Tudo se passa em 2020, época da pandemia COVID-19 e lockdown. Mas encontramos a mesma divisão social, a mesma incapacidade de concordar com uma realidade consensual, a mesma paranoia, medo e desinformação das redes sociais. E o mesmo presidente, Trump! Quando estreou no Festival de Cannes esse ano, a crítica observou: “quanto mais as coisas mudam, mais ficam iguais”. Estamos falando de “Eddington” (2025), filme de humor negro escrito e dirigido por Ari Aster, mestre do horror de alto conceito como “Hereditário” e “Midsommar”. Aqui, Aster dá conta do horror social de uma pequena cidade no Novo México que mergulha no caos e violência na medida em que os conflitos locais e de vizinhança são turbinados pela pauta nacional repercutida pelos feeds das redes sociais. “Eddington” didaticamente descreve uma nova engenharia social que substituiu a clássica criação do inimigo externo. Agora, o inimigo é INTERNO, alimentado pela criação da cismogênese: as pessoas sentem claramente que há algo errado, mas a desconfiança mútua, o medo e a paranoia superam qualquer coisa. Deixando de ver que o verdadeiro problema está ali, sendo incubado na frente de todos.
Na ciência política, a criação do inimigo externo é uma tática
usada clássica por governos e regimes para consolidar o poder e gerar coesão
nacional. Construir de uma ameaça imaginária para justificar a
concentração de poder, justificar a repressão e desviar a atenção de problemas
internos, moldando uma narrativa de "nós contra eles" para fortalecer
o apoio popular e isolar o país de influências externas.
Mas algo mudou nesse século, desde os ataques de 2001 nos EUA,
certamente o último momento em que a estratégia do inimigo externo funcionou –
a guerra ao terror cujo inimigo externo foi representado pelo fundamentalismo
islâmico que ofereceu o pretexto para o Congresso dar carta branca ao
presidente George Bush e seus falcões da guerra.
Mudou-se o foco: do inimigo externo passamos à criação do inimigo
INTERNO. Mas não exatamente a busca de UM inimigo. Mas através da estratégia de
uma cismogênese complementar (Gregory Bateson) criar vários, isto é, o incentivo da escalada de
conflitos entre grupos (classes sociais, ideologias políticas etc.), fazendo-os
reagir às ações um do outro - cria um ciclo, onde a reação de um grupo
influencia o comportamento do outro, que por sua vez induz uma nova reação,
levando a uma escalada de diferenças e rupturas.
A mídia, principalmente as redes digitais, teriam um papel crucial
ao acender o pavio quando determinados conteúdos são viralizados e engajados, com
denúncias, provocações, conspirações, golpismos, falsa espiritualidade, empatia
cuidadosamente calibrada para atrair eleitores e ativista on line. Gerando o
fenômeno da guerra cultural (uma guerra sobre normas e comportamentos) que
acaba se confundindo com a guerra política.
O resultado imediato é o enfraquecimento da Democracia pelo
enfraquecimento da esfera pública pela impossibilidade da criação de qualquer
consenso através de um debate racional. Porém, o principal objetivo é
diversionista: governo ou regime pode implementar uma agenda sem que a
sociedade perceba, consumida em que está por uma guerra fraticida.
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Assim as democracias morrem: pelo lento envenenamento diário de
corações e mentes com ódio, paranoia e medo. Terrorismo do imaginário e da
política.
Então, se o tema é terror, o diretor Ari Aster é o nome certo. Seu primeiro longa, Hereditário (clique aqui), e seu
segundo, Midsommar (clique aqui) , foram um enorme
sucesso para a distribuidora A24 e ajudaram a despertar o debate sobre o
conceito de " horror elevado ".
Com seu ambicioso Beau Tem Medo (clique aqui), uma comédia de terror
de três horas estrelada por Joaquin Phoenix, não foi exatamente um sucesso
de bilheteria, mas certamente gerou bastante discussão entre críticos e
espectadores.
Mas seu quarto filme Eddington (2025) é o mais polêmico até
agora. Aster se especializou em horrores arrepiantes e sobrenaturais, o
tipo de choques alucinantes e altamente simbólicos que perduram por semanas - a
parábola demoníaca da família em Hereditário e o pesadelo
sueco do solstício Midsommar. Mas em Eddington, ele
enfrentou não um, mas dois bichos-papões insidiosos que assombram nossas
psiques: conteúdos duvidosos das redes sociais em celulares e a Covid.
