Toda as manhãs acordamos com os contos motivacionais dos telejornais sobre pessoas que venceram com foco e resiliência. Porém, ainda vivemos em tempos nos quais essas pílulas de otimismo resolvem. Imagine em um futuro distópico em que uma América em depressão econômica precise de algo mais do que pérolas motivacionais na TV. Mas de uma competição em que os perdedores, que por algum motivo abandonam a prova, sejam literalmente punidos com um tiro mortal. Para levantar o moral da Nação e elevar o Produto Interno Bruto. Esse é o futuro imaginado por Stephen King, e adaptado por Francis Lawrence (“Jogos Mortais”), em “A Longa Marcha – Caminhe ou Morra” (The Long Walk, 2025). Um grupo de adolescentes participa de um concurso anual transmitido ao vivo, no qual eles devem caminhar em uma velocidade constante ou levar um tiro mortal por soldados que acompanham os competidores. O timing da adaptação ao cinema da primeira obra de Stephen King é perfeito: os EUA estão à beira de uma distopia muito próxima da ficção do mestre do terror.
Nesta semana um telejornal matinal da TV Globo exibiu uma dessas
matérias motivacionais com uma história de lição de vida e superação. Típico
conto com final feliz para motivar os espectadores que acabaram de acordar para
mais um dia de trabalho. Ou de procura de emprego.
O conto era o seguinte: uma corredora campeã da tradicional
corrida São Silvestre contou como a corrida mudou a sua vida – de cortadora de cana-de-açúcar
pobre, que começou a correr descalça de casa para o trabalho na zona rural do
interior de um estado nordestino. Até que, inspirada pela campeã portuguesa,
vencedora em uma das edições da São Silvestre, conseguir comprar seu primeiro par
de tênis. Para correr até a vitória, deixando para trás a pobreza do sertão.
Variantes de contos motivacionais como esse são diários nas manhãs
televisivas. Vender a ideia de que se você quer, você consegue. Supera todas as
dores e as adversidades.
Porém, ainda o capitalismo está em tempos de motivacionais e de
esperança – ainda tudo dependeria da vontade e motivação. Tudo ainda é
figurado: a corrida da ex-cortadora de cana é uma alegoria da corrida da
própria vida. A brutalidade e crueldade do darwinismo social ainda é maquiado e
embelezado através desses verdadeiros contos de fadas contemporâneos.
Mas, e se no futuro esses contos motivacionais forem mais brutais,
sem contar mais com os eufemismos dos contos motivacionais atuais? Um futuro
distópico, em que o capitalismo afundou tão profundo na crise econômica e
política que o sentimento do medo passou a ser mais motivador do que os contos
de fadas coaching do passado.
É assim que podemos interpretar o filme A Longa Marcha –
Caminhe ou Morra (The Long Walk, 2025), de Francis Lawrence. Um
diretor bem experiente em temáticas distópicas que, depois de quatro filmes da
franquia Jogos Vorazes, sabe uma ou duas coisas sobre adolescentes
prisioneiros de jogos distópicos como show midiático para a nação.
O filme é baseado no livro homônimo de Stephen King, de 1968, dos
tempos em que assinava com o pseudônimo Richard Bachman. Eram obras sombrias e distópicas
antes de se tornar o mestre do terror. Nos anos 1960-70 ele imaginava mundos
nos quais o colapso econômico e social levaria a regimes autoritários que
ofereciam espetáculos violentos e sangrentos para pacificar e motivar sua
população aterrorizada e marginalizada — sangue e circo.
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O romance "A Longa Caminhada" é uma alegoria para a
Guerra do Vietnã, com jovens enviados para morrer graças a uma loteria.
Portanto, considerando a cronologia do romance, King/Bachman escreveu a
história no auge do movimento antiguerra.
