Em um mundo onde os mortos-vivos já não devoram cérebros dos vivos, mas são tratados como mão de obra descartável em trabalhos precarizados (são chamados de “deficientes vivos”), “Nós Somos Zumbis” (We Are Zombies, 2023), produção franco-canadense dirigida pelo trio canadense François Simard, Anouk Whissell e Yoann-Karl Whissell (os mesmos de Turbo Kid), transforma o apocalipse em sátira social. Uma comédia ácida que reinventa a mitologia zumbi ao retratar uma sociedade que normalizou a presença dos “não-mortos”, expondo com humor e irreverência o zeitgeist do século XXI — da precarização do trabalho à indiferença diante da crise permanente. Um trio de geeks perdedores hackeiam os serviços da Coleman Co. – uma empresa especializada em “aposentar” zumbis, retirando-os das famílias para os colocar em asilos. Mas os planos são outros, mais perversos. O zumbi deixa de ser metáfora do apocalipse e passa a simbolizar populações descartáveis, invisíveis ou exploradas pelo capitalismo tardio.
Desde o início, o mito do zumbi foi marcado como uma forte
alegoria política – surgiu em culturas marcadas pelo colonialismo e escravidão
no Caribe do século XIX. Associadas à prática do vodu no Haiti onde toda uma
tradição oral narra acontecimentos sobre pessoas que teriam sido trazidas de
volta do mundo dos mortos como horríveis sombras de si mesmos. Muitas vezes
esses zumbis estariam sob controle de um mestre (a, tornando-se autômatos sem
vontade ou pensamento – o medo de se tornar escravo, mesmo depois da morte.
No cinema, a alegoria política permaneceu com George Romero – um protagonista
negro tendo que lidar com uma horda de zumbis brancos em The Night of Living
Dead (1968).
A partir da segunda metade da década de 1980, os zumbis vão
perdendo essa conotação política: passam a ser associados a doenças epidêmicas,
controle sanitário ou de intervenção sanitária militar – quarentenas,
isolamentos etc. Coincidindo com a ascensão da epidemia da AIDS, recessões
sistêmicas globais e a ameaça do terrorismo internacional – um inimigo
invisível e inesperado. O zumbi assume, por isso, a forma de ameaça viral,
epidêmica, com propagação exponencial e incontrolável.
Enquanto isso, as comédias sobre zumbis apenas pontuam essa
despolitização dos mortos vivos, como nos informa uma linha de diálogo do
metalinguístico filme Zumbilândia - Atire Duas Vezes (2009): “Há muitas
opções quando se trata de entretenimento zumbi”.
Com isso, os filmes de zumbis deixam a esfera cult para se tornar
um pilar da cultura pop, ao lado de vampiros, fantasmas e lobisomens. Das
alegorias e simbolismos políticos, os zumbis se tornam puro entretenimento.
Então, por que não combinar os dois? Colocar os mortos vivos em uma
rasgada comédia geek que, ao mesmo tempo, por assim dizer, faz o século XXI rir
do seu próprio zeitgeist que se traduz nas grandes ansiedades da
atualidade: precarização do trabalho, normalização das crises, exclusão
social e necropolítica.
O filme Nós Somos Zumbis (We Are Zombies, 2023),
dirigido pelo trio canadense François Simard, Anouk Whissell e Yoann-Karl
Whissell (os mesmos de Turbo Kid), apresenta uma abordagem inusitada:
uma sociedade em que os mortos-vivos não são canibais, mas sim “deficientes
vivos” — uma população marginalizada, explorada e tratada como subclasse
social.
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Baseado na série de histórias em quadrinhos
francesa Les Zombies Qui Ont Mangé le Monde (Os Zumbis que
Comeram o Mundo) de Jerry Frissen, Nós Somos Zumbis mostra o
trio de diretores empregando uma inteligente recriação ficcional de mundo,
explicando com apenas uma curta montagem de créditos de abertura a ideia de que
os mortos, inexplicavelmente, começaram a voltar à vida. Nas em vez de se
transformarem em mortos-vivos vorazes comedores de carne e cérebros dos vivos,
eles simplesmente vagam (ou sentam) por aí, ocupando espaço.
Eles se tornam, na verdade,
uma nova população minoritária e, embora recebam direitos básicos (incluindo
serem chamados, de forma politicamente correta, como "Deficientes
Vivos"), os humanos estão ficando perturbados com o seu número crescente. E
pior: como ele não dormem (afinal, já estão mortos) tornam-se funcionários ideais
– trabalham sem parar e não reclamam. Começam progressivamente a ocupar o lugar
da força de trabalho viva.
Para tentar resolver isso, grupos oficialmente licenciados que
oferecem "serviços de aposentadoria" se oferecem para tirar entes
queridos em decomposição das mãos das pessoas. Vendo como cadáveres vivos podem
render um bom preço no mercado negro, algumas pessoas empreendedoras optam por
hackear sistemas oficiais e se passar por militares aposentados – milícias que,
“gentilmente” “aposentam” os zumbis para transformá-los em mercadorias de novas
e inusitadas maneiras: do mercado pornô a estátuas “vivas” de performances
artísticas de vanguarda.
Com essa fusão entre a alegoria política e entretenimento (como se
o Capitalismo estivesse rindo de si mesmo), Nós Somos Zumbis também
inova a mitologia zumbi, dentro de um subgênero que parecia já ter esgotado o
estoque temático.
Primeiro, ao contrário da tradição inaugurada por George A.
Romero, aqui os zumbis não representam ameaça física direta. Eles são corpos
presentes, mas usados como pano de fundo para a crítica social.