Em Eddington, retornamos para 2020 que o leitor certamente
lembrará de alguns detalhes: pandemia e distanciamento
social, discursos inflamados nas redes sociais, cotonetes sendo enfiados
violentamente nas fossas nasais, "Não Consigo Respirar" e o movimento
Black Lives Matter, revoltas nas ruas nos EUA que acompanhávamos reclusos em
nossas casas pela TV.
É uma loucura pensar que tudo isso aconteceu há meia década. É
ainda mais louco ignorar a sensação crescente de que ainda estamos presos numa
cena que se repete, quando as fraturas do estresse social provocado pela
cismogênese e polarização política se tornaram abismos, como se estivéssemos
condenados a repeti-lo como uma variação amaldiçoada do filme Feitiço
do Tempo.
Eddington é
tecnicamente um filme de época, visto que se desenrola ao longo de vários dias
no já mencionado período fatídico da Covid. O filme, no
entanto, não parece de um único gênero. Tire as máscaras da Covid, e teremos
uma mistura de faroeste moderno, sátira política e vários outros gêneros
misturados em um ataque de pânico maníaco e paranoico que poderia ser ambientado
na atualidade.
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A mesma divisão social, as mesmas acusações, a mesma incapacidade
de concordar com uma realidade consensual, mesma ansiedade constantemente
presente. E, o último e não menos importante, o mesmo presidente, Trump.
Como a crítica definiu no Festival de Cannes, onde Aster estreou o
seu mais recente pesadelo: Plus ça change, plus c'est la même chose.
Numa tradução livre “quanto mais as coisas mudam, mais ficam iguais”.
O Filme
As duas horas e meio de
Eddington abrem e fecham com um projeto que será brevemente construído e
que promete para os moradores da pequena cidade do Novo México, que dá título
ao filme, a entrada no futuro da alta tecnologia gerando empregos: um enorme
data center.
Percebemos que há duas agendas correndo paralelo: o debate em
torno da questão ambiental que envolve o funcionamento de um data center numa
região desértica e carente de água – gigantescos servidores que consomem muita
energia para processar um volume absurdo de informação e muita água para
refrigeração.
Mas o que domina mesmo é a paranoia, medo e ódio repercutido pelas
redes sociais em torno da pandemia, vacinas, isolamento social e a
obrigatoriedade do uso das máscaras. Enquanto o gigantesco centro de
processamento de dados praticamente desaparece da narrativa. Embora a sequência
final com a inauguração da enorme instalação dê todo o sentido ao filme.
os problemas estão se formando. Os bloqueios da pandemia estão a
todo vapor, mas o xerife da cidade, Joe Cross (Joaquin Phoenix, canalizando o
mesmo personagem infeliz que exibiu em Beau Tem Medo), não gosta de
máscaras. Especificamente, ele não concorda com a ideia de impor uma ordem
estadual para que as pessoas as usem, porque as liberdades pessoais importam
mais do que a segurança pública, além disso, o vírus é uma farsa e assim por
diante.
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O prefeito, Ted Garcia (Pedro Pascal), tenta ser paciente com este
oficial da lei, mas os dois homens têm uma história tempestuosa. Parte disso
tem a ver com um possível data center a ser construído em Eddington. Mas também
tem a ver com a esposa de Cross, Lou (Emma Stone), que já namorou Garcia. Muito
disso tem a ver com pontos de vista diametralmente opostos, agravados ainda
mais pela Covid e pelas guerras culturais crescentes nos EUA do primeiro
mandato de Donald Trump.
Após uma briga no supermercado local, Cross percebe uma
oportunidade de capitalizar em cima das frustrações de alguns cidadãos. Ele
anuncia impulsivamente, por meio de uma transmissão ao vivo no Facebook, que
está concorrendo à prefeitura contra Garcia nas próximas eleições. A campanha
de difamação começa imediatamente.
Nem sua esposa nem sua sogra, teórica da conspiração (Deidre
O'Connell) aprovam a nova obsessão de Joe por política. Especialmente desde que
Lou se interessou curiosamente por um guru da internet, um investigador e
excêntrico chamado Vernon Jefferson Peak (Austin Butler) e suas ideias sobre
vastas redes de pedófilos poderosos que controlam o poder global.