Certamente é um dos filmes mainstream mais sombrios que já
vimos em algum tempo. A premissa direta é feita sob medida para morte e
sofrimento: 50 jovens americanos são selecionados por sorteio para uma maratona
anual. Se algum caminhante reduzir a velocidade para menos de cinco quilômetros
por hora ou se desviar da estrada, será eliminado da competição – com um tiro
na cabeça à queima-roupa. O último sobrevivente ganha o que quiser, prometem.
Qualquer um pode vencer. Esta é a máxima que ouvimos
diariamente nos contos motivacionais coaching, e que repetimos a nós mesmos, do
berço ao túmulo. Se você trabalhar duro o suficiente, se esforçar o suficiente,
for simplesmente bom o suficiente, você também pode ser um
milionário; um bilionário. É claro que estar no topo significa, por padrão, ter
passado por cima de alguém ao longo do caminho até a linha de chegada.
Apenas que em A Longa Marcha isso torna-se explícito:
mortos vão ficando pelo caminho, depois de um tiro certeiro na cabeça daqueles
que simplesmente não aguentaram a prova. Tudo muito sangrento e brutal. Mas
parece que contos sutis e alegóricos sobre empreendedorismo, motivação e
superação não mais funcionam numa América em depressão econômica e psíquica: é
necessário a mídia transmitir jovens caminhando para sobreviver, deixando pelo
caminho a saúde, dignidade... até deixar a própria vida numa poça de sangue no
asfalto. E tudo transmitido ao vivo para todo o país.
Para quê? Para aumentar o Produto Interno Bruto – o diretor da
prova, um Major insano e impiedoso (performado pelo eterno Luke Skywalker, Mark
Hamill) cita ao megafone pesquisas que comprovariam como a transmissão da
Caminhada motivaria as pessoas a trabalharem mais.
E motivar os concorrentes a caminharem até a morte.
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O Filme
O cenário dentro do qual a competição de A Longa Marcha
acontece é apenas sugerido: uma América distópica, em depressão econômica e sob
algum tipo de regime autoritário militarizado. Vemos os competidores passando
por cidades tristes, semidesertas, pessoas morando dentro de carros abandonados
na beira das estradas, crianças com olhares vazios sentadas em porteiras de
fazendas em ruínas.
Fala-se em algum tipo de guerra civil que ocorreu, mas tudo é
apenas sugerido e não explicado.
A atenção do filme volta-se unicamente para os competidores. O
filme começa com Ray Garraty (Cooper Hoffman) que é deixado na linha de largada
por sua mãe chorosa (Judy Greer), e então parte para a Marcha. Garraty é uma
alma decente, que faz amizade e incentiva seus colegas competidores,
particularmente Pete, interpretado pelo ator britânico David Jonsson. A amizade
crescente deles é o coração do filme, e ambos os atores são inatamente
charmosos e naturais, embora ambos tenham histórias e motivações mais profundas
e sombrias para revelar.
Por isso a vibe inicialmente lembra Conta Comigo,
outra história de Stephen King sobre jovens se unindo na estrada: brincando,
compartilhando histórias, conversando sobre tudo e qualquer coisa.
Há alguns personagens secundários interessantes: o agressivo e
intimidador Barkovitch (Charlie Plummer) e o arrogante, porém vulnerável, Olson
(Ben Wang) em particular.
A história inicia em um ritmo até tranquilo, embora a camaradagem
esteja destinada a não durar, já que o grupo cansado é rotineiramente reduzido
pelos militares que os acompanham (liderados por um major histérico e caricato
interpretado por Mark Hamill), com tiros horríveis e certeiro na cabeça.
Mostrados em detalhes completos e sangrentos.
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Jovens sendo executados ao vivo na televisão, e sem cortes, é o
paroxismo dos contos motivacionais coaching que acompanhamos na TV atual – em tempos
tão “bicudos” como aqueles de A Longa Marcha, só mesmo algo tão brutal
para motivar os cidadãos a se esforçarem para elevar o PIB.