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Além disso, de monstro ameaçador o zumbi torna-se uma classe
marginalizada. O zumbi deixa de ser metáfora do apocalipse e passa a simbolizar
populações descartáveis, invisíveis ou exploradas pelo capitalismo tardio.
Mas, principalmente, inova o entretenimento pop zumbi pelo tom de
comédia escrachada – aproximando-se de filmes como Shaun of the Dead e Zombieland,
mas com um viés mais ácido, expondo a banalização da violência e a indiferença
social diante da exclusão.
O Filme
Nós Somos Zumbis acompanha um
trio geek Freddy (Derek Johns), Karl (Alexandre Nachi) e a meia-irmã de Karl,
Maggie (Megan Peta Hill). Freedy, um fã de lutas-livres mexicanas e que tem um
amor secreto por Maggie (a única com um mínimo de inteligência prática do
grupo). E Karl, um viciado em pornô on line. Principalmente, com a diva
das webcams privê chamada Zelvirella – uma zumbi sexy que faz referência ao
filme trash de terror Elvira, A Rainha das Trevas (1988).
Um trio de perdedores que querem, pelo menos uma vez na vida, se
dar bem. Então decidem hackear os serviços da Coleman Corporation - um
conglomerado que lucra capturando zumbis indesejados e, sob o pretexto de
colocá-los em asilos, os utiliza para experimentos que fazem de um sinistro
plano político de dominação.
Eles se passam como funcionários da Coleman Co. e retiram um zumbi
incômodo de uma família para ganhar uma grana, vendendo-o para um excêntrico
artista de vanguarda milionário chamado Maddox criar suas exposições/instalações
artísticas macabras.
Dois funcionários da Coleman Co. descobrem o golpe do trio e
decidem, para cobrir o prejuízo, sequestrar a avó de Karl e pedir 50 mil
dólares.
Desesperados por dinheiro para pagar o resgate, o trio aceita a
mais ambiciosa encomenda do excêntrico Maddox: agora ele quer que o trio traga lhe
traga Zelvirella, a estrela pornô zumbi.
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Por si só, essa história já daria um ótimo entretenimento, com
tantas piadas que nem temos tempo para reagir e rir entre elas. Mas, o filme é
mais ambicioso: quer fazer o capitalismo rir de si mesmo.
A precarização do trabalho já é o dado inicial desse mundo logo do
início: eles não dormem, não ligam muito para direitos trabalhistas (já estão
mortos, mesmo...) e são uma mão de obra que só cresce.
Esse é o problema para Hannity (Benz Antoine), chefe da segurança
da Coleman Co.: revela ter extremo desdém por zumbis (é um racista ou
supremacista humano), pois teme que eles inevitavelmente superem em número os
seres humanos se seu surgimento não for impedido preventivamente.
Diante do conselho de diretores da Coleman Corporation, ele
apresenta seu mais recente método de dissuasão: o Projeto Zoltan, um meio de
mudar a percepção da sociedade sobre os zumbis, o que poderia levar a uma
campanha mundial de extermínio dos mortos-vivos.
O projeto visa infectar zumbis com um gás venenoso que os torna
selvagens, cruéis e irracionais — trazendo-os de volta aos estereótipos
clássicos esperados para zumbis, com mortos-vivos assassinos correndo
descontroladamente — o mundo não mais aderirá à antiga abordagem de
coexistência e tolerância.
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O que Hannity pretende com essa estratégia diversionista é colocar
em prática um plano de engenharia da opinião pública. O que não deixa de ser um
aspecto metalinguístico do filme: os zumbis de Nós Somos Zumbis deixam de ser
predadores para virarem vítimas da ganância dos humanos. Contrariam todos os
estereótipos dos mortos-vivos que estamos acostumados a ver em décadas de cinema.
Hannity quer reverter a própria novidade do filme para a mitologia
zumbi: à força, através de uma armadilha
química, fazer os zumbis se comportarem como antes. E recriar um apocalipse
zumbi que justifique uma militarização do Estado.
Dessa maneira, o filme dialoga diretamente com as ansiedades
contemporâneas desse início de século XXI. Para começar, uma estranha
normalização das crises: no século XXI, vivemos em estado de “crise permanente”
(pandemias, colapsos econômicos, guerras). O fato de os personagens tratarem os
zumbis como parte banal do cotidiano reflete essa espécie de dessensibilização
coletiva.
A precarização do trabalho trazida pelo capitalismo de plataforma
é o pano de fundo que cria essa normalização: a exploração dos zumbis é um eco dos
debates atuais sobre big techs, biopolítica e a mercantilização da vida.
Mas, talvez, o aspecto mais inovador em Nós Somos Zumbis é que
eles deixam de ser protagonistas do apocalipse ou monstros que ameaçam os vivos
para se tornarem vítimas, como alegoria para populações marginalizadas —
refugiados, pobres, idosos — que são “mantidos vivos”, mas sem dignidade ou
voz. Isto é, exclusão social e necropolítica.
Nós Somos Zumbis não é apenas mais um filme sobre mortos vivos:
ele captura o espírito de uma era em que a catástrofe já não choca, mas é
absorvida como rotina. Ao transformar os mortos-vivos em “cidadãos de segunda
classe”, o filme reinventa a mitologia zumbi para refletir o mal-estar do nosso
tempo.
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Ficha Técnica |
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Título: Nós
Somos Zumbis |
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Diretor: François Simard, Anouk
Whissell e Yoann-Karl Whissell |
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Roteiro: Jerry Frissen, François
Simard, Anouk Whissell |
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Elenco: Alexandre Nachi, Derek
Johns, Megan Peta Hill |
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Produção: Borsalino Productions,
Christal Films |
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Distribuição: Cineverse Ententainment |
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Ano: 2023 |
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País: Canadá, França |
sexta-feira, outubro 24, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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