sexta-feira, setembro 19, 2025

O novíssimo gótico americano hiper-real no filme 'Holland'

 


Há um fenômeno curioso no Meio-Oeste americano, a chamada “América Profunda”: a criação de enclaves temáticos que buscam replicar um ideal europeu higienizado – de cidades com nomes de capitais europeias a parques temáticos. Uma nação com uma relação mal resolvida com sua própria identidade. Elas representam uma fuga da complexidade e da violência da história americana em direção a um passado europeu imaginado, um simulacro de autenticidade. A produção Prime Video, “Holland” (2025), dirigido por Mimi Cave, é um exemplo de história sobre “segredos por trás de cercas de madeira”. Ambientada em Holland (Michigan), uma cidade que emula paisagens holandesas hiper-reais com festivais de tulipas e réplicas de moinhos de vento e vilarejos europeus, oculta adultério e crimes em série. É o novíssimo gótico americano: a verdadeira arquitetura do horror não reside em porões escuros ou figuras monstruosas, mas na precisão milimétrica de uma maquete e na fachada de tulipas de uma "América Profunda" que sonha em ser Europa.

Para esse humilde blogueiro, dois filmes sintetizam a sociedade norte-americana: Veludo Azul, de David Lynch; e Beleza Americana (1999), de Sam Mendes.

O filme de Lynch era mais um exemplo de história sobre “segredos por trás de cercas de madeira” de uma pequena cidade aparentemente florida, pacata e educada. Mas guardando segredos de um submundo de tipos criminosos.

E o filme de Sam Mendes, que utiliza a flor chamada “beleza americana” (tipo de rosa muito cultivadas nos EUA) com uma peculiaridade: ela não possui espinhos e nem cheiro, uma metáfora do vazio e superficialidade da verdadeira sociedade norte-americana.

Uma sociedade marcada pelo vazio existencial em que a ilusão e a simulação (representado pela poderosa indústria do entretenimento) tomou conta da realidade em todos os setores - como o marketing, publicidade e relações públicas dominaram da Política à própria sociabilidade.

Não à toa, é uma sociedade que precisa importar rituais e ícones de outros continentes para preencher esse vazio com alguma réplica de História e mitologia – Paris (Texas), Cambridge (Massachusetts), Cairo (Illinois), Melbourne (Flórida), Lavenworth (Washington) etc.

E Holland (Michigan) é uma cidade que exemplifica esse fenômeno curioso da "América Profunda": a criação de enclaves temáticos que buscam replicar um ideal europeu higienizado. Não são apenas homenagens; são sintomas de uma nação com uma relação mal resolvida com sua própria identidade. Elas representam uma fuga da complexidade e da violência da história americana em direção a um passado europeu imaginado, um simulacro de autenticidade.

As tulipas, belas e perfeitamente ordenadas que adornam fachadas réplicas de vilas holandesas, são o papel de parede que cobre as rachaduras do sonho americano. Ao intitular a cidade com o nome de um país europeu, seus fundadores (e seus atuais habitantes) participam de um ato de negação, tentando enxertar uma identidade antiga e "civilizada" no solo movediço do Novo Mundo.

O thriller psicológico de Mimi Cave (Fresh, Poker Face), Holland (2025), produção Prime Video, diagnostica essa patologia cultural: a verdadeira arquitetura do horror não reside em porões escuros ou figuras monstruosas, como no filme gótico. Mas na precisão milimétrica de uma maquete e na fachada de tulipas de uma "América Profunda" que sonha em ser Europa.



Nicole Kidman é a atriz perfeita (também produtora do filme) para esse papel: resgata os thrillers domésticos de outrora e explora constantemente a lacuna entre as fachadas públicas plácidas das mulheres e a turbulência privada. Com a qualidade costumeira das atuações de Kidman – e ela quase sempre entrega algo um pouco estranho, um pouco fora do comum e muito magnético.

Uma dona de casa suburbana com segredos e suspeitas, atormentada pela paranoia e se esforçando para manter as aparências. Como muitos personagens de Kidman antes dela, Nancy Vandergroot projeta perfeição – sorriso de boneca de porcelana, cabelo penteado, jantares familiares nucleares – e nutre grandes sonhos de fuga em seu ambiente asfixiante de aquário.  

Uma performance ao mesmo tempo assustadora, frágil e enervante, com a estranheza adicional da iconografia holandesa da cidadezinha de Holland, Michigan, uma cidade idílica localmente famosa por seu festival anual de tulipas. Centrada na suspeita de que seu marido, um optometrista conhecido e espeitado, está tendo um caso.

O que é apenas um pretexto para Nancy manifestar sua paranoia maníaca crescente – ela própria com um passado anterior ao casamento nebuloso, que viu no casamento com um homem respeitado o bilhete para uma vida “normal”. Vida normal cujas cercas cuidadosamente pintadas e canteiros com tulipas parecem esconder algo muito mais sinistro do que um mero caso fora do casamento em viagens de negócios.

