sexta-feira, setembro 19, 2025

Amnésia é o momentâneo esquecimento das falas do roteiro chamado "Sociedade" em 'The Actor'

 

Comparar a Política e os políticos a atores em um palco de teatro é uma tese clássica da Ciência Política. Mas sugerir que as convenções e papéis sociais seriam roteiros com linhas de diálogos de uma gigantesca produção teatral chamada Sociedade é o tema de um subgênero gnóstico no cinema, de filmes como “Quero Ser John Malkovich” e “Sinédoque, Nova York”. “The Actor” (2025), estreia de Duke Johnson (colaborador no filme de Charlie Kaufman “Anomalisa”), é mais um exemplo onírico e ambíguo – um interessante mix gnóstico-noir no qual a amnésia é o tema principal:  após sofrer um traumatismo craniano contundente, um ator de teatro acorda em um hospital sem nenhuma lembrança de sua vida passada e até mesmo com dificuldade para se lembrar dos mínimos detalhes de suas experiências diárias. E se a amnésia for um momentâneo esquecimento das linhas de diálogo de um roteiro criado por algum produtor da sociedade?

Quando falamos de parlamentares, presidente ou ministros como fossem atores num palco de teatro, estamos no campo da Ciência Política. Mas quando falamos da própria sociedade e seus indivíduos como que performassem papéis sociais como fossem atores que memorizaram as suas falas de um roteiro pré-estabelecido, estamos no campo do Gnosticismo.

Ou pelo menos nas produções do cinema e audiovisual com sabor gnóstico que tematizam a existência como um grande constructo ficcional, como nos filmes de Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich, Sinédoque, Nova York, Anomalisa, Estou Pensando em Acabar com Tudo) ou os filmes do diretor sueco Roy Anderson (Vocês, os Vivos e Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência) – reflexões surrealistas sobre o non sense das situações cotidianas que os papéis e convenções sociais nos insistem em colocar.

Duke Johnson, colaborador criativo de Charlie Kaufman em Anomalisa (2015), é o último diretor a se inserir nesta lista de filmes de sabor gnóstico na sua estreia em filmes longa-metragem live-action, a produção The Actor (2025) – Johnson teve uma carreira estável por quase duas décadas em produções de animação stop-motion para a televisão.

Mas de todos os filmes listados acima, The Actor é o filme mais onírico e ambíguo e, em sua maior parte, vago: é difícil dizer se as coisas estão realmente acontecendo na vida do ator Paul Edwin Cole ou se os eventos são apenas parte de sua performance no palco. Mas, afinal, não é assim na vida de um ator? Você nunca sabe realmente se eles estão sendo reais ou apenas fingindo. 



No entanto, The Actor é muito mais do que um filme autorreferencial, metalinguístico, em que o drama de um ator em busca de um papel ou de um ator que esqueceu a própria identidade real se torna um entretenimento autoindulgente.

Principalmente pelo seu sabor “gnóstico-noir” – um dos recursos mais utilizados pela maioria dos filmes desse gênero nos anos 1940-50 foi a amnésia. É o mecanismo perfeito para impulsionar a história adiante. Normalmente, o protagonista desses filmes está envolvido em uma batalha interna, lutando para reter suas memórias de uma vida (ou crimes associados ao seu personagem) antes que se envolvam em mais problemas. 

Isso é o que torna The Actor inerentemente com sabor gnóstico (o esquecimento da própria identidade como uma revelação da artificialidade dos papéis sociais) e noir – um gênero com grande afinidade com o Gnosticismo ao descrever um mundo que se desfaz em chuva e neblina, na qual nada é o que aparenta ser. Não haveria uma ilusão que ocultaria a realidade: a própria realidade já é ilusão.

Um relativamente famoso ator dos anos 1950, Paul E. Cole (interpretado por Andre Holland), um artista radicado em Nova York, se vê em uma situação difícil depois de se envolver com a esposa de outro homem enquanto sua trupe de teatro se apresentava em uma pequena cidade de Ohio. Após sofrer um traumatismo craniano contundente, Paul acorda em um hospital sem nenhuma lembrança de sua vida passada e até mesmo com dificuldade para se lembrar dos mínimos detalhes de suas experiências diárias.

O codiretor de Anomalisa adaptou este roteiro, que ele escreveu com Stephen Cooney, do thriller "Memória", de Donald E. Westlake. Enquanto o romance é propulsivo, um drama é imediato e objetivo, o filme em The Actor escolhe um estilo onírico (lembrando a cenografia de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ou Sonhando Acordado) para moldar seu filme como um sonho que você pode apreciar – com uma curiosa narrativa metonímica em que os personagens passam de um ambiente para outro como se apenas estivessem trocando de cenário.



 Os filmes gnósticos já sugeriram que a realidade pode nada mais do que um reality show (Show de Truman) ou uma realidade virtual gerada por máquinas (Matrix). Diferente dessas perspectivas, The Actor se insere na suspeita de que a própria sociabilidade seria nada mais do que um palco de teatro no qual performamos papéis uns para os outros – e as selfies das redes sociais que buscam a aprovação dos likes e engajamentos, seriam o paroxismo virtual da própria natureza da sociabilidade.

