sábado, março 12, 2016

A vida é uma gigantesca piada cósmica no filme "Entertainment"


Uma produção que está na lista dos dez filmes mais estranhos de 2015. Em "Entertainment" (2015) um comediante de “stand up comedy” chamado Neil Hamburger (o alterego do humorista Gregg Turkington) vive uma espécie de autoexílio em uma turnê de shows improváveis por hotéis, bares de beira de estrada e toda sorte de espeluncas em lugares perdidos em desertos na fronteira EUA-México. Um comediante sisudo, desajeitado e amargo que conta piadas enquanto toma copos de drinks no canudinho. A incauta plateia espera piadas que a faça rir das desgraças alheias para se sentirem melhor nas suas vidas tão cinzentas quanto o deserto. Mas tudo que Neil Hamburger lhes apresenta são piadas carregadas de raiva. E também a suspeita de que todos nós estamos metidos em alguma gigantesca piada cósmica.

Fugido das ameaças do nazismo, o filósofo alemão Theodor Adorno estava em Hollywood durante a II Guerra Mundial quando acabou sendo convidado a participar de uma festa onde estariam diversas celebridades para homenagear um herói de guerra que havia perdido o braço direito em combate. Como um estrangeiro recente no país, Adorno não sabia desse “detalhe” sobre o homenageado daquele evento.

Quando foram apresentados, polidamente Adorno estendeu-lhe a mão para cumprimenta-lo. Ao perceber a gafe, em um movimento desajeitado Adorno fingiu que ia colocar a mão no próprio bolso, diante do mal estar de todos que presenciaram a cena. Atrás de Adorno Charles Chaplin observava a tudo. Vendo os apuros do seu amigo estrangeiro, pulou à frente imitou de forma brilhante e silenciosa a gafe do desconfortável Adorno, para arrancar uma explosão de risos de todos.

Mais tarde, ao homenagear o 75o aniversário do amigo Chaplin, Adorno relembrou do episódio e falou: “todo riso está muito próximo do horror que o prepara”, disse para enfatizar essa conexão automática entre riso e crueldade, principalmente na sua forma comercial na indústria do entretenimento. E completou: “rimos do fato de que não há mais nada do que rir”.


Entertainment, do diretor independente norte-americano Rick Alverson, parece ter também encontrado esse mesmo insight de Adorno no Oeste dos EUA. Mais precisamente no deserto da Califórnia em torno do deserto de Mojave onde um comediante de stand up faz uma insólita turnê em cidades esquecidas, em shows para pequenas audiências formadas por bêbados, caipiras perdedores ou novos ricos grosseiros. No meio do nada nas fronteiras entre EUA e México.

Stand up comedy politicamente incorreta


O filme é um veículo para Gregg Turkington que na vida real, há duas décadas, encarna nos palcos o seu alter-ego Neil Hamburger: um comediante sisudo, desajeitado e amargo que se apresenta por trás de seus óculos de aros grossos,  trajando um smoking barato, cabelo seboso e sempre carregando copos com doses extras de drinks que sorve com um canudinho enquanto conta piadas como essa: “Por que estupradores não comem no TGI Fridays em uma sexta-feira à noite? Bem, é difícil sair para estuprar com uma diarreia”.

Ou essa: “O que você obtém quando cruza Sir Elton John com um tigre com dentes de sabre? Eu não sei, mas é bom mantê-lo longe do seu cu!”.

Nos EUA, assim como no Brasil, o gênero stand up comedy foi dominado pelo chamado humor politicamente incorreto que arranca seu humor da chacota aos socialmente mais fracos  e perdedores. Poderíamos interpretar Entertainment também dessa maneira.

Mas o filme nos oferece algo que vai muito além disso nas piadas cruéis e amargas do protagonista: se os pequenos públicos de arruaceiros, homofóbicos, bêbados e novos ricos sem educação esperam ouvir piadas que os façam rir da miséria alheia, Neil Hamburger lhes joga na cara piadas tão ofensivas e sem graça que eles próprios sentem-se ridicularizados.


Por isso, Entertainment é um filme estranho: parece um filme de David Lynch, porém com baixo orçamento, cheio de interlúdios e silêncios opressivos. O roteiro consiste em momentos estilhaçados que não se ligam, exceto simbolicamente: Neil testemunha um sangrento parto de uma mulher em um banheiro público, as conversas com seu primo agricultor de laranjas, o encontro com um traficante desesperado ou quando é colocado em uma cabine de luz de uma palestrante esquisita de cromoterapia, hóspede em um dos pequenos hotéis onde Neil faz seus pequenos shows.

