início da modernidade com a velocidade do trem e do início do automobilismo. Eram hotéis, como aquele figurado no filme, eram ainda “lapsos de civilização”.

Lapsos que desaparecem na guerra total da Segunda Guerra Mundial (a primeira guerra tecnológica da História) que mudou totalmente a cultura, ética e moral do século XX. E os hotéis foram um dos sismógrafos dessas mudanças: padronização, despersonalização na qual a arquitetura se rendeu a efeitos cenográficos para turistas. Estruturas hoteleiras como filiais serializadas de grandes cartéis internacionais de turismo.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Grande Hotel Budapeste

Diretor: Wes Anderson

Roteiro: Wes Anderson, inspirando no livro de Stefan Zweig

Elenco:  Ralph Fiennes, F Murray Abraham, Adrien Brody, Willem Defoe, Jeff Goldblum, Jude Law, Tilda Swinton

Produção: Fox Searchlight

Distribuição: 20th Century Fox

Ano: 2014

País: EUA

 

 

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