Se os papéis e convenções sociais forem nada mais que scripts de uma grande peça teatral coletiva, o principal e mais perigoso drama de adaptação dos atores sociais às linhas do roteiro, só pode ser a amnésia. “De que serve um ator que não consegue se lembrar de suas falas?”, sentencia ironicamente o médico que cuida do perplexo protagonista desmemoriado.

Para a sociologia funcionalista norte-americana como a de Talcott Parsons esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas.

Mas para o filme noir, a perda momentânea da memória por uma concussão ou entorpecimento por drogas ou álcool é muito mais do que isso: pode ser paradoxalmente um lapso de lucidez ao colocar a nu o artificialismo da realidade.


O Filme

O filme é estrelado pelo talentoso André Holland como um artista de teatro que sofre de amnésia após sofrer uma violenta pancada na cabeça. Seu agressor é o marido furioso da mulher com quem ele está tendo um caso tórrido. Não vemos muito do incidente instigante, mas Johnson oferece vislumbres suficientes no início do filme para nos ajudar a entender o que aconteceu.

Quando conhecemos o ator Paul Cole (Holland), ele está acordando de um sono involuntário. Sua visão está ligeiramente turva e leva um minuto para que a sala de cirurgia entre em foco. Um médico pergunta o nome do ator; Paul responde com certa apreensão. A briga foi feia e a polícia estava envolvida. Paul, rapidamente percebemos, tem sorte de estar vivo – Paul é um ator negro que faz parte de uma trupe com uma peça em cartaz na cidade. 

Estamos na década de 1950, em algum lugar no centro dos Estados Unidos, e o fato de Paul estar dormindo com uma mulher branca e casada escandaliza a comunidade. Uma corrente de racismo é sugerida, mas não explorada com a profundidade necessária.

Sem dinheiro suficiente para pegar o ônibus de volta para casa, ele encontra um trabalho braçal em um curtume em uma cidade próxima. Lá, ele conhece Edna (Gemma Chan), uma forasteira tímida com quem ele estabelece uma conexão romântica provisória conforme as estações mudam do outono para o inverno. Pouco antes do Natal, o desejo do ator de recuperar mais de suas memórias vence, e ele retorna a Nova York, com o objetivo de retomar sua antiga carreira e amizades, apesar de sua memória ainda fraca.

Chegando em Nova York, ele corre atrás das lembranças de quem ele é (ou já foi). A tragédia é que as coisas não saem como esse novo Paul havia imaginado. Ele não é mais um ator treinado. Não se lembra mais dos amigos próximos nem das pessoas com quem trabalhava. Sua empresária e representante, Helen Arndt, consegui um papel na TV para ele, mas o problema é que o novo Paul não sabe nada sobre o set. Ele se esforça ao máximo para atuar. Há tantos detalhes técnicos que um ator precisa lembrar, dos quais Paul obviamente esqueceu no estado amnésico. O resultado foi que Paul foi expulso do set, o que o fez perceber que não é mais adequado para a vida de ator, e por isso decide voltar para a pequena cidade onde Edna o espera para que possam construir uma vida juntos.



O senso de narrativa visual do diretor Duke Johnson é fascinante, especialmente com a forma como a cinematografia e a edição se fundem perfeitamente. Em toda a sua graciosidade, a câmera transita constantemente por diferentes ambientes, conectando memórias frequentemente fragmentadas repletas de iluminação diáfana. Estamos continuamente escurecendo e desaparecendo como momentos que quase beiram o estilo vinheta.

O design de produção requintado também é fantástico, combinando miniaturas bem implementadas e fundos oníricos que tentam criar um ambiente alucinatório. A trilha sonora de Richard Reed Parry é outro aspecto de The Actor que ajuda a imergir o público instantaneamente enquanto é reproduzida nos créditos iniciais do filme, remetendo a filmes dos anos 1940-50.

The Actor é um excelente encontro entre o filme gnóstico e o noir, ao encontrar a intersecção entre esses dois gêneros: o protagonista insone (o símbolo da não adequação do personagem à realidade em que vive e a resistência em dormir como necessidade de despertar para a verdade, como em Donie Darko, Matrix, Animais Noturnos, Cidade das Sombras etc.); a desesperada busca do resgate da memórias – o esquecimento como a própria condição humana; a paranoia (o medo de alguma maquinação arquitetada por alguém que não nos ama); e o esfacelamento de tudo que parece concreto – a confusão entre o sonho (ou o pesadelo) e a realidade.

A ideia forte do filme é essa: e se a amnésia for um momentâneo de esquecimento das linhas de diálogo de um roteiro criado por algum produtor da sociedade?

Estamos acostumados a pensar nos dramas e comédias do teatro e do cinema como alegorias ou microcosmos da sociedade – momentos de reflexão a partir da suspensão da incredulidade do espectador: faz de conta que é verdade.

The Actor sugere algo mais radical: e se os próprios instrumentos que fazem a ficção (roteiro, direção, produção, dramaturgia etc.) forem mais do que isso? E se a própria sociabilidade for um filme produzido in live-action?

E cada ida ao teatro ou ao cinema um exercício de metalinguagem?


 

 

Ficha Técnica 


Título: The Actor

Diretor: Duke Johnson

Roteiro: Duke Johnson, Stephen Cooney, Donald E. Westlake

Elenco: André Holland, Gemma Chan, May Calamwy

Produção: Innerlight Films

Distribuição:  Neon

Ano: 2025

País: EUA

 

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