Há um fenômeno curioso no Meio-Oeste americano, a chamada “América Profunda”: a criação de enclaves temáticos que buscam replicar um ideal europeu higienizado – de cidades com nomes de capitais europeias a parques temáticos. Uma nação com uma relação mal resolvida com sua própria identidade. Elas representam uma fuga da complexidade e da violência da história americana em direção a um passado europeu imaginado, um simulacro de autenticidade. A produção Prime Video, “Holland” (2025), dirigido por Mimi Cave, é um exemplo de história sobre “segredos por trás de cercas de madeira”. Ambientada em Holland (Michigan), uma cidade que emula paisagens holandesas hiper-reais com festivais de tulipas e réplicas de moinhos de vento e vilarejos europeus, oculta adultério e crimes em série. É o novíssimo gótico americano: a verdadeira arquitetura do horror não reside em porões escuros ou figuras monstruosas, mas na precisão milimétrica de uma maquete e na fachada de tulipas de uma "América Profunda" que sonha em ser Europa.
Para esse humilde blogueiro, dois filmes sintetizam a sociedade
norte-americana: Veludo Azul, de David Lynch; e Beleza Americana
(1999), de Sam Mendes.
O filme de Lynch era mais um exemplo de história sobre “segredos
por trás de cercas de madeira” de uma pequena cidade aparentemente florida,
pacata e educada. Mas guardando segredos de um submundo de tipos criminosos.
E o filme de Sam Mendes, que utiliza a flor chamada “beleza
americana” (tipo de rosa muito cultivadas nos EUA) com uma peculiaridade: ela
não possui espinhos e nem cheiro, uma metáfora do vazio e superficialidade da
verdadeira sociedade norte-americana.
Uma sociedade marcada pelo vazio existencial em que a ilusão e a
simulação (representado pela poderosa indústria do entretenimento) tomou conta
da realidade em todos os setores - como o marketing, publicidade e relações
públicas dominaram da Política à própria sociabilidade.
Não à toa, é uma sociedade que precisa importar rituais e ícones de
outros continentes para preencher esse vazio com alguma réplica de História e
mitologia – Paris (Texas), Cambridge (Massachusetts), Cairo (Illinois), Melbourne
(Flórida), Lavenworth (Washington) etc.
E Holland (Michigan) é uma cidade que exemplifica esse fenômeno
curioso da "América Profunda": a criação de enclaves temáticos que
buscam replicar um ideal europeu higienizado. Não são apenas homenagens; são
sintomas de uma nação com uma relação mal resolvida com sua própria identidade.
Elas representam uma fuga da complexidade e da violência da história americana
em direção a um passado europeu imaginado, um simulacro de autenticidade.
As tulipas, belas e perfeitamente ordenadas que adornam fachadas
réplicas de vilas holandesas, são o papel de parede que cobre as rachaduras do
sonho americano. Ao intitular a cidade com o nome de um país europeu, seus
fundadores (e seus atuais habitantes) participam de um ato de negação, tentando
enxertar uma identidade antiga e "civilizada" no solo movediço do
Novo Mundo.
O thriller psicológico de Mimi Cave (Fresh, Poker Face), Holland
(2025), produção Prime Video, diagnostica essa patologia cultural: a verdadeira
arquitetura do horror não reside em porões escuros ou figuras monstruosas, como
no filme gótico. Mas na precisão milimétrica de uma maquete e na fachada de
tulipas de uma "América Profunda" que sonha em ser Europa.
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Nicole Kidman é a atriz perfeita (também produtora do filme) para
esse papel: resgata os thrillers domésticos de outrora e explora constantemente
a lacuna entre as fachadas públicas plácidas das mulheres e a turbulência
privada. Com a qualidade costumeira das atuações de Kidman – e ela quase sempre
entrega algo um pouco estranho, um pouco fora do comum e muito magnético.
Uma dona de casa suburbana com segredos e suspeitas, atormentada
pela paranoia e se esforçando para manter as aparências. Como muitos
personagens de Kidman antes dela, Nancy Vandergroot projeta perfeição – sorriso
de boneca de porcelana, cabelo penteado, jantares familiares nucleares – e
nutre grandes sonhos de fuga em seu ambiente asfixiante de aquário.
Uma performance ao mesmo tempo assustadora, frágil e enervante,
com a estranheza adicional da iconografia holandesa da cidadezinha de Holland,
Michigan, uma cidade idílica localmente famosa por seu festival anual de
tulipas. Centrada na suspeita de que seu marido, um optometrista conhecido e
espeitado, está tendo um caso.
O que é apenas um pretexto para Nancy manifestar sua paranoia
maníaca crescente – ela própria com um passado anterior ao casamento nebuloso,
que viu no casamento com um homem respeitado o bilhete para uma vida “normal”.
Vida normal cujas cercas cuidadosamente pintadas e canteiros com tulipas
parecem esconder algo muito mais sinistro do que um mero caso fora do casamento
em viagens de negócios.