A cada show, Neil Hamburguer quer na verdade insultar as plateias. Por que?

O Filme


O filme começa com uma sequência onde Neil Hamburguer acompanha um grupo de turistas na visita a um cemitério de aviões antigos em pleno deserto. Com seu boné e ar entre a depressão e o tédio, lembra o protagonista Trevis de Paris, Texas (1984) de Win Wenders.

No filme há diversos interlúdios silenciosos onde o protagonista contempla desertos como se estivesse perdido neles: desertos humanos como o cemitério de aviões ou os cenários abandonados de algum filme western hollyoodiano antigo que foi rodado no deserto; ou as paisagens desoladas do deserto do Mojave.

Neil parece que vive um autoexílio, na sua turnê improvável por lugares perdidos e sempre ligando para sua suposta filha cujas ligações caem invariavelmente na caixa de mensagens. Não temos certeza se essa filha é real ou imaginária.

Acompanhamos a série de shows do comediante em prisões, poços de água abandonados, bares de beira de estrada e toda uma diversidade de espeluncas. O diretor parece comparar esses pequenos lugares perdidos no meio do deserto aos desertos humanos com o  cemitério de aviões ou as cenografias de Hollywood abandonadas.

As pessoas parecem tão vazias quantos suas próprias vidas naqueles lugares inóspitos. Seus vazios interiores tentam ser preenchidos com truculência, mal gosto e grosserias. “Esses lugares deveriam ter segurança... isso dificulta meu trabalho”, reclama diante das grosserias e ameaças daqueles que “saem da linha”. “Como podem jogar uma bebida em alguém que viajou uma grande distância para trazer risos a essa comunidade!”, protesta com sua voz anasalada enquanto sorve pelo canudinho mais um drink.


O clichê do palhaço triste


A virtude de Entertainment é de não cair no velho clichê do palhaço triste ou do artista incompreendido – o trabalho artístico como o grito desesperado da alma de um comediante. Rindo por fora, mas chorando por dentro.

Não, há uma raiva interior em Neil que cresce progressivamente durante o filme: o mundo inteiro parece ser uma grande piada cósmica diante da qual só nos resta rir. O problema é: rir do quê ou de quem. Com o seu repertório de piadas bizarras com temas como diarreia, ejaculação, sífilis etc., Neil Hamburguer faz uma caricatura da natureza riso aproximar-se tanto do horror e da desgraça como sugeriu Theodor Adorno.


Hollywood criou esse estereótipo do palhaço que chora para encobrir essa natureza gnóstica do riso – quanto mais o palhaço desperta em nós piedade ou compaixão para clichês como, por exemplo, o do “adorável vagabundo” impingido a Charles Chaplin por Hollywood, mais esquecemos das origens do riso como defesa ou escárnio do trágico e da desgraça: a suspeita de que estamos metidos em uma monstruosa piada em dimensões cósmicas.

Origens do riso e do humor


Como vimos em postagem anterior sobre o comediante Jerry Lewis (clique aqui) na história da cultura o riso e o humor assumiram tanto aspectos progressivos como regressivos: é uma forma de defesa diante da morte e a promessa de redenção (no cinema representado pelo “the last minute rescue” dos antigos filmes mudos) ou o escárnio diante da desgraça alheia, desde as formas mais suaves como as risadas diante das desventuras do Pato Donald até o prazer sadomasoquista em ver as desgraças alheias na TV para se sentir um pouco melhor depois de um dia humilhante no trabalho.

É sintomático que no filme a melhor plateia que o protagonista conseguiu foi em uma penitenciária. Pelo menos ali, a plateia tinha consciência de que estava presa e ria como esperança de um futuro melhor. Fora delas, todos sentem-se livres mas no fundo também estão presas em suas próprias mediocridades e vidas tão cinzentas quanto as paisagens do deserto que roubam a cena em Entertainment.


As pessoas querem rir do horror alheio para sentirem-se melhor. Mas tudo que Neil Hamburguer apresenta é um espelho para as pessoas verem-se a si próprias dentro de uma gigantesca piada cósmica.

Ficha Técnica


Título: Entertainment
Diretor: Rick Alverson
Roteiro: Rick Alverson
Elenco:  Gregg Turkington, John C. Reilly, Tye Sheridan
Produção: Nomadic Independence Pictures, Arts+Labor
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2015
País:EUA

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