Enquanto isso, um adolescente chamado Brian (Cameron Mann) se
torna "radicalizado" pelos slogans Black Lives Matter e protestos pela
morte de George Floyd (nego morto pela polícia que inspirou a luta
anti-racista), principalmente porque uma jovem chamada Sarah (Amélie Hoeferle)
está lendo um livro de Angela Davis. Logo, ele está liderando protestos na avenida
principal e falando sobre o privilégio branco. Janelas quebradas, agitadores
externos, vídeos virais que atiçam chamas, acusações de operações de bandeira
falsa da Antifa.
O mesmo acontecerá com a tentativa de Joe de sugerir que seu rival
candidato a prefeito é um predador sexual, uma jogada que espetacularmente sai
pela culatra para ele. Ele logo é empurrado para a beira do abismo. E as coisas
desmoronam, fazendo a narrativa de Eddington entrar em um clima absurdo ao
estilo dos equivocados personagens dos filmes dos irmãos Cohen. Frustração,
raiva, medo e indignação se transformam em caos absoluto.
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Os personagens de Eddington implodem, se enredam e perdem a cabeça
diante desse cenário assustadoramente familiar: estudantes do ensino médio mascarados
reunidos em grupos do lado de fora, ordens de uso de máscaras impostas pelo
governador, assembleias públicas virtuais que resultam em mais paranoia e
desinformação.
Alguns caem na paranoia da internet rumo à ilusão. Outros
acompanham o Instagram para acompanhar as crescentes fileiras de protestos em
todo o país. Vizinhos duvidam uns dos outros, e até mesmo a menção à vida dos
negros expõe tensões raciais mal disfarçadas. Em todos os lugares, pelo menos
na primeira metade do filme, há uma sensação de apreensão — uma desorientação
devido à rápida confusão entre o certo e o errado, uma enxurrada de manchetes explosivas
nos feeds e assembleias públicas virtuais que resultam em mais desinformação e
instabilidade.
O essencial e o acessório – Alerta de
Spoilers à frente
Como colocamos acima, duas agendas correm paralelas em Eddington: a inauguração do gigantesco data center e a deliberada criação de cismogênese entre grupos políticos e sociais pela desinformação nas onipresentes redes sociais.
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O filme termina com a inauguração do empreendimento chamado “Solidgoldmagikarp”
erguendo-se no meio do deserto do Novo México, nos arredores de Eddington – o nome
faz referência a um token que causa interrupções ou comportamento errático na
IA.
Em meio ao caos, o filme termina com perdedores e vencedores, mas
há apenas um vencedor inequívoco: o data center.
O data center parece um detalhe periférico no filme, mas
absolutamente central: é um data center em hiperescala, vinculado à IA.
Começamos com a promessa de que isso aconteceria e terminamos com ela sendo
cumprida.
Há duas maneiras para interpretar o filme. E elas se
interpenetram: (a) o filme Eddington é uma didática descrição, em detalhes, de
como é possível em uma sociedade estabelecida criar uma situação incontrolável
de cismogênese, que funciona dentro uma clássica estratégia diversionista:
desviar o foco da opinião pública do essencial (os graves problemas ambientais para
a cidade que seriam criados pelo data center numa área desértica) para o
acessório (desafetos pessoais que ganham uma dimensão épica através dos feeds
das redes sociais).
(b) Todo o caos e material de desinformação postado nas redes em
processos cismogênicos complementares nada mais são do que dados de treinamento
para uma IA em machine learning. Em outras palavras, antes da inauguração da
Solidgoldmagikarp, a pequena Eddington já serviu como treinamento da IA, ao
repercutir localmente as grandes pautas nacionais.
Eddington é um filme niilista: enquanto as pessoas se engajam
acaloradamente em questões que julgam entenderem e que têm supostamente controle
sob causas e consequências, sem saberem uma outra crise, ainda maior, está sendo
incubada diante de todos.
Ficha Técnica |
Título: Eddington |
Diretor: Ari
Aster |
Roteiro: Ari Aster |
Elenco: Joaquin Phoenix, Emma
Stine, Pedro Pascal, Deirdre O’Connell |
Produção: A24 |
Distribuição: A24 |
Ano: 2025 |
País: EUA |