Imagine se o leitor fosse um ser extraterrestre que chegasse na Terra e
visse pela primeira vez aspectos do cotidiano da vida dos terrestres em bares,
casas, escritórios e ruas. Certamente veria tudo com um misto de estranheza e
espanto pelo artificialismo, tensões, angústias e humor involuntário de muitas
situações cotidianas. Pois essa é a proposta do diretor sueco Roy Andersson no
filme “Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência” (2014) que
fecha a sua Trilogia iniciada há 15 anos
sobre “como ser um ser humano”. São 39 esquetes de pequenos flagrantes
da rotina diária, mostrando principalmente os “perdedores” num olhar
radicalmente diferente dos losers hollywoodianos. Se nos filmes de Hollywood
os “losers” são orgulhosos e viram um estilo de vida, em Andersson os
perdedores são a própria essência gnóstica da condição humana: estrangeiros em seu
próprio planeta, sociedade, família e amigos.
Com o filme Um Pombo Pousou num
Galho Refletindo Sobre a Existência o diretor sueco Roy Anderson encerra
sua trilogia sobre “como ser um ser humano” iniciada há 15 anos com Songs From The Second Floor seguido por Vocês, Os Vivos – filmes analisados pelo
Cinegnose: clique aqui e aqui.
E qual a conclusão que ele chega nesse último filme? “Você precisa acompanhar a passagem dos dias. Ontem foi terça, hoje é quarta e amanhã será quinta. Se você não acompanha o caos se instaura...”, responde alguém que está num ponto de ônibus para outra pessoa que disse que aquele dia estava com cara de quinta-feira.
E qual a conclusão que ele chega nesse último filme? “Você precisa acompanhar a passagem dos dias. Ontem foi terça, hoje é quarta e amanhã será quinta. Se você não acompanha o caos se instaura...”, responde alguém que está num ponto de ônibus para outra pessoa que disse que aquele dia estava com cara de quinta-feira.
Em Um Pombo Pousou...
Andersson deu continuidade aos seus personagens hesitantes, desajeitados, que
parecem a cada quadro desorientados e sem rumo – a absoluta disfuncionalidade
dos personagens em relação aos papéis que devem cumprir na sociedade.
O filme é composto de uma série de 39 esquetes irônicas e aparentemente
isoladas, pequenos flagrantes do cotidiano onde as pessoas parecem entediadas
em um universo com estranha atmosfera de artificialidade. Aparentemente
isoladas porque cada detalhe que vemos poderá ser retomado em uma esquete
futura.
Cada um dos longos planos (praticamente cada cena é um plano de câmera
fixo com personagens entrando e saindo como estivéssemos assistindo a um filme
do início do cinema) tem uma beleza estranhamente hiperreal – mistura de bege e
cinza, planos meticulosamente construídos em profundidade de campo. É como se assistíssemos
a uma série de quadros do pintor norte-americanos Edward Hopper (1882-1967) das
suas misteriosas pinturas com representações hiperrealistas da solidão
contemporânea nos escritórios, ruas, lanchonetes e hotéis.
Se no primeiro filme da trilogia Andersson focava um aspecto mais
“macro” (a crise econômica e espiritual europeias) e no segundo a escala
“micro” da angústia frente ao cumprimento dos papéis e convenções sociais, no terceiro
filme o diretor parece aprofundar a condição dos perdedores – se no segundo
filme Andersson expôs a disfuncionalidade cotidiana das pessoas cumprirem seus
papéis (aquilo que a Sociologia chama de “dramas de adaptação”), aqui
assistimos a derrotas e às mil pequenas mortes absurdas de todos os dias.
Morremos diariamente por termos que cumprir scripts repetitivos. Com
seus planos longos e fixos, Andersson nos obriga a nos distanciar para
percebermos o quanto cada cena cotidiana pode ser artificial e ridícula. Como
conclui um personagem na linha de diálogo acima, somos obrigados a ser assim:
obedientemente acompanhando os dias, senão “o caos se instaura”.
O Filme
Embora o filme pareça irregular com cenas fragmentadas, há um tema comum
que os une: os perdedores – embora cada esquete pareça silenciosa e serena, há
uma estranha tensão em cada personagem: elas parecem zumbis obrigados a cumprir
seus papéis da sociedade e do próprio filme, mas parece algo querendo explodir
em cada personagem. Eles tentam seguir em frente com fleugma e indiferença.
A professora de sapateado que tenta conter sua atração sexual pelo jovem
aluno; uma senhora no seu leito de morte no hospital que se agarra a sua bolsa
com joias e dinheiro pensando em levar tudo para o céu diante da resistência
dos seus filhos e parentes; a balconista que não sabe o que fazer com o pedido
do cliente que está morto no chão há mais de uma hora.
