A memória é o que nos torna quem somos. Mas, se as memórias são resultantes das nossas percepções mais
subjetivas (cor, cheiro, sons etc.) podem ser interpretações e não gravações da
realidade. Por isso, podem se tornar armadilhas, quanto mais imergimos nelas.
Desde o filme “Amnésia” (2000) de Christopher Nolan esse perigo é tematizado
mais seriamente pelo cinema, até chegarmos a “Remainder” (2015): após um
acidente traumático, um jovem perde a memória e tenta montar o quebra-cabeças
das lembranças que restaram com um método extremo: com o dinheiro da milionária
indenização o protagonista monta gigantescos estúdios com atores contratados
para obsessivamente encenar seus cacos de memória. Mas o que deveria ser uma
progressiva conexão com a realidade, começa a se tornar um vício compulsivo.
Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
A perda da memória é uma temática muito presente nos filmes
gnósticos. Desde Amnésia (Memento,
2000) de Christopher Nolan, o tema da perda da memória está associado à
paranoia e a desconfiança sobre a substancialidade do real: se aquilo que
entendemos por “real” é o resultante da subjetividade da nossa percepção e
memória, qual a garantia que temos sobre a solidez do mundo supostamente real?
Além da perda da memória ser o simbolismo da condição humana
(somos exilados de nós mesmos pelo sono do esquecimento), a própria memória
pode também ser questionada como algo propositalmente fabricado como falsas
memórias. Como em Blade Runner (1982)
no qual os androides replicantes colecionavam fotos de infâncias que jamais
tiveram; ou as fotos do protagonista Truman de familiares que na verdade eram
apenas atores – Show de Truman, 1998.
Remainder retoma o tema de Amnésia
de Nolan - o protagonista perdeu a memória e tenta retomar o fio da meada de
uma linha de tempo esquecida. Mas enquanto no filme de Nolan o protagonista
passa a desconfiar das suas memórias e principalmente dos seus próprios post
its (o protagonista sofria de perda da memória de curto prazo), em Remainder o protagonista tentar juntar o
quebra cabeças dos flashs de memória.
Mas dessa vez é nós, espectadores, que começamos a desconfiar da
ambiguidade das lembranças fragmentadas: o protagonista se dirige a becos sem
saída? As memórias são verdadeiras? Ou o protagonista já morreu e vive em um
purgatório de repetições?
E também o método para buscar o fio da meada será bem diferente de
Amnésia. Lembrando o filme Sinédoque,
Nova York (2008) de Charlie Kaufman, o protagonista tentará reencenar as
situações das memórias através de cenografias as mais exatas possíveis com a
realidade. Através de uma obsessiva live
action, o protagonista tentará imergir nas memórias na esperança de que
surjam espontaneamente os pedaços que faltam do quebra-cabeças mental.
O Filme
Remainder é uma
adaptação do cultuado livro homônimo de 2005 do escritor inglês Tom McCarthy
sobre um jovem em estado amnésico após um traumático acidente que tenta
obsessivamente dar sentido aos fragmentos de memórias que restaram.
Acompanhamos a estória de Tom (Tom Sturridge), um jovem que
caminha em pleno centro de Londres arrastando uma mala preta com rodinhas. Ele
tenta pegar um táxi nas ruas movimentadas, até que ouve o som de estilhaços de
alguma cobertura de um dos prédios que está vindo abaixo. Um dos pedaços o
atinge, deixando-o gravemente ferido e em estado de coma.
Enquanto os advogados discutem o acordo sobre a indenização pelo
acidente, Tom desperta no hospital. O que deixa os advogados em uma saia justa:
eles têm que comprar o silêncio do rapaz para evitar que a vítima faça
estardalhaço na mídia.
Tom recebe uma indenização milionária pelo silêncio – afinal, como
ironicamente fala, ele não lembra de nada mesmo, a não ser de pedaços de
memórias de algum momento recente da sua vida. Mas nada parece fazer sentido.
Tudo complica ainda mais quando passa a ser perseguido por homens
violentos que tentam a todo custo reaver aquela mala preta de rodinhas que,
supostamente, tinha um grande valor em dinheiro. Mas Tom não lembra mais do
destino daquela mala e nem do seu conteúdo.
Enquanto Tom vive a rotina das sessões de fisioterapias, ele
começa a ser tomado por sucessivos déjà-vus
que aos poucos transforma-se em cacos de memórias. Ele se recorda de um
edifício que pode ter vivido ou não.