Quanto mais Nancy se aprofunda em sua investigação amadora, mais o
mundo bem cuidado de Holland parece desmoronar. Principalmente a maquete de
Holland, obsessão que o marido conserva no porão, onde cada poste de luz, cada
cidadão em miniatura é um pino no mapa da psique de seu criador, um demiurgo
suburbano que só consegue se relacionar com o mundo ao reduzi-lo a uma escala
que pode dominar com as próprias mãos.
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O Filme
Kidman interpreta Nancy Vandergroot, professora de uma escola em
Holland, Michigan, uma cidade reconhecidamente incomum no lado oeste da
península inferior do Estado dos Grandes Lagos. Holland tem uma forte
influência holandesa, que eles usam em eventos na temporada de tulipas, com
direito a fantasias, desfile e shows.
Moinhos de vento e moças holandesas pontilham os cenários deste
filme. Como se a própria cidade fosse cenográfica. Pessoas que se fantasiam
para esconder seu verdadeiro eu. Mas há um uso lamentavelmente pequeno desse
potencial comentário social – o filme não desenvolve esse aspecto como o esperado.
Nancy é casada com Fred Vandergroot (Matthew Macfadyen), um respeitado
optometrista, e o casal tem um filho chamado Harry (Jude Hill). Fred adora
brincar com um enorme conjunto de trens em miniatura no porão de Vandergroot, uma
enorme maquete com recriações detalhadas de partes da Holland, tanto reais
quanto imaginárias. Mais uma vez, o artifício surge como tema — uma versão
falsa de uma cidade que já tem um ar de falsidade em sua apropriação da cultura
europeia pelo Centro-Oeste amerinaco — e o conjunto de trens fornece algumas
imagens e ideias interessantes enquanto a câmera percorre a paisagem em
miniatura.
Ambientado em 2000, principalmente por causa de algumas gotas de
agulha e tecnologia telefônica antiga, "Holland" começa com Nancy
interrogando uma babá chamada Candy (Rachel Sennott), que Nancy está convencida
de que roubou um brinco. Isso deixa Nancy em uma temperatura suspeita que sobe
quando Fred faz outra viagem de negócios.
Será que os optometristas realmente têm tantas conferências? E por
que ela encontrou uma passagem amassada de Madison, Wisconsin, quando ele
deveria estar do outro lado de Michigan? Suspeitando que Fred está tendo um
caso, Nancy parte em uma investigação amadora com um colega professor da escola
chamado Dave Delgado (Gael García Bernal), que tem um evidente interesse
romântico com Nancy.
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À medida que os dois se aproximam da verdade sobre Fred, eles se
aproximam um do outro, e o filme flerta com o humor por trás da ideia de que
duas pessoas tentando provar a infidelidade a cometeriam elas mesmas.
Por sua vez, Nancy tem um passado obscuro do qual o seu respeitado
marido a resgatou.
Mas Nancy é o tipo de mulher que quer ser uma esposa e mãe
perfeita, mas também quer um pouco de mistério em sua vida e responde à atração
do novo e bonito professor de sua escola. Ela é um tubarão suburbano, sempre
nadando em direção a um objetivo quase impossível de manter sua reputação
imaculada na comunidade, manter sua família unida e ter um caso com Dave. Enquanto
suspeita da infidelidade de Fred.
A gnose americana – Alerta de Spoilers à frente
A investigação de Nancy e Dave logo confirma que Fred está
realmente tramando algo suspeito – com a dupla descobrindo de tudo, desde
algemas, roupas íntimas e até petiscos para cachorro, entre seus pertences no
quarto de hotel.
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Mas o maior avanço acontece quando Nancy decide dar uma olhada
mais de perto na grande maquete ferroviária pela qual Fred fica obcecado
durante boa parte do filme.
Ela percebe que, escondidos em várias casas da maquete, estão
nomes de mulheres — e uma pesquisa mais aprofundada revela que todas são
mulheres jovens que foram assassinadas nos últimos anos.
Acontece que Fred não é apenas um adúltero em série, ele é
um assassino em série. E ele vem marcando suas vítimas e os
locais de suas mortes em sua amada maquete.
Esse é o novíssimo gótico americano. Nem o gótico europeu (com
seus castelos e masmorras sombrias) e nem o gótico americano (o horror das
cabanas remotas em meio de florestas escuras). Holland nos lembra desse
novíssimo gótico americano, sugerido em produções de David Lynch e Sam Mendes: o
horror e a violência ocultado pelo artifício hiper-real de uma América que desistiu
da História para mergulhar no simulacro e na simulação.
Um gótico florido, iluminado, de cercas e canteiros lindamente
pintados e organizados. Que revela uma nação com uma relação mal resolvida com
sua própria identidade.
Nancy Vandergroot alcança a verdadeira gnose americana.
Ficha Técnica |
Título: Holland |
Diretor: Mimi Cave |
Roteiro: Andrew Sodronki |
Elenco: Nicole Kidman, Gael
Garcia Bernal, Matthew Macfadyen |
Produção: Amazon Studios |
Distribuição: Prime Video |
Ano: 2025 |
País: EUA |