quinta-feira, setembro 25, 2025

'A Longa Marcha - Caminhe ou Morra': a adaptação do profético livro de Stephen King


Toda as manhãs acordamos com os contos motivacionais dos telejornais sobre pessoas que venceram com foco e resiliência. Porém, ainda vivemos em tempos nos quais essas pílulas de otimismo resolvem. Imagine em um futuro distópico em que uma América em depressão econômica precise de algo mais do que pérolas motivacionais na TV. Mas de uma competição em que os perdedores, que por algum motivo abandonam a prova, sejam literalmente punidos com um tiro mortal. Para levantar o moral da Nação e elevar o Produto Interno Bruto. Esse é o futuro imaginado por Stephen King, e adaptado por Francis Lawrence (“Jogos Mortais”), em “A Longa Marcha – Caminhe ou Morra” (The Long Walk, 2025). Um grupo de adolescentes participa de um concurso anual transmitido ao vivo, no qual eles devem caminhar em uma velocidade constante ou levar um tiro mortal por soldados que acompanham os competidores. O timing da adaptação ao cinema da primeira obra de Stephen King é perfeito: os EUA estão à beira de uma distopia muito próxima da ficção do mestre do terror.

Nesta semana um telejornal matinal da TV Globo exibiu uma dessas matérias motivacionais com uma história de lição de vida e superação. Típico conto com final feliz para motivar os espectadores que acabaram de acordar para mais um dia de trabalho. Ou de procura de emprego.

O conto era o seguinte: uma corredora campeã da tradicional corrida São Silvestre contou como a corrida mudou a sua vida – de cortadora de cana-de-açúcar pobre, que começou a correr descalça de casa para o trabalho na zona rural do interior de um estado nordestino. Até que, inspirada pela campeã portuguesa, vencedora em uma das edições da São Silvestre, conseguir comprar seu primeiro par de tênis. Para correr até a vitória, deixando para trás a pobreza do sertão.

Variantes de contos motivacionais como esse são diários nas manhãs televisivas. Vender a ideia de que se você quer, você consegue. Supera todas as dores e as adversidades.

Porém, ainda o capitalismo está em tempos de motivacionais e de esperança – ainda tudo dependeria da vontade e motivação. Tudo ainda é figurado: a corrida da ex-cortadora de cana é uma alegoria da corrida da própria vida. A brutalidade e crueldade do darwinismo social ainda é maquiado e embelezado através desses verdadeiros contos de fadas contemporâneos.

Mas, e se no futuro esses contos motivacionais forem mais brutais, sem contar mais com os eufemismos dos contos motivacionais atuais? Um futuro distópico, em que o capitalismo afundou tão profundo na crise econômica e política que o sentimento do medo passou a ser mais motivador do que os contos de fadas coaching do passado.

É assim que podemos interpretar o filme A Longa Marcha – Caminhe ou Morra (The Long Walk, 2025), de Francis Lawrence. Um diretor bem experiente em temáticas distópicas que, depois de quatro filmes da franquia Jogos Vorazes, sabe uma ou duas coisas sobre adolescentes prisioneiros de jogos distópicos como show midiático para a nação.

O filme é baseado no livro homônimo de Stephen King, de 1968, dos tempos em que assinava com o pseudônimo Richard Bachman. Eram obras sombrias e distópicas antes de se tornar o mestre do terror. Nos anos 1960-70 ele imaginava mundos nos quais o colapso econômico e social levaria a regimes autoritários que ofereciam espetáculos violentos e sangrentos para pacificar e motivar sua população aterrorizada e marginalizada — sangue e circo. 



O romance "A Longa Caminhada" é uma alegoria para a Guerra do Vietnã, com jovens enviados para morrer graças a uma loteria. Portanto, considerando a cronologia do romance, King/Bachman escreveu a história no auge do movimento antiguerra.

Certamente é um dos filmes mainstream mais sombrios que já vimos em algum tempo. A premissa direta é feita sob medida para morte e sofrimento: 50 jovens americanos são selecionados por sorteio para uma maratona anual. Se algum caminhante reduzir a velocidade para menos de cinco quilômetros por hora ou se desviar da estrada, será eliminado da competição – com um tiro na cabeça à queima-roupa. O último sobrevivente ganha o que quiser, prometem.

  Qualquer um pode vencer. Esta é a máxima que ouvimos diariamente nos contos motivacionais coaching, e que repetimos a nós mesmos, do berço ao túmulo. Se você trabalhar duro o suficiente, se esforçar o suficiente, for simplesmente bom o suficiente, você também pode ser um milionário; um bilionário. É claro que estar no topo significa, por padrão, ter passado por cima de alguém ao longo do caminho até a linha de chegada. 

Apenas que em A Longa Marcha isso torna-se explícito: mortos vão ficando pelo caminho, depois de um tiro certeiro na cabeça daqueles que simplesmente não aguentaram a prova. Tudo muito sangrento e brutal. Mas parece que contos sutis e alegóricos sobre empreendedorismo, motivação e superação não mais funcionam numa América em depressão econômica e psíquica: é necessário a mídia transmitir jovens caminhando para sobreviver, deixando pelo caminho a saúde, dignidade... até deixar a própria vida numa poça de sangue no asfalto. E tudo transmitido ao vivo para todo o país.

Para quê? Para aumentar o Produto Interno Bruto – o diretor da prova, um Major insano e impiedoso (performado pelo eterno Luke Skywalker, Mark Hamill) cita ao megafone pesquisas que comprovariam como a transmissão da Caminhada motivaria as pessoas a trabalharem mais.

E motivar os concorrentes a caminharem até a morte.