Um bar que é invadido pela comitiva do Rei Carlos XII da Suécia enquanto
lá fora passa uma procissão interminável e soldados e cavalos. O Rei,
reverenciado na Suécia como um gênio tático militar e ícone do machismo
nacional, aqui aparece como um jovem lânguido atraído por um rapaz balconista
enquanto pede um copo de água. Os soldados tentam manter a aparência diante da
“espontaneidade” do Rei. Todos parecem entrar em conflito com seus papéis,
convenções ou expectativas que a sociedade tem com eles em situações non sense e que beiram o humor negro.
Mas Andersson foca principalmente em uma dupla de completos losers e desajeitados: Jonathan e Sam,
uma dupla de vendedores de brincadeiras – nas suas malas estão produtos como
sacos de risadas, dentaduras de vampiro e máscaras hediondas do “Tio Banguela”.
“Nós queremos ajudar as pessoas a se divertir”, repete mecanicamente o
deprimido Jonathan.
Eles tentam repetir clichês motivacionais de vendas como “é um novo
produto em que jogamos todas as nossas fichas” ou “causar boas risadas seja em
festas caseiras ou corporativas”. Mas soa tão artificial como um nerd tentando ser engraçado e popular.
Tentam ser otimistas, mas um tristeza profunda dentro deles conspira contra.
Por isso são tímidos, parecem não ter tato para se relacionar com as
pessoas. Isso cria belas cenas de solidão que sempre remetem aos famosos
personagens solitários dos quadros de Edward Hopper.
Os "losers" de Andersson
O que impressiona na construção das cenas é fleugma ou frieza dos
personagens enquanto tudo ao redor está ficando pior: é recorrente no filme
cenas em que uma chamada de telefone faz o personagem perder o pé da situação
que está ocorrendo diante dos seus olhos. “Fico feliz que esteja tudo bem!”,
fala sempre ao telefone enquanto ao seu redor tudo vai mal – a cientista ignora
um macaco submetido a uma experiência de eletrochoque ou um barbeiro relutante
que vê seu único cliente ir embora.
Tudo aparenta uma normalidade cotidiana que esconde algo em ebulição que
está prestes a explodir.
A radicalidade do olhar de Andersson para os perdedores é que ele os vê
como estrangeiros – aquele que mantêm uma relação de total estranhamento com
aquilo que lhe é mais familiar e rotineiro. O que contrasta com os losers
hollywoodianos representados em filmes como Pequena
Miss Sunshine, Alta Fidelidade, Superstar: Despenca Uma Estrela ou Juno.
Os freaks da Kombi de Pequena Miss
Sunshine ou os adolescentes deslocados de Juno parecem disfuncionais funcionais: parecem ter nascidos para esses papéis,
são meticulosamente montados pelos roteiristas para se sentirem à vontade e
orgulhosos pela sua condição de viverem à margem do establishment.
Perdedores e Estrangeiros
Enquanto isso, nos filmes de Andersson os losers estão obrigados a
cumprirem os papéis sociais, sempre com o rosto crispados, tensos e internamente
sofridos. O que apenas cria situações de absurdo humor negro. Eles são
perdedores disfuncionais, nunca estão à vontade. Ao contrário dos losers de Hollywood onde o a condição de
perdedor vira um estilo de vida.
Por isso Andersson explora a essência gnóstica da condição humana de
estrangeira em seu próprio planeta, sociedade, família ou amigos. Para isso
cria estranhas atmosferas de artificialismo em cada cena para mostrar a
inadaptação dos personagens.
Para alcançar esse efeito, Andersson obriga os atores a reencenarem
diversas vezes a mesma cena, até conseguir chegar a um nível mágico de
artificialidade reforçado ainda pelas pesadas maquiagens em pancake.
Um artificialismo presente desde a primeira cena onde vemos o próprio
diretor parado catatônico olhando para a pomba do título do filme, empalhada e
pousada no galho em um museu de História Natural. Na conclusão da sua Trilogia,
Andersson parece querer nos dizer que somos tão artificiais como aquela pomba.
E assim deveremos ser, senão “o caos se instaura”.
Ficha Técnica |
Título: Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência
|
Diretor: Roy Andersson
|
Roteiro: Roy Andersson
|
Elenco: Holger Andersson, Nils Westblom,
Charlotta Larson
|
Produção: Roy Andersson Filmproduktion AB
|
Distribuição:
Magnolia Pictures
|
Ano: 2014
|
País: Suécia, Alemanha, Noruega, França
|
Postagens Relacionadas |