“Vocês, os Vivos” (Du Levande, 2007) resgata o humor pelos perdedores e inadaptados esquecido na história do cinema. O diretor sueco Roy Andersson nos convida a rirmos não dos personagens hesitantes, desajeitados e sem rumo que povoam seu filme, mas do absoluto “non sense” das situações cotidianas que os papéis e convenções sociais nos insistem em colocar. Diferente do humor regressivo atual da indústria do entretenimento onde rimos de toda uma gama de perdedores e inadaptados, Andersson explora o humor negro e “non sense” que direciona o nosso riso para a ironia de um sistema social perverso que produz sem parar disfunções e sofrimento.
Certa vez um
amigo meu repentinamente deixou de frequentar bailes de carnaval em clubes de
Santos/SP. Logo ele que não deixava passar um carnaval em branco! “O que lhe
aconteceu?”, perguntei espantado. Meio envergonhado, ele explicou que, pela
primeira, aceitando um convite de amigos abonados, passou parte do carnaval em
um camarote VIP. De lá do alto, viu os foliões pulando, bebendo e brincando.
Olhando a cena à distância tudo lhe pareceu ridículo: centenas de pessoas
bêbadas, desajeitadas e dando encontrões uns nos outros. Para ele foi um choque,
tudo parecia sem sentido, bizarro. Nunca mais conseguiu ser um folião!
Parece que o
diretor sueco Roy Andersson com o filme “Vocês, Os Vivos” quer produzir em nós
esse mesmo efeito, dessa vez não com algo lúdico como o Carnaval, mas com os
papéis e convenções sociais que desempenhamos automaticamente e sem pensar em
nosso cotidiano.
O filme é
composto por uma série de 57 sketches divididos em 94 minutos. O filme segue o
mesmo estilo do anterior “Songs from the Second Floor” (2000 - já discutido nesse blog - veja links abaixo), compondo o
segundo trabalho de uma trilogia que Roy Andersson pretende terminar com mais
outro filme em 2013. Se no filme anterior Andersson focava um aspecto mais
“macro” (a crise econômica e espiritual; Capitalismo, Igreja e corrupção; fé e
angústia), aqui em “Vocês, os Vivos” ele busca a escala “micro” dos papéis e convenções
sociais.
O que é
recorrente nos sketches é a absoluta disfuncionalidade dos personagens em
relação aos papéis que devem cumprir na sociedade: os juízes que bebem cerveja
enquanto condenam o réu à morte; a professora que não consegue iniciar a aula porque,
em prantos, revela para atônitas crianças que brigou com o marido antes de sair
de casa; o pai complacente que não consegue dar lição de moral ao filho que
vive fazendo empréstimos e rouba dinheiro da mãe; a esposa deprimida e
alcoólatra que vê no marido e no cachorro personagens de um complô para
tornarem a sua vida mais miserável; o músico que relata, enquanto faz sexo
desajeitado com sua rotunda esposa (ela com um capacete do exército alemão da
era do chanceler Bismarck), que perdeu toda sua aposentadoria em péssimos investimentos; o
psicólogo que cansou de tentar fazer as pessoas felizes por 27 anos e que
decide prescrever comprimidos tranquilizantes ao invés de terapias.
Todos eles vivem
o que a sociologia chama de “dramas de adaptação” em relação aos papéis
sociais.
Papéis sociais
são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no
exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação,
scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma, cotidianamente,
não importando a subjetividade ou necessidades ou carências psíquicas
individuais. Para a sociologia funcionalista norte-americana como a de Talcott
Parsons esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de
disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade
espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação
do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas.
Percebe-se essa
preocupação de Roy Andersson em retratar nos sketches essa disfuncionalidade
dos personagens em relação a uma ordem social: os planos de câmera são fixos e
gerais, sempre situando o indivíduo disfuncional inserido num plano maior,
perdido em um cenário de ambientes ameaçadoramente amplos, vazios. Os
personagens são sempre fisicamente desajeitados e psicologicamente hesitantes.
Muitas vezes
rimos das situações “non sense”. Tal como no caso acima do meu amigo que deixou
de ser folião depois que viu um baile de carnaval em perspectiva, também em
“Vocês, os Vivos” Roy Andersson quer que vejamos todas as cenas de uma
perspectiva distante, como observadores imparciais, como alienígenas que
acompanham os gestos e comportamentos humoristicamente incompreensíveis dos
humanos.
Dramas de Adaptação: a matéria-prima do
Cinema
Os dramas de
adaptação, a própria condição humana de viver em sociedade, é a fonte de
inspiração em temas de diversos gêneros fílmicos. Provavelmente é a partir do
chamado “cinema slapstick” da década de 1920 nos EUA que encontramos essa
situação humana levada ao paroxismo. Chaplin, Gordo e o Magro, Buster Keaton ou
Harold Loyd sempre representaram heróis disfuncionais, seres inconscientes e
inofensivos que arrancam gargalhadas por serem inadaptados ao sistema de papéis
sociais. Mas o importante é que rimos com
eles e não deles. Rimos das situações
absurdas que um sistema social joga os indivíduos e como a solicitude,
confiança, empolgação e amizade superam os problemas arbitrários e caóticos.
Rimos do sistema e não do verdadeiro calvário do herói.
Mais adiante, o
filme Noir foi o último momento em que os dramas de adaptação foram
representados de forma progressista: o detetive (sempre disfuncional, fumante,
alcoólatra, sem família, errante e atormentado) tenta desvendar conspirações
absurdas perpetradas pela ambição e cobiça estimulada por uma sociedade
materialista e corrupta.
No pós-guerra e
no verdadeiro enquadramento moral submetido às produções hollywoodianas o
sentido se inverte: o protagonista disfuncional passa a ser ridicularizado como
um “looser”, terapeutizado pela sociedade para tornar-se funcional no desfecho
da narrativa ou, mesmo quando glorificado como “rebelde”, tem que submeter aos
modelos funcionais estéticos de beleza, heroísmo e glamour.
"Pequena Miss Sunshine": "freaks" hoolywoodianos meticulosamente planejados - os disfuncionais funcionais |
Por exemplo,
James Dean, com seu sex appeal e “physique du rôle”, parece ter nascido para o
papel de “rebelde sem causa”. Cada um dos freaks daquela Kombi que cruza a
América no filme “Pequena Miss Sunshine” (Little Miss Sunshine, 2006) parece ter sido meticulosamente planejado para o rendimento dos papéis de “losers”. São felizes, não há um
pingo de tensão dentro da sua condição de inadaptados, ao contrário dos
personagens de “Vocês, os Vivos”: crispados, tensos e internamente sofridos.
Dessa maneira, o
riso da indústria do entretenimento torna-se regressivo: quando vemos Tio
Patinhas chutando o traseiro do Pato Donald, rimos da vítima por ser um
“loser” que não se adapta, sempre ridicularizado pelos sobrinhos Huguinho,
Zezinho e Luizinho. Não rimos mais com
ele, mas, agora, dele.
Roy Andersson em “Vocês, os Vivos” parece retomar esse humor pelos disfuncionais perdido na história do cinema. Rimos não dos protagonistas (por serem feios e desajeitados), mas do absoluto “non sense” que os papéis e convenções sociais nos colocam. Rimos do entorno dos planos gerais da narrativa e não dos heróis que se arrastam tristes, hesitantes e sem rumo.
Os "disfuncionais funcionais" hollywoodianos
Esse é o
diferencial flagrante entre os heróis hollywoodianos e os de Roy Andersson: os
“rebeldes” de “Vocês, os Vivos” não são “aerodinamizados” para serem heróis,
eles não possuem as características hollywoodianas de protagonistas
(esportividade, dinamismo, beat, drive etc.). Em outras palavras, eles não são
“disfuncionais funcionais”. Pelo contrário, são enfadonhos, hesitantes, tensos,
não sabem o que fazer dentro dos planos gerais focalizados pela câmera, ficam
sentados, encostados, ou em pé cambaleando... Não são ridículos, eles estão
ridículos pelo fato de o sistema social de convenções os ter jogado naquelas
situações.
A única cena
romântica do filme (os jovens noivos – ele o guitarrista roqueiro e ela uma fã
da sua banda) apresenta um casal desajeitado em um momento de felicidade, sem
saber cumprir direito as expectativas que a multidão lá fora aguarda de jovens
em início de lua de mel. Enquanto o jovem toca
um lindo fraseado na guitarra, a casa inteira se move como um trem partindo de
uma estação. Talvez essa cena torne o filme mais otimista que o anterior “Songs
from the Second Floor”: jovens que abandonam os estereótipos sociais e partem
deixando a expectativa da multidão para trás. Andersson parece ver uma
esperança futura nos jovens, ao contrário do filme anterior onde essa esperança
é literalmente empurrada por um abismo abaixo pelos representantes do Estado e
da Igreja.
A composição
rígida dos cenários (ambientes em mármore, paredes altas, pisos em granito,
prédios antigos, marcações de cena rigorosas etc.) se confronta em cada enquadramento
com a hesitação, o ar vago e a incerteza dos personagens. Em uma narrativa
convencional certamente não teríamos o efeito que Andersson consegue com a
sequência de sketches curtos: colocar-nos numa posição de observadores frios e
distantes acompanhando como o conflito entre a rigidez das normas e convenções
e a subjetividade cria situações humoristicamente sem sentido.
Ficha Técnica
- Título: Vocês, os Vivos (Du Levande)
- Diretor: Roy Andersson
- Roteiro: Roy Andersson
- Elenco: Jessika Lunderberg, Elisabeth Elander, Björn Englund
- Produção: 4 1/2 Film, Canal +, Det Danske Filmistitute, Eurimages Council of Europe
- Distribuição: Filmes da Mostra 2009 Brasil
- Ano: 2007
- País: Suécia, Alemanha, França e Noruega
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