O Filme

O cenário dentro do qual a competição de A Longa Marcha acontece é apenas sugerido: uma América distópica, em depressão econômica e sob algum tipo de regime autoritário militarizado. Vemos os competidores passando por cidades tristes, semidesertas, pessoas morando dentro de carros abandonados na beira das estradas, crianças com olhares vazios sentadas em porteiras de fazendas em ruínas.

Fala-se em algum tipo de guerra civil que ocorreu, mas tudo é apenas sugerido e não explicado.

A atenção do filme volta-se unicamente para os competidores. O filme começa com Ray Garraty (Cooper Hoffman) que é deixado na linha de largada por sua mãe chorosa (Judy Greer), e então parte para a Marcha. Garraty é uma alma decente, que faz amizade e incentiva seus colegas competidores, particularmente Pete, interpretado pelo ator britânico David Jonsson. A amizade crescente deles é o coração do filme, e ambos os atores são inatamente charmosos e naturais, embora ambos tenham histórias e motivações mais profundas e sombrias para revelar.

Por isso a vibe inicialmente lembra Conta Comigo, outra história de Stephen King sobre jovens se unindo na estrada: brincando, compartilhando histórias, conversando sobre tudo e qualquer coisa. 

Há alguns personagens secundários interessantes: o agressivo e intimidador Barkovitch (Charlie Plummer) e o arrogante, porém vulnerável, Olson (Ben Wang) em particular.

A história inicia em um ritmo até tranquilo, embora a camaradagem esteja destinada a não durar, já que o grupo cansado é rotineiramente reduzido pelos militares que os acompanham (liderados por um major histérico e caricato interpretado por Mark Hamill), com tiros horríveis e certeiro na cabeça. Mostrados em detalhes completos e sangrentos.



Jovens sendo executados ao vivo na televisão, e sem cortes, é o paroxismo dos contos motivacionais coaching que acompanhamos na TV atual – em tempos tão “bicudos” como aqueles de A Longa Marcha, só mesmo algo tão brutal para motivar os cidadãos a se esforçarem para elevar o PIB.

Entre os alvos móveis do jogo, A Longa Marcha centra-se no quarteto de heróis, ancorado por Raymond Garraty, um estudante do ensino médio com motivos misteriosos para competir voluntariamente para se tornar "um Walker".

Mas então, somos informados, todo jovem fisicamente apto na América se inscreve na loteria, embora Garraty pareça um caso particularmente estranho. O rapaz mal esconde o pensamento subversivo de seu pai há muito falecido e as noções ativistas contra o governo autoritário que tomou conta da América.

Seu representante desse governo, o Major que fica no alto de um carro dando gritos histéricos “motivacionais”, fica ordenando os jovens a andar indefinidamente em um ritmo constante. Aqueles que, por algum motivo, reduzirem a velocidade da marcha a cinco Km/h recebem um aviso. Se ficar abaixo desse limite, recebe um segundo aviso e, em seguida, um terceiro. Depois disso, recebe "uma multa" na ponta de um fuzil.

As chances de Garraty são de uma em cinquenta, já que há um garoto representando cada estado da união. Mesmo assim, a maioria deles parece achar que tem boas chances, incluindo os três amigos que Garraty. Há Art Baker (Tut Nyuot), um garoto doce e temente a Deus; em seguida, Hank Olson (Ben Wang), um divertido cruzamento entre o fanfarrão e o nerd que acompanha todas as turmas do ensino médio; e, por fim, Peter McVries (David Jonsson), outro sulista com carisma suficiente.

Todos têm histórias para contar. E o mais impressionante sobre o filme talvez seja o fato de que nos contentamos em ouvi-las longamente. Antes que suas memórias se desvaneçam em uma explosão de sangue após um estampido seco de fuzil.




Realismo Capitalista e Caos Atonal

Assistir à A Longa Marcha acaba nos fazendo lembrar de uma frase igualmente distópica do filósofo britânico Mark Fisher sobre o “realismo capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

Ao invés de toda a depressão econômica, miséria e ausência de perspectivas serem o motor de transformações, parece ser o inverso: alimentam um governo militarizado e o individualismo a partir de uma transmissão de TV em rede nacional sobre uma competição cujo sobrevivente, no final, pode desejar qualquer coisa. A distopia parece reforçar o motor imaginário primário do Capitalismo: o darwinismo social.

Aqui em A Longa Marcha levada ao cúmulo, sem eufemismos: a eliminação literal dos competidores, com um tiro punitivo.

No final, a ambiguidade do romance inicial de Stephen King de 1968 que refletia o cinismo amargo que moldou grande parte daquela era para a geração baby boomer, é substituída por uma história sobre o poder curativo da camaradagem e da amizade, em oposição à insensatez (e à crueldade sistêmica) da juventude desperdiçada. 

O que leva a uma espécie de caos tonal no filme: como jovens são capazes de longas (e às vezes, animadas) conversas e reflexões existenciais à beira da execução arbitrária por tiros? Como a amizade pode se sobrepor ao individualismo e sobrevivencialismo se o sistema os coloca numa situação totalmente irracional? Afinal, todos sabem que irão morrer e que não passam de cordeiros em um show sacrificial televisivo.

O que também acaba lembrando da linha de diálogo do filme O Segredo da Cabana sobre a necessidade do sacrifício de jovens: “Ora, porque vocês são jovens!”. Tudo para impor o medo e o terror às novas gerações. A necessidade milenar dos rituais sacrificiais de jovens das novas gerações para manter a sociedade na linha da obediência.


 

Ficha Técnica

 

Título: A Longa Marcha – Caminhe ou Morra

Diretor: Francis Lawrence

Roteiro: JT Molner, Stephen King

Elenco: Cooper Hofman, David Jonsson, Garrett Wareing

Produção: Lions Gate

Distribuição:  Paris Filmes

Ano: 2025

País: EUA

 

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