Usando a sua fortuna contrata um especialista em segurança e
logística e compra dois edifícios inteiros para recriar o design exato das suas
memórias em todos os detalhes. Atores profissionais e amadores são também
contratados, além de gatos que deverão ser treinados para ficarem andando no
telhado vizinho. Uma mulher deverá ficar constantemente cozinhando fígado no
seu apartamento (o cheiro é uma variável importante), enquanto outro “morador”
deverá tocar constantemente uma peça de Chopin ao piano, enquanto outro morador
deverá repetidamente atravessar as escadarias carregando sacos de lixo, e assim
por diante
Obsessivamente, Tom passa 24 horas do dia repetindo essas cenas,
tentando imergir nelas através de todos os sentidos corporais.
Mas o que deveria ser uma progressiva conexão com a realidade,
começa a se tornar um vício compulsivo pela repetição das encenações. É uma
questão de tempo para as coisas ficarem fora do controle, ainda mais que Tom
passa a ter crises catatônicas como fossem flash backs das re-encenações.
As encenações começam a ficar mais torturantes e violentas até que
o segundo prédio adquirido é montado para recriar a sequência de um assalto a
um banco em um imenso estúdio, com ruas do centro de Londres cenograficamente
recriadas.
O Detetive e a memória
Tom é o característico personagem gnóstico do Detetive, para o
qual o tema da memória é central dentro da narrativa desse subgênero fílmico.
A memória do
protagonista foi perdida. Mas não por uma simples amnésia momentânea. Este
esquecimento é a própria constituição do seu ser e da própria realidade que o
envolve de forma conspiradora. Ele tem que resolver um enigma proposto, sem
saber que a solução final desse enigma levará à própria identidade perdida ou
esquecida.
Esta perda cria
o estado de paranoia: em quem confiar? Como distinguir a verdade da mentira, a
ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem causalidade? Como saber se
o que ele sente é sanidade ou loucura? É através desse estado psicológico que o
iniciado encontrará a iluminação.
Mas não para o
caso de Tom. Ele parece ser um detetive que esqueceu do alerta do protagonista
de Amnésia, Leonard, sobre a desconfiança de suas próprias memórias e da
concreticidade do mundo, já que todas as lembranças são baseadas em percepções
subjetivas. O real passa a ser uma questão de crença, e não de objetividade
como dizia Leonard em Amnésia:
“Eu tenho que crer num mundo fora da minha mente. Tenho que crer que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não consiga lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham o mundo permanece lá. O mundo ainda está lá? Está lá fora? Sim. Todos nós precisamos de espelhos para relembrar a nós mesmos quem somos. Eu não sou diferente.” (Amnésia, 2000).
Memória e solipsismo – aviso de spoilers à frente
A compulsão e
viciosidade do método de Tom para recuperar a memória o conduz progressivamente
ao solipsismo, principalmente no final onde o mapa substitui o real, a
cenografia toma a própria realidade – uma re-encenação de um assalto a um banco
que deve ser tão perfeita e espontânea que, sem saberem, os atores são levados
a um banco real no centro de Londres. Ao entrarem, acreditam estar no imenso
estúdio dos repetitivos ensaios.
Assim como no
livro de Tom McCarthy, o final é ambíguo, sugerindo uma memória em loop onde
não sabemos se o protagonista está vivo ou morreu no acidente que abre a
narrativa – poderiam ser os fragmentos de uma cobertura que despencam sobre ele
no início do filme escombros do próprio gigantesco estúdio que criou?. Tal como
a serpente mitológica ouroboros que come a própria calda, Tom vive
esquizofrenicamente em um ciclo fechado de sonhos e percepções solipsistas que
substituíram o real?
Algo como no filme A Passagem (Stay, 2005)
no qual o protagonista vive, sem saber, em um purgatório entre a vida e a morte
após um acidente automobilístico - a
culpa e a perda da memória o fazem seguidas vezes frequentar um psicanalista
sem saber que está preso em sua própria mente.
Remainder é mais um
filme dentro do subgênero PsicoGnóstico: no qual a mente não só é uma prisão
mas também é capaz de recriar mundos nos quais o protagonista aparentemente
acredita estar livre. Como sempre, a solução do enigma levará o Detetive a
destruir o próprio mundo ilusório que criou.
Ficha Técnica |
Título: Remainder
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Diretor: Omer Fast
|
Roteiro: Omer Fast adaptado do livro de Tom
McCarthy
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Elenco: Tom Sturridge,
Cush Jumbo, Ed Speelers, Nicholas Farrell
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Produção: Tigerlily Films, Amusement Park Films
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Distribuição: Piffl Medien,
Soda Pictures
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Ano: 2015
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País: Reino Unido, Alemanha
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