Quanto mais Nancy se aprofunda em sua investigação amadora, mais o mundo bem cuidado de Holland parece desmoronar. Principalmente a maquete de Holland, obsessão que o marido conserva no porão, onde cada poste de luz, cada cidadão em miniatura é um pino no mapa da psique de seu criador, um demiurgo suburbano que só consegue se relacionar com o mundo ao reduzi-lo a uma escala que pode dominar com as próprias mãos.


O Filme

Kidman interpreta Nancy Vandergroot, professora de uma escola em Holland, Michigan, uma cidade reconhecidamente incomum no lado oeste da península inferior do Estado dos Grandes Lagos. Holland tem uma forte influência holandesa, que eles usam em eventos na temporada de tulipas, com direito a fantasias, desfile e shows.

Moinhos de vento e moças holandesas pontilham os cenários deste filme. Como se a própria cidade fosse cenográfica. Pessoas que se fantasiam para esconder seu verdadeiro eu. Mas há um uso lamentavelmente pequeno desse potencial comentário social – o filme não desenvolve esse aspecto como o esperado.

Nancy é casada com Fred Vandergroot (Matthew Macfadyen), um respeitado optometrista, e o casal tem um filho chamado Harry (Jude Hill). Fred adora brincar com um enorme conjunto de trens em miniatura no porão de Vandergroot, uma enorme maquete com recriações detalhadas de partes da Holland, tanto reais quanto imaginárias. Mais uma vez, o artifício surge como tema — uma versão falsa de uma cidade que já tem um ar de falsidade em sua apropriação da cultura europeia pelo Centro-Oeste amerinaco — e o conjunto de trens fornece algumas imagens e ideias interessantes enquanto a câmera percorre a paisagem em miniatura.

Ambientado em 2000, principalmente por causa de algumas gotas de agulha e tecnologia telefônica antiga, "Holland" começa com Nancy interrogando uma babá chamada Candy (Rachel Sennott), que Nancy está convencida de que roubou um brinco. Isso deixa Nancy em uma temperatura suspeita que sobe quando Fred faz outra viagem de negócios.

Será que os optometristas realmente têm tantas conferências? E por que ela encontrou uma passagem amassada de Madison, Wisconsin, quando ele deveria estar do outro lado de Michigan? Suspeitando que Fred está tendo um caso, Nancy parte em uma investigação amadora com um colega professor da escola chamado Dave Delgado (Gael García Bernal), que tem um evidente interesse romântico com Nancy.



À medida que os dois se aproximam da verdade sobre Fred, eles se aproximam um do outro, e o filme flerta com o humor por trás da ideia de que duas pessoas tentando provar a infidelidade a cometeriam elas mesmas.

Por sua vez, Nancy tem um passado obscuro do qual o seu respeitado marido a resgatou.

Mas Nancy é o tipo de mulher que quer ser uma esposa e mãe perfeita, mas também quer um pouco de mistério em sua vida e responde à atração do novo e bonito professor de sua escola. Ela é um tubarão suburbano, sempre nadando em direção a um objetivo quase impossível de manter sua reputação imaculada na comunidade, manter sua família unida e ter um caso com Dave. Enquanto suspeita da infidelidade de Fred.

A gnose americana – Alerta de Spoilers à frente

A investigação de Nancy e Dave logo confirma que Fred está realmente tramando algo suspeito – com a dupla descobrindo de tudo, desde algemas, roupas íntimas e até petiscos para cachorro, entre seus pertences no quarto de hotel.



Mas o maior avanço acontece quando Nancy decide dar uma olhada mais de perto na grande maquete ferroviária pela qual Fred fica obcecado durante boa parte do filme.

Ela percebe que, escondidos em várias casas da maquete, estão nomes de mulheres — e uma pesquisa mais aprofundada revela que todas são mulheres jovens que foram assassinadas nos últimos anos.

Acontece que Fred não é apenas um adúltero em série, ele é um assassino em série. E ele vem marcando suas vítimas e os locais de suas mortes em sua amada maquete. 

Esse é o novíssimo gótico americano. Nem o gótico europeu (com seus castelos e masmorras sombrias) e nem o gótico americano (o horror das cabanas remotas em meio de florestas escuras). Holland nos lembra desse novíssimo gótico americano, sugerido em produções de David Lynch e Sam Mendes: o horror e a violência ocultado pelo artifício hiper-real de uma América que desistiu da História para mergulhar no simulacro e na simulação.

Um gótico florido, iluminado, de cercas e canteiros lindamente pintados e organizados. Que revela uma nação com uma relação mal resolvida com sua própria identidade.

Nancy Vandergroot alcança a verdadeira gnose americana.


 

Ficha Técnica

 

Título: Holland

Diretor: Mimi Cave

Roteiro: Andrew Sodronki

Elenco: Nicole Kidman, Gael Garcia Bernal, Matthew Macfadyen

Produção: Amazon Studios

Distribuição:  Prime Video

Ano: 2025

País: EUA


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