Entre os alvos móveis do jogo, A Longa Marcha centra-se no quarteto
de heróis, ancorado por Raymond Garraty, um estudante do ensino médio com
motivos misteriosos para competir voluntariamente para se tornar "um
Walker".
Mas então, somos informados, todo jovem fisicamente apto na
América se inscreve na loteria, embora Garraty pareça um caso particularmente
estranho. O rapaz mal esconde o pensamento subversivo de seu pai há muito
falecido e as noções ativistas contra o governo autoritário que tomou conta da
América.
Seu representante desse governo, o Major que fica no alto de um
carro dando gritos histéricos “motivacionais”, fica ordenando os jovens a andar
indefinidamente em um ritmo constante. Aqueles que, por algum motivo, reduzirem
a velocidade da marcha a cinco Km/h recebem um aviso. Se ficar abaixo desse
limite, recebe um segundo aviso e, em seguida, um terceiro. Depois disso, recebe
"uma multa" na ponta de um fuzil.
As chances de Garraty são de uma em cinquenta, já que há um garoto
representando cada estado da união. Mesmo assim, a maioria deles parece achar
que tem boas chances, incluindo os três amigos que Garraty. Há Art Baker (Tut
Nyuot), um garoto doce e temente a Deus; em seguida, Hank Olson (Ben Wang), um
divertido cruzamento entre o fanfarrão e o nerd que acompanha todas as turmas
do ensino médio; e, por fim, Peter McVries (David Jonsson), outro sulista com
carisma suficiente.
Todos têm histórias para contar. E o mais impressionante sobre o
filme talvez seja o fato de que nos contentamos em ouvi-las longamente. Antes
que suas memórias se desvaneçam em uma explosão de sangue após um estampido
seco de fuzil.
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Realismo Capitalista e Caos Atonal
Assistir à A Longa Marcha acaba nos fazendo lembrar de uma
frase igualmente distópica do filósofo britânico Mark Fisher sobre o “realismo
capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Ao invés de toda a depressão econômica, miséria e ausência de
perspectivas serem o motor de transformações, parece ser o inverso: alimentam
um governo militarizado e o individualismo a partir de uma transmissão de TV em
rede nacional sobre uma competição cujo sobrevivente, no final, pode desejar
qualquer coisa. A distopia parece reforçar o motor imaginário primário do Capitalismo:
o darwinismo social.
Aqui em A Longa Marcha levada ao cúmulo, sem eufemismos: a
eliminação literal dos competidores, com um tiro punitivo.
No final, a ambiguidade do romance inicial de Stephen King de 1968
que refletia o cinismo amargo que moldou grande parte daquela era para a
geração baby boomer, é substituída por uma história sobre o poder curativo da
camaradagem e da amizade, em oposição à insensatez (e à crueldade sistêmica) da
juventude desperdiçada.
O que leva a uma espécie de caos tonal no filme: como jovens são
capazes de longas (e às vezes, animadas) conversas e reflexões existenciais à
beira da execução arbitrária por tiros? Como a amizade pode se sobrepor ao individualismo
e sobrevivencialismo se o sistema os coloca numa situação totalmente
irracional? Afinal, todos sabem que irão morrer e que não passam de cordeiros em
um show sacrificial televisivo.
O que também acaba lembrando da linha de diálogo do filme O
Segredo da Cabana sobre a necessidade do sacrifício de jovens: “Ora, porque
vocês são jovens!”. Tudo para impor o medo e o terror às novas gerações. A
necessidade milenar dos rituais sacrificiais de jovens das novas gerações para
manter a sociedade na linha da obediência.
Ficha
Técnica |
Título: A Longa Marcha – Caminhe
ou Morra |
Diretor: Francis Lawrence |
Roteiro: JT Molner, Stephen
King |
Elenco: Cooper Hofman, David
Jonsson, Garrett Wareing |
Produção: Lions Gate |
Distribuição: Paris Filmes |
Ano: 2025 |
